Ontem, escrevi no Facebook um pequeno comentário sobre
a sensação de impotência e perplexidade que a sucessão de atos violentos no
país vem causando em mim. O desabafo terminava com um questionamento
exasperado: “Há alguma dúvida de que o Brasil está se tornando uma imensa
fábrica de imbecis? Uma indústria de gente amoral, imersa em brutalidade,
incapaz de viver em sociedade?”. Entre os que comentaram o texto, um amigo
brincou, parafraseando Humphrey Bogart em Casablanca: “Sempre haverá Paris...”.
Eu, do alto da minha ingenuidade inócua, retruquei: “Mas não quero apenas ir
para Paris e deixar isso aqui entregue à barbárie. Quero ver uma evolução.”
Então o meu amigo, muito mais vivido e com uma visão
de mundo mais impiedosa e realista que a minha, respondeu: “Reverter essa
situação é um trabalho de 50 anos, se começar hoje às 7 da noite. Você não é
responsável pela barbárie e sim um cidadão do mundo com direitos adquiridos
sobre cultura e civilidade, e não é imortal. Nessa hora vale Buñuel: ‘Pátria é
um conjunto de rios que correm para o mar’”. Ainda brinquei, dizendo que só me
restaria então chorar aos pés da Torre Eiffel e depois tomar um vinho no
Quartier Latin, que ninguém é de ferro. Ele, obviamente, sugeriu que
dividíssemos a garrafa.
O que meu amigo disse, no entanto, me fez refletir sobre o meu
papel – e o de todos os cidadãos brasileiros que se vêem acuados pela barbárie
e não contribuíram (ou ao menos não contribuíram diretamente) para esse cenário
de indigência moral, disseminado por todos os estados do país e por todas as
classes sociais. E admito que ele tem razão. Será que não merecemos viver dentro
dos princípios que defendemos e nos quais acreditamos? Sendo um humanista,
defensor do bem-estar social, da igualdade de direitos e do absoluto respeito
ao outro, por que não mereço viver em um lugar onde esses elementos compõem a
regra da vida em sociedade, ao invés da exceção? A resposta me parece clara.
Mas, deslocando o ponto de vista em outra direção, será
que não tenho mesmo participação ativa na consolidação da ruína em que vivemos?
O que fiz até hoje para mudá-la? É meu dever mudá-la? A resposta já não me
parece tão clara. O fato é que sou apenas um teórico de meia-tigela, sem nenhum
pendor para a prática, incapaz de botar a mão na massa e desempenhar um papel
ativo na construção de uma sociedade menos brutalizada. Os textos que escrevo
aqui no blog (muito menos os comentários irritadinhos que faço no Facebook) não
são capazes de me redimir da minha própria inércia. O que fazer então? O salão
de embarque internacional do aeroporto não deixa de ser uma saída tentadora,
mas nem saberia como me manter lá fora, sobretudo agora que a Europa vive uma
crise sem solução a curto prazo.
Sei apenas que meus sentimentos seguem à risca o que
John Donne escreveu há muito tempo, inspirando Hemingway a criar Por Quem os
Sinos Dobram: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do
continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas
até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se
fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me
diminui, porque sou parte do gênero humano”. Talvez por isso, mesmo se
estivesse longe, bebendo tranquilamente um Bordeaux num daqueles charmosos
bistrôs do Quartir Latin, feliz como um perdigueiro no mato, eu provavelmente
continuaria me lamentando. Um lamento tolo, embebido em hipocrisia, inutilidade
e assombro.
8 comentários:
"Não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti."
John Donne, tão atual.
Belo texto, bela reflexão. Também tenho me debatido com dúvidas semelhantes. E sem respostas claras.
Mas sei que não me omitir, agir com ética e criar bem a minha filha já é um começo.
Beijo
Sim, Nina, Donne continua muito atual, embora suas ideias talvez estejam meio fora de moda nesta terra arrasada. Lembrei de você ao citar o poema, pois lembrava que você tinha falado dele uma vez.
Nossos dilemas são imensos, e acho que viver a vida como vivemos já é um avanço. E realmente merecemos um mundo menos brutalizado. Nem que seja tomando um vinho no Quartier Latin.
Um beijo.
Se é para ser infeliz, melhor que seja em Paris...
(Brincadeira. Nunca estive lá! Beijo!)
Talvez. Mas, depois de quase uma garrafa de Barbera, quero mesmo é ser feliz em Paris.
Vá, Nina. Acho que, como eu, você se sentiria em casa lá.
Um beijo.
Eu gostaria de acreditar que minha contribuição agregaria para uma melhora. Porém, como disse o seu amigo, reverter tudo isso que está aí é trabalho de 50 anos. Acho até que mais.
Aos 40 estou na metade de minha vida (ou bem perto, assim espero) e quero aproveitar a outra metade com qualidade. Vou me dedicar a viver bem, com os familiares e com os amigos.
Pode ser uma visão egoísta...e defendo isso mesmo.
Vivemos juntos mas morremos sozinhos.
Peça mais uma garrafa e dividimos por três.
O dilema é justamente esse, Laert. Ser "egoísta" ou optar por um altruísmo na maioria das vezes estéril. Não sei a resposta. Sei apenas que sofro muito com tanta brutalidade e abjeção. E que quero ser feliz com quem amo. Aqui ou no Quartier Latin.
Seja bem-vindo para o brinde.
Querido Paulinho. Noto que esse tema é recorrente em suas reflexões. Isso não é por acaso. Nosso terrível e cruel cotidiano atinge em cheio a sua sensibilidade. Realmente, não é fácil segurar essa onda. Além da série de mortes bárbaras, que chega até nós numa velocidade e numa quantidade incríveis por conta do fácil acesso à mídia, fico profundamente incomodado também quando ando nas ruas de SP - sobretudo onde moro, aqui em Higienópolis - e vejo várias pessoas jogadas pelas calçadas, outras revirando lixeiras atrás de algo para comer e várias mendigando por qualquer migalha. Mas você mesmo diz, não adianta ficar só incomodado ou indignado. Não resolve nada. Lógico. Individualmente, podemos e devemos fazer algo, o que vai nos confortar de alguma forma. Mas as soluções, as mudanças mais substanciais, acontecem mesmo no coletivo, em especial através das instituições. Elas estão carcomidas e viciadas, é verdade, pois repetem os esquemas políticos e partidários que impedem que este país avance. Mas só as instituições brasileiras (com as pessoas participando ativamente, com certeza) serão capazes de fazer algo prático e cobrar dos poderes públicos por mudanças efetivas neste país, não é verdade? Ah, em um outro post seu, aqui no seu blog, me fez lembrar que volta e meia, sobretudo quando leio um livro ou vejo um filme, que gostaria de ter vivido em alguma outra época passada, mas agitada e rica culturalmente. Quiçá, se a opção divina me fosse dada, em vez de ter nascido nos anos sessentas do século passado, eu optasse por ter sido adolescente nesses idos. Enfim, Amigo, as suas reflexões são sempre bem-vindas. Me fazem bem. Forte abraço e bom fim de semana, Giovanni Soares
Sim, meu velho, é um tema recorrente e temos estar ficando repetitivo. Mas esse leitmotiv tedioso tem uma razão de ser, já que me aflige constantemente. Procuro respostas, e elas não aparecem. Talvez por isso sinta essa inadequação em relação ao tempo em que vivo. Mas vamos tentando. É muito bom saber que o que escrevo encontra eco em pessoas como você.
Grande abraço. Quando aparecer por aqui, vamos tomar um vinho.
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