Anoiteço lentamente na companhia de Dave Brubeck, a quem
velo com fervorosa admiração neste final de quarta-feira, enquanto saboreio um
delicioso vinho argentino. Dave vai embora, um dia antes de completar 92 anos,
com sua música atemporal e seu jeito sereno e até certo ponto obsessivo de
encarar a vida e a arte. Ouço seu piano em contraponto ao sax alto de Paul
Desmond, sua alma gêmea musical. Até poucos minutos atrás estava revendo um
documentário sobre ele, Redescobrindo Dave Brubeck, que mostra imagens do
músico já bem velhinho, com uma simpatia arrebatadora, tocando com os filhos e
colhendo com serenidade os frutos do reconhecimento. Dave viveu bem, produziu
muito e ficará eternizado por temas como Take Five e Blue Rondo a la Turk, mas
também por se posicionar radicalmente contra o racismo. Enfim, um homem de
valor.
No mesmo dia, Oscar Niemeyer cessou sua chama, com
espantosos 104 anos. Já era um adolescente quando Brubeck nasceu, e ninguém há
de negar que sorveu como poucos o seu tempo – ou, melhor dizendo, os seus
tempos. Outro dia, comecei a escrever um texto sobre o fascínio que a
longevidade de Niemeyer e Manoel de Oliveira (o cineasta português, ainda vivo
e ativo aos 105 anos) provocava em mim. Invejava a oportunidade que eles tiveram
de contemplar o século 20 se descortinando aos seus olhos, o mesmo século ao qual
cheguei já nos estertores. Tanto Niemeyer quanto Oliveira têm (me recuso a usar o verbo no passado) de velhice mais
ou menos o que eu tenho de vida. É um oceano de tempo. Como se ambos ousassem
roçar a eternidade e brincar com o nosso conceito de finitude. Como se ambos fossem monumentos feitos de ossos, sangue e sentimento, a atestar a nossa permanência na Terra, imperecíveis como pirâmides egípcias. Mas agora sei
que o velho arquiteto comunista finalmente capitulou.
Fico imaginando o que os olhos de Niemeyer, Oliveira e mesmo
os de Brubeck já viram. Nascidos nas primeiras décadas do século 20, já eram
adultos em 1939, quando a insânia nazista desaguou na guerra mais brutal da
história humana. Brubeck, inclusive, presenciou o horror da batalha, da qual
felizmente saiu sem sequelas físicas (já que as psicológicas invariavelmente
permanecem). Talvez o mundo de hoje, tomado por uma imbecilidade sem tamanho, já
não precise deles, embora Manoel ainda resista e mostre que o seu tempo particular
prossegue, num desafio que nos impressiona e sobretudo nos comove. Talvez nenhum
deles tenha conseguido entender como a barbárie permanece incólume, mesmo após
100 anos de sofrimento generalizado. Ou quem sabe não é exatamente o oposto:
quem, como eles, viu o mundo quase se desintegrar no início dos anos 40 talvez não se
espante mais com nada, e esteja mais apto que qualquer um de nós a enriquecer
com arte o que outros homens preenchem com pinceladas de estupidez.
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