quinta-feira, 17 de abril de 2014

Cem anos de fascínio



Macondo está órfã. José Arcádio, Úrsula, Rebeca, Remédios, Melquíades e todos os Aurelianos Buendía, incluindo aquele primeiro, que o pai levou para conhecer o gelo numa tarde remota, também estão órfãos. Florentino Ariza e Fermina Daza estão órfãos. O senhor muito velho com umas asas enormes está órfão, assim como Estevão, o afogado mais bonito do mundo. Assim como a moça que deixou um rastro de sangue na neve antes de morrer. Ou como Erendira e sua avó desalmada, ou como o general em seu labirinto, o patriarca em seu outono, o coronel a quem ninguém escreve. Assim como o sábio triste que desejou uma noite de amor com uma adolescente virgem no dia dos seus 90 anos. Assim como eu.

Gabo nos deixou a todos órfãos porque foi um pai que nos mostrou como ninguém o caminho a ser seguido. Um pai que aprendemos a amar à medida que o conhecíamos, à medida que desbravávamos lentamente (ou melhor: avidamente) o seu infinito particular. O que dizer do fascínio que senti aos 15 anos, quando tomei um livro seu pelas mãos e me embrenhei nos amores contrariados de O Amor nos Tempos do Cólera? E o que dizer quando, logo em seguida, ainda impregnado pelo fascínio daquela história eterna, ele me levou pela mão e me mostrou o universo de desencanto e fantasia em estado bruto que encontrei em Cem Anos de Solidão? Quantos alumbramentos, quantas descobertas, quanto delírio silencioso.

Li muitos livros seus ao longo dos meus primeiros vinte anos. Depois, por já ter lido quase tudo, demorei a voltar a ele. Não importa. Seu lugar está garantido aqui, no monstro que se debate no lado esquerdo do meu peito. Há duas semanas, reli Memória de Minhas Putas Tristes, seu pequeno, singelo e derradeiro romance. E senti uma pontinha daquele sentimento avassalador que seus romances provocavam no jovem que fui. No homem que sou. Era um velhinho querido, amado, como são os velhos por quem devotamos doses maciças de afeto. Fique em paz, Gabo. Meu querido Gabo. Nós, que pertencemos às estirpes condenadas a cem anos de fascínio, teremos muitas outras oportunidades sobre a Terra de reencontrar você. 

6 comentários:

Laert Yamazaki disse...

Pois bem, amigo órfão Paulo.
Não saberia expressar o sentimento pela morte do velho Gabo como você o fez.
Tomo portanto suas palavras emprestadas, se você me permite, e compartilho como uma homenagem também. Assinada, obviamente, por você.
Forte abraço.

Paulo Sales disse...

Obrigado, meu velho. E fique à vontade para compartilhar. Abração.

Giovanni Soares disse...

Paulinho: você, dias atrás, quando Gabriel García Márquez se internou pela última vez, mandou um recado via facebook para que a gente fosse se preparando. Diante do quadro clínico delicadíssimo do Gabo, estava claro que ele não iria resistir por muito tempo. Era a vida dizendo que ele precisava descansar. Que Gabo descanse em paz. Vi, nas redes sociais, belas homenagens. E resolvi reproduzir trechos de três delas, em um post no Notícias da Pauliceia. Você encerra uma breve sequência iniciada por Vlademir Furtado de Brito, intermediada por Isabel Allende.

Paulo Sales disse...

Obrigado por compartilhar e por me colocar em tão boa companhia, meu caro Giovanni. Engraçado que, como acontece com pessoas queridas que conhecemos, por mais que a gente se prepare sempre bate uma dor forte quando o fim acontece. Gabo me marcou muito em uma época fundamental da vida, a da minha formação. Não esqueço do impacto de seus livros sobre o adolescente que eu fui. Que seu legado perdure.

ArmundoAlves disse...

Gabo iria gostar.

Paulo Sales disse...

Muito obrigado, amigo.