Ainda não
vi Depois de Maio, que mostra como prosseguiu a vida dos manifestantes que
cravaram seu lugar na história, em 1968, ao convulsionar a França – e por
consequência várias cidades do mundo – com barricadas, slogans imortais e
confrontos com a polícia. Talvez o filme de Olivier Assayas, com seu olhar retrospectivo,
me ajudasse a compreender os movimentos populares que sacodem o Brasil de 2013.
Nas últimas semanas, pouco me manifestei sobre o desenrolar dos fatos. Não saí
às ruas nem levantei cartazes, muito menos corri das tropas de choque. Li
muitas análises e depoimentos interessantes, outros nem tanto. Acompanhei
indignado o recrudescimento da violência policial e, ao fim de tudo, me vi
cheio de perguntas sem respostas sobre o real significado disso tudo. Sei
apenas que gostei do que vi e creio que algo permanecerá, embora não saiba
exatamente o quê.
É fato que,
para se alcançar uma insurreição plena, seria necessário paralisar atividades
essenciais ao funcionamento do país. Convocar uma greve geral que
interrompesse, por exemplo, o sistema de transportes, os bancos e a polícia.
Seria o caos, mas de certa forma vivemos o caos cotidianamente, sobretudo os
mais pobres, que moram longe, levam três ou quatro horas para chegar ao
trabalho (quando há trabalho) e convivem com patrulhas e grupos de extermínio
invadindo constantemente a sua rua. O Brasil é um país que não respeita os seus
cidadãos, e isso não é novidade. Agora, os cidadãos deixaram de respeitar o
Brasil. Cansaram. E não tem Copa do Mundo que sacie a delícia de andar nas ruas.
Uma hora,
as manifestações vão arrefecer (já estão arrefecendo). Há boatos golpistas de
lado a lado, todos sem fundamento. O Governo acena com mudanças mais ou menos
significativas e outras descabidas, o Congresso ensaia algumas decisões
midiáticas. Nas redes sociais, batalhas verbais se sucedem colocando em lados opostos
petistas e anti-petistas, reverberando um extremismo anacrônico e estéril. E
nessa hora começa a bater um cansaço. Uma exaustão por saber que esses
discursos não dão conta da complexidade do país, do grau de miséria, vergonha e
desrespeito a que somos, em maior ou menor medida, expostos. A impressão é que
nem mesmo quem vai às ruas sabe o que quer, apenas vislumbra a possibilidade de um
país menos hostil.
Num cenário
assim, qualquer centelha provoca explosão, seja o aumento de vinte centavos na
passagem de ônibus ou a tal PEC 37, sobre a qual não tenho opinião formada.
Aliás, não tenho opinião formada sobre quase nada. Transito o tempo todo por um
terreno pantanoso de convicções frágeis, que se movimentam como placas
tectônicas a cada informação que me acrescenta conhecimento e visão de mundo.
Mas voltando às manifestações, o fato é que, após os milhões nas ruas pedindo eleições
diretas em 1984, vivemos décadas de resignação interrompidas aqui e ali (como é
o caso dos caras pintadas pedindo o impeachment de Fernando Collor em 1992).
Nesse hiato, a sociedade assistiu ao esgarçamento de princípios morais
elementares. Forçou-se a corda ao máximo, desde a compra de votos para a
aprovação da emenda da reeleição, durante o governo FHC, até o escândalo do
Mensalão, na gestão de Lula, culminando com os gastos obscenos para a Copa do
Mundo de 2014.
A gota
d’água, a meu ver, foi a escolha de Marcos Feliciano para presidir a Comissão
dos Direitos Humanos da Câmara. Ali, o cinismo atingiu seu apogeu. Foi como se
dissessem: “Vamos com ele mesmo e foda-se a opinião pública”. Impossível
aceitar, impossível retroceder. As manifestações que sacodem o Brasil não
padecem de escassez de causas, e sim do excesso delas. Resta saber o que
permanecerá depois de junho, quando os milhares de pessoas nas ruas enfrentando
balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo forem apenas uma foto na parede
da nossa lembrança. Enfim, olho aquelas pessoas com esperança e admiração, mas
também com uma ponta de desilusão e ceticismo. E, acima de tudo, com a certeza
de que o primeiro passo foi dado.
4 comentários:
Paulinho, sua incerteza é perfeita pois o momento também é assim, inclusive para quem nasceu bem antes de 1970. Vale a pena ler "1969, o ano que não terminou" de Zuenir Ventura. Ele relata a falta de resultados práticos imediatos de todo o movimento e a perplexidade diante do salto no escuro que é enterrar um passado sem ter uma visão clara de futuro. Mas, nada daquilo se perdeu. Seu texto, mais uma vez, maravilhoso.
Muito obrigado, mestre Gavazza.
Sim, tenho que ler o livro do Zuenir, assim como o 1968, de Mark Kurlansky, que tenho em casa e nunca li. O que mais me fascina nesse movimento é justamente a possibilidade de virarmos a página, deixarmos o passado mesmo não sabendo o que o futuro vai trazer. Poderá ser sombrio, mas também promissor.
Grande abraço.
Grande Paulinho. Boa análise, Amigo. Pois é, o problema político no Brasil é sistêmico e o corporativismo no Congresso não permite que o país avance. Daí a ilusão de que um nome pode mudar as coisas de forma mais profundas. Lógico que diante da magnitude dessas manifestações que ocorreram recentemente no Brasil, algo se mexe. Sem dúvida. Estão, praticamente, tirando das gavetas alguns dos projetos que estavam sendo relegados há anos. Movimentos sociais sobrevivem de vitórias e conquistas. Estas estão acontecendo, é verdade (redução das tarifas dos ônibus em SP e em outras cidades, arquivamento da PEC 37, corrupção como crime hediondo, mais recursos para educação e para a saúde... alguns desses projetos ainda vão passar pelo Senado, inclusive). Se a pressão popular prosseguir, as mudanças vão continuar. Caso contrário, creio que tudo voltará - aos poucos - como dantes. De qualquer forma, estamos carentes de líderes magnânimos e confiáveis. Abração, querido.
Valeu, meu velho.
Sim, acho que as conquistas estão acontecendo, embora envoltas numa eterna névoa de desconfiança. Afinal, sabemos com quem estamos lidando.
E, sim, estamos carentes de líderes confiáveis. Mas, fuçando aqui e ali no balaio de gatos que é a política brasileira, a gente encontra um Marcelo Freixo, um Cristovam Buarque e, quem diria, até um Romário e um Jean-Wyllys. E vamos que vamos.
Abs
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