Penso nos mais de 200 jovens que morreram em Santa Maria e
lamento que não tenham tido a oportunidade de conhecer o ocaso. É como se uma
manhã virasse o fim da noite abruptamente, sem o sereno intervalo da tarde. Imagino
os corpos empilhados, a asfixia em meio à escuridão, os celulares tocando como
gritos de mãe desesperados. E em seguida penso em mim também, e temo que eu mesmo
possa não conhecer o ocaso. Temo o fim da felicidade tranquila que a minha vida
pessoal me proporciona, já que às vezes o corpo me parece incomodamente frágil
e dolorido. Por outro lado, penso que o próprio ocaso está longe de representar
um epílogo digno e reconfortante. “We’re not that strong, my Lord. You know
we ain't that strong”, como cantou Caetano.
Ao contrário do que imaginava, não
chegamos aos 80, 90 anos com a sensação do dever cumprido. Queremos mais, até
porque não nos sentimos com tanta idade, ela nos pesa de fora para dentro, e
não o contrário. Verissimo quase morreu uns meses atrás, e aos 76 anos clama
por mais tempo sobre a Terra – e não sob ela. Tudo isso me vem à cabeça aos
borbotões após ter assistido Amor, de Michael Haneke, um mergulho sombrio nos dias
derradeiros de um casal de velhos amorosos, refinados e com uma vida pela
frente (mesmo que curta) de pequenos prazeres a dois: concertos, vinhos,
leituras, conversas e cumplicidade. Então vem a decrepitude, na forma de uma
doença sem cura, e com ela dias longos, enfadonhos, quase sem nenhuma válvula
de escape, que vão minando aos poucos tudo o que marido e mulher construíram ao
longo de décadas.
Uma vez conversei com um primo que é médico – e sobrevivente
de um câncer particularmente agressivo – e ele me contou que já viu morrer
muita gente que ansiava por mais tempo. Isso sempre o comoveu e de certa forma
faz com que prossiga tentando salvar vidas. Afinal, não deve ser fácil presenciar
a despedida de pessoas que queriam permanecer para ver os filhos crescerem ou,
sei lá, fazer a viagem sempre adiada para Paris. Enfim, assistir ao sol nascer,
ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros cantar, como dizia Cartola na
música de Candeia. É duro se saber finito, reconhecer que a engrenagem do mundo
não precisa nem vai precisar de nós para continuar funcionando. O casal de Amor
se bastava, mesmo com a idade avançada, tanto que a filha podia ser considerada
uma intrusa no prosaico mundo deles. Como pianistas aposentados, contribuíram
para uma civilização mais harmônica, e agora desfrutavam de sua existência tardia.
Estavam vivos e queriam estar vivos. Mas a vida não permite finais felizes, até
porque o final, em si, impossibilita qualquer forma de felicidade.