quarta-feira, 26 de junho de 2013

Depois de junho




Ainda não vi Depois de Maio, que mostra como prosseguiu a vida dos manifestantes que cravaram seu lugar na história, em 1968, ao convulsionar a França – e por consequência várias cidades do mundo – com barricadas, slogans imortais e confrontos com a polícia. Talvez o filme de Olivier Assayas, com seu olhar retrospectivo, me ajudasse a compreender os movimentos populares que sacodem o Brasil de 2013. Nas últimas semanas, pouco me manifestei sobre o desenrolar dos fatos. Não saí às ruas nem levantei cartazes, muito menos corri das tropas de choque. Li muitas análises e depoimentos interessantes, outros nem tanto. Acompanhei indignado o recrudescimento da violência policial e, ao fim de tudo, me vi cheio de perguntas sem respostas sobre o real significado disso tudo. Sei apenas que gostei do que vi e creio que algo permanecerá, embora não saiba exatamente o quê.

É fato que, para se alcançar uma insurreição plena, seria necessário paralisar atividades essenciais ao funcionamento do país. Convocar uma greve geral que interrompesse, por exemplo, o sistema de transportes, os bancos e a polícia. Seria o caos, mas de certa forma vivemos o caos cotidianamente, sobretudo os mais pobres, que moram longe, levam três ou quatro horas para chegar ao trabalho (quando há trabalho) e convivem com patrulhas e grupos de extermínio invadindo constantemente a sua rua. O Brasil é um país que não respeita os seus cidadãos, e isso não é novidade. Agora, os cidadãos deixaram de respeitar o Brasil. Cansaram. E não tem Copa do Mundo que sacie a delícia de andar nas ruas.

Uma hora, as manifestações vão arrefecer (já estão arrefecendo). Há boatos golpistas de lado a lado, todos sem fundamento. O Governo acena com mudanças mais ou menos significativas e outras descabidas, o Congresso ensaia algumas decisões midiáticas. Nas redes sociais, batalhas verbais se sucedem colocando em lados opostos petistas e anti-petistas, reverberando um extremismo anacrônico e estéril. E nessa hora começa a bater um cansaço. Uma exaustão por saber que esses discursos não dão conta da complexidade do país, do grau de miséria, vergonha e desrespeito a que somos, em maior ou menor medida, expostos. A impressão é que nem mesmo quem vai às ruas sabe o que quer, apenas vislumbra a possibilidade de um país menos hostil.

Num cenário assim, qualquer centelha provoca explosão, seja o aumento de vinte centavos na passagem de ônibus ou a tal PEC 37, sobre a qual não tenho opinião formada. Aliás, não tenho opinião formada sobre quase nada. Transito o tempo todo por um terreno pantanoso de convicções frágeis, que se movimentam como placas tectônicas a cada informação que me acrescenta conhecimento e visão de mundo. Mas voltando às manifestações, o fato é que, após os milhões nas ruas pedindo eleições diretas em 1984, vivemos décadas de resignação interrompidas aqui e ali (como é o caso dos caras pintadas pedindo o impeachment de Fernando Collor em 1992). Nesse hiato, a sociedade assistiu ao esgarçamento de princípios morais elementares. Forçou-se a corda ao máximo, desde a compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição, durante o governo FHC, até o escândalo do Mensalão, na gestão de Lula, culminando com os gastos obscenos para a Copa do Mundo de 2014.

A gota d’água, a meu ver, foi a escolha de Marcos Feliciano para presidir a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara. Ali, o cinismo atingiu seu apogeu. Foi como se dissessem: “Vamos com ele mesmo e foda-se a opinião pública”. Impossível aceitar, impossível retroceder. As manifestações que sacodem o Brasil não padecem de escassez de causas, e sim do excesso delas. Resta saber o que permanecerá depois de junho, quando os milhares de pessoas nas ruas enfrentando balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo forem apenas uma foto na parede da nossa lembrança. Enfim, olho aquelas pessoas com esperança e admiração, mas também com uma ponta de desilusão e ceticismo. E, acima de tudo, com a certeza de que o primeiro passo foi dado.

4 comentários:

Marco Gavazza disse...

Paulinho, sua incerteza é perfeita pois o momento também é assim, inclusive para quem nasceu bem antes de 1970. Vale a pena ler "1969, o ano que não terminou" de Zuenir Ventura. Ele relata a falta de resultados práticos imediatos de todo o movimento e a perplexidade diante do salto no escuro que é enterrar um passado sem ter uma visão clara de futuro. Mas, nada daquilo se perdeu. Seu texto, mais uma vez, maravilhoso.

Paulo Sales disse...

Muito obrigado, mestre Gavazza.
Sim, tenho que ler o livro do Zuenir, assim como o 1968, de Mark Kurlansky, que tenho em casa e nunca li. O que mais me fascina nesse movimento é justamente a possibilidade de virarmos a página, deixarmos o passado mesmo não sabendo o que o futuro vai trazer. Poderá ser sombrio, mas também promissor.
Grande abraço.

Giovanni Soares disse...

Grande Paulinho. Boa análise, Amigo. Pois é, o problema político no Brasil é sistêmico e o corporativismo no Congresso não permite que o país avance. Daí a ilusão de que um nome pode mudar as coisas de forma mais profundas. Lógico que diante da magnitude dessas manifestações que ocorreram recentemente no Brasil, algo se mexe. Sem dúvida. Estão, praticamente, tirando das gavetas alguns dos projetos que estavam sendo relegados há anos. Movimentos sociais sobrevivem de vitórias e conquistas. Estas estão acontecendo, é verdade (redução das tarifas dos ônibus em SP e em outras cidades, arquivamento da PEC 37, corrupção como crime hediondo, mais recursos para educação e para a saúde... alguns desses projetos ainda vão passar pelo Senado, inclusive). Se a pressão popular prosseguir, as mudanças vão continuar. Caso contrário, creio que tudo voltará - aos poucos - como dantes. De qualquer forma, estamos carentes de líderes magnânimos e confiáveis. Abração, querido.

Paulo Sales disse...

Valeu, meu velho.
Sim, acho que as conquistas estão acontecendo, embora envoltas numa eterna névoa de desconfiança. Afinal, sabemos com quem estamos lidando.
E, sim, estamos carentes de líderes confiáveis. Mas, fuçando aqui e ali no balaio de gatos que é a política brasileira, a gente encontra um Marcelo Freixo, um Cristovam Buarque e, quem diria, até um Romário e um Jean-Wyllys. E vamos que vamos.
Abs