terça-feira, 29 de janeiro de 2013

We’re not that strong, my Lord



Penso nos mais de 200 jovens que morreram em Santa Maria e lamento que não tenham tido a oportunidade de conhecer o ocaso. É como se uma manhã virasse o fim da noite abruptamente, sem o sereno intervalo da tarde. Imagino os corpos empilhados, a asfixia em meio à escuridão, os celulares tocando como gritos de mãe desesperados. E em seguida penso em mim também, e temo que eu mesmo possa não conhecer o ocaso. Temo o fim da felicidade tranquila que a minha vida pessoal me proporciona, já que às vezes o corpo me parece incomodamente frágil e dolorido. Por outro lado, penso que o próprio ocaso está longe de representar um epílogo digno e reconfortante. “We’re not that strong, my Lord. You know we ain't that strong”, como cantou Caetano.

 Ao contrário do que imaginava, não chegamos aos 80, 90 anos com a sensação do dever cumprido. Queremos mais, até porque não nos sentimos com tanta idade, ela nos pesa de fora para dentro, e não o contrário. Verissimo quase morreu uns meses atrás, e aos 76 anos clama por mais tempo sobre a Terra – e não sob ela. Tudo isso me vem à cabeça aos borbotões após ter assistido Amor, de Michael Haneke, um mergulho sombrio nos dias derradeiros de um casal de velhos amorosos, refinados e com uma vida pela frente (mesmo que curta) de pequenos prazeres a dois: concertos, vinhos, leituras, conversas e cumplicidade. Então vem a decrepitude, na forma de uma doença sem cura, e com ela dias longos, enfadonhos, quase sem nenhuma válvula de escape, que vão minando aos poucos tudo o que marido e mulher construíram ao longo de décadas.

Uma vez conversei com um primo que é médico – e sobrevivente de um câncer particularmente agressivo – e ele me contou que já viu morrer muita gente que ansiava por mais tempo. Isso sempre o comoveu e de certa forma faz com que prossiga tentando salvar vidas. Afinal, não deve ser fácil presenciar a despedida de pessoas que queriam permanecer para ver os filhos crescerem ou, sei lá, fazer a viagem sempre adiada para Paris. Enfim, assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros cantar, como dizia Cartola na música de Candeia. É duro se saber finito, reconhecer que a engrenagem do mundo não precisa nem vai precisar de nós para continuar funcionando. O casal de Amor se bastava, mesmo com a idade avançada, tanto que a filha podia ser considerada uma intrusa no prosaico mundo deles. Como pianistas aposentados, contribuíram para uma civilização mais harmônica, e agora desfrutavam de sua existência tardia. Estavam vivos e queriam estar vivos. Mas a vida não permite finais felizes, até porque o final, em si, impossibilita qualquer forma de felicidade.  

8 comentários:

Nina disse...

Belo texto!
Tudo o que termina exclui a felicidade.
Beijos

Paulo Sales disse...

Obrigado, Nina. O fim é sempre melancólico, com raras exceções.
Um beijo.

Socorro disse...

Lindo texto, Paulinho. Ainda não vi Amor, mas sei que vou gostar. Acho bem interessante que este ano tenha duas candidatas concorrendo ao Oscar de melhor atriz com idades tão diferentes: a garotinha de 9 anos de Indomável Sonhadora e a Emanuelle, de Amor, que faz 86 no dia da entrega do prêmio. Prefiro sempre, você sabe, reparar na beleza de fatos assim pra evitar sofrer com a tragédia que pra nós sempre é a morte.

Paulo Sales disse...

Obrigado, Socorrinho.
É, temos que encontrar a nossa própria válvula de escape, do contrário enlouquecemos.
Amor é um filme difícil, pesado, sombrio, mas profundamente humano. Só achei o seu final mal resolvido. A atuação de Emmanuelle Riva é um portento, assim como a de Trintignant.
Um beijo.

ArmundoAlves disse...

E na hora da prova dos nove, do balanço final, analisar se você de fato contribuiu para um mundo mais harmônico e de esperanças renovadas. Não, não, esse inventário é sempre adiado, pode significar a aceitação do fim. A morte é sempre uma interrupção.

Paulo Sales disse...

Sim, Armundo, adiamos porque sabemos que a balança invariavelmente vai pesar contra nós. Não só pelo que não fizemos para o mundo, mas também pelo que não fizemos para nós mesmos.
Grande abraço.

Laert Yamazaki disse...

Tenho pensado bastante sobre o tema ultimamente, Paulo. Não sei se é fruto da perda de meu pai ou se a idade alimenta essa lembrança de forma mais assídua.
O fato é que questiono se tudo está valendo a pena e de que forma posso melhorar para construir um legado. Seja para os descendentes ou para que no final, ao olhar para o passado, não haja a sensação de que a passagem, o caminho poderia ter sido melhor.
São tantas coisas que deixamos de fazer ou deixamos de contemplar por causa da exigência de uma vida moderna...

Paulo Sales disse...

Sim, Laert, a perda do pai afeta profundamente a nossa visão de mundo, alterando nossa compreensão de por que estamos aqui. Muito do que fazemos é inútil, mas acredito nos pequenos hiatos de carinho, felicidade e cumplicidade que fazem a vida valer a pena. Claro que ao final, com raras exceções, a balança vai pesar contra nós, mas seria exigir demais de nós mesmos que não fosse assim. Vamos vivendo, enfim, acumulando pequenos prazeres ao longo da semana e tentando sobreviver ao caos que é viver.
Grande abraço.