quarta-feira, 14 de janeiro de 2009
Nós também temos Gomorras
O que mais nos incomoda em Gomorra, o contundente (embora um tanto superestimado) filme de Matteo Garrone inspirado em livro de Roberto Saviano, é que temos plena consciência de que aquela realidade está muito próxima de nós. Brasileiros e italianos comungam a desdita da corrupção crônica, do crime organizado enraizado em várias instâncias da sociedade, das brechas nas leis que permitem arbitrariedades ou torpezas das mais diversas. Mas ao contrário da Itália, que atenuou a libertinagem criminosa com a operação Mãos Limpas, tirando dezenas de mafiosos de suas mansões e os colocando em cubículos, aqui o sistema judiciário deficiente – quando não corrupto – permite a continuidade eterna de variados espécimes de canalhas: nenhum entra em extinção.
Gomorra já foi comparado – até para efeito de contraposição – à trilogia O Poderoso Chefão. Uma comparação equivocada, pois se tratam de abordagens radicalmente distintas, em todos os aspectos, do universo mafioso. A saga de Mario Puzo brilhantemente adaptada por Coppola (revi recentemente o primeiro filme e renovei minha admiração) expõe os intestinos de uma família da Cosa Nostra que comanda um império. No filme de Garrone não há famílias, núcleos ou mesmo quadrilhas, apenas fragmentos deles. São os tentáculos de uma atuação criminosa invisível (por ser tão vasta e pulverizada) que se expõem aos olhos do público. O resultado é uma realidade sufocante: homens, mulheres e crianças à beira da adolescência paralisados ou cooptados pela Camorra, vivendo miseravelmente em conjuntos habitacionais nos arredores de Nápoles. Estamos, como diria Borges, num subúrbio do inferno.
O Rio de Janeiro é outro subúrbio, assim como Salvador (o território do demônio propriamente dito possui outros endereços: Darfur e Gaza, por exemplo). O que mais me surpreende no Brasil é a quantidade de gente vivendo direta ou indiretamente de atividades ilícitas. É o que corrói o país, que mina as soluções bem-intencionadas, as iniciativas solidárias, a perseverança dos que não têm nada e esperam ter um dia, ao menos para os filhos. O tráfico só funciona com tanta desenvoltura porque conta com consumidores fiéis, policiais comprados e políticos diretamente interessados na perpetuação dessa realidade. Uma vez, quando passei um período trabalhando em Fortaleza, perguntei a uma pessoa de dentro do círculo do poder local por que não se conseguia acabar com a prostituição infantil, vista às claras na orla da cidade. Ele respondeu que o governador tentou combatê-la logo no início de sua gestão, mas acabou desistindo quando descobriu que a exploração sexual de menores era um excelente negócio para taxistas, agentes de viagens, donos de hotel e até deputados. Ou seja, havia uma cadeia alimentar solidamente instalada na cidade, embora as únicas que realmente acabavam comidas eram as meninas (trocadilho infame mas necessário neste caso). Claro que não tem nenhuma novidade nessas afirmações, estou chovendo no encharcado. O problema é que nunca seca. Nossa indignação é estéril, não tem qualquer efeito prático. Aqui a violência, sobretudo a policial, é tratada com naturalidade, quase como uma reação adversa inerente à atividade de combater o crime. É essa nossa complacência, essa tendência fatalista ao comodismo, que nos faz brasileiros. E que faz com que nos identifiquemos de cara com o que há de pior na Itália.
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