Em Joseph Anton, seu recém-lançado livro de memórias, o escritor
anglo-indiano Salman Rushdie escreveu: “À medida que crescemos, nós nos
acostumamos com o jeito como as coisas são, à cotidianidade da vida, e uma
espécie de poeira ou película nos tolda a visão, e com isso nos escapa a
natureza verdadeira, miraculosa, da vida na Terra. A tarefa do artista consiste
em remover essa camada que nos cega e restaurar nossa capacidade de
maravilhamento”.
Um livro como o de Rushdie é por si só uma comprovação do que ele
afirmou. Capaz de remover a camada de mesmice e nos fazer enxergar melhor e com
mais nitidez, como se fizéssemos com o nosso cérebro o mesmo movimento de dedos
que fazemos para aproximar uma imagem em um smartphone, numa espécie de zoom da
própria consciência. Algo simplesmente se ilumina, como uma clareira numa mata
fechada. Mas há diferentes formas de “maravilhamento”, diversas maneiras de chegar
com precisão àquele ponto ínfimo de interseção entre a massa encefálica e o
músculo cardíaco. São sentimentos distintos que nos enlaçam e abrem portas de
percepção em algum território ermo e rarefeito do nosso íntimo.
No meu caso, o que sinto ao ouvir, por exemplo, Gilberto Gil cantando Pai
e Mãe é diametralmente oposto ao prazer que me atinge quando escuto Joshua Bell
tocar a Serenade de Schubert. Um prazer mais sensorial, que me enleva e me
lança para longe de mim, enquanto o outro sentimento mexe com minhas reminiscências,
minhas ausências, meus arraigados princípios morais. Enfim, me leva a pensar. Hemingway
me atinge de uma maneira, Fitzgerald, de outra, mas ambos às vezes me deixam
com o coração exaurido. A cena final de A Insustentável Leveza do Ser (até hoje
o meu filme predileto) já me levou aos prantos mais de uma vez, assim como o
final de, quem diria, Procurando Nemo. Em um, o desespero e o desalento diante
da extinção inevitável. No outro, a saudade em carne viva do pai para sempre perdido.
O fato é que arte verdadeira, e não apenas a literatura, nos enche de centelhas,
nos povoa de questionamentos, nos inunda de conhecimento de nós mesmos. É como
se nos tirasse da caverna e nos apresentasse à luz do dia. Por outro lado, nos
torna ainda mais ignorantes diante do infinito, como neandertais fascinados
pela lua, embora incapazes de compreendê-la. Como alguém já escreveu, o que o
artista cria é muito diferente do que o leitor/espectador/ouvinte interpreta.
Nenhuma obra é fechada em si mesma. É, sim, um eterno trabalho em andamento,
movendo-se ao sabor dos tempos e das diferentes formas de compreensão, ou – no
caso dos Versos Satânicos de Rushdie – da mais completa incompreensão. Voltando
a ele: “A alma tinha muitos desvãos escuros, e às vezes os livros os iluminavam”.
Tive o privilégio de, desde menino, ter sido capaz de iluminar os meus próprios
desvãos graças ao conhecimento do mundo que me trouxeram livrinhos
despretensiosos, como Viagem ao Mundo Desconhecido, Coração de Onça, A Máquina
do Tempo e As Aventuras de Tibicuera. Meus desvãos então já eram muitos, e por
vezes se abriam como gavetas, onde até hoje escondo medos, dúvidas e frustrações.
A cada grande livro, filme ou canção (mas sobretudo a cada grande livro), essas
gavetas se abrem e me permitem contemplar o seu conteúdo, examinar suas
nuances, verificar o quanto mudaram desde a última vez em que foram expostos. São
como um retrato de Dorian Gray ao contrário, que guarda a minha essência
intacta, enquanto lá fora o invólucro se corrompe e perde o vigor com a
passagem dos anos.
2 comentários:
Excelente texto. Emocionante, também!
Acabo de participar de um fórum no Rio em que muito se falou sobre isso...
Sincronicidade!
Beijo!
Obrigado, Nina. Sua presença aqui é sempre bem-vinda.
Um beijo.
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