Há um vácuo na minha formação que me impede de compreender em sua totalidade algumas notícias que me atingem como punhaladas ao abrir um jornal ou acessar a internet. Nunca li nenhuma obra de Freud, Jung, Lacan ou algum outro teórico essencial da psicologia e de sua corrente principal, a psicanálise. Mas é provável que, mesmo conhecendo a fundo conceitos como superego ou Complexo de Édipo, restasse em mim apenas o pasmo ignorante de um leigo, o espanto primordial de um idiota ao saber que um pai se arremessou junto com o filho de dois anos do alto de um prédio de 18 andares, por não aceitar o fim do relacionamento com a mãe do garoto. Ou que um homem-bomba deu cabo de si mesmo e de dezenas de pessoas, todas elas do seu próprio povo e muitas delas crianças e mulheres, num mercado lotado no norte do Paquistão.
São episódios completamente diferentes, com pretextos radicalmente diversos. Mas ambos encerram uma questão que vai além da barbárie em estado bruto. Afinal, seus protagonistas não apenas mataram, mas também morreram intencionalmente na ação. Como entender isso? Que motivações são capazes de promover atitudes tão brutais? A meu ver, fanatismo ou desespero não dão conta dessas questões. Mais do que a banalização dos assassinatos, estamos assistindo também à banalização dos suicídios. Mata-se e morre-se pelos motivos mais esdrúxulos, sobretudo os ligados a uma radical distorção do conceito de fé ou à incapacidade de se viver sem aquele que se ama.
Na condição de um semi-analfabeto em psicologia, recorro então aos romances, que ao longo dos séculos nos ensinaram muito sobre a alma humana, e logo me vêm à mente dois livros que não falam propriamente sobre suicidas assassinos, mas desvelam em parte a psique do criminoso. Para Raskolnikov, personagem principal de Crime e Castigo, existem duas categorias de seres humanos: os ordinários, que devem respeitar as leis e viver na obediência, e os extraordinários, ou gênios da raça, aqueles que podem até cometer um crime se sua consciência assim determinar. Alçado por si mesmo à segunda categoria, ele comete o seu crime, e passa o resto dos dias corroído pelo remorso (daí que, mais do que propriamente um romance sobre crime ou castigo, Dostoievski criou um romance sobre a culpa).
Albert Camus também se embrenha nos desvãos escuros de um assassino, Mersault, cuja absoluta indiferença em relação à própria existência e a tudo que a rodeia acaba por levá-lo à pena de morte. Em O Estrangeiro, o ato de matar também é cometido quase como num surto, num momento de catarse, embora não exista a perda completa da lucidez. Tanto Raskolnikov quanto Mersault sabiam exatamente o que estavam fazendo, por mais que a intensidade da luz do sol ou uma teoria cretina de superioridade intelectual pudesse isentá-los de responsabilidade.
É possível fazer um paralelo entre a teoria de Raskolnikov e os homens-bombas arregimentados pelo fundamentalismo islâmico (embora neste último caso estejamos diante de crimes sem castigo, já que o criminoso vai embora junto com as vítimas). Em suas cabeças carcomidas pelo fanatismo, não seriam eles seres extraordinários, dotados de um poder celestial que os habilita a matar centenas de congêneres ordinários em função de uma causa maior? É provável que sim. Mas que causa é essa? Que fim justifica meios tão abjetos? Sinceramente, não sei. O próprio Camus disse que o suicídio é a grande questão filosófica do nosso tempo, ponderando que “decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia”. É uma teoria válida, obviamente, mas possivelmente defasada. Talvez a grande questão filosófica nestes tempos sombrios em que vivemos seja decidir não apenas se a própria vida, mas também – e principalmente – a vida alheia merece ser vivida. Em muitos casos, um suicídio é compreensível: a perda de quem amamos muito, uma doença terminal que nos fará sofrer fisicamente, um surto depressivo. Já um suicídio acompanhado de um ou muitos homicídios é injustificável, não só moralmente, mas também psicologicamente. A não ser que os livros que nunca li tenham uma resposta para tanta estupidez.
4 comentários:
Muito boa analogia, Paulo.
Obrigado, João.
grande abraço.
Tempos sombrios, de fato, Paulinho. A humanidade nunca me pareceu tão desumanizada, anestesiada e radicalmente interessada apenas no próprio umbigo.
É verdade, Poetinha. E ficamos nós no meio desse fogo cruzado, pasmados e sem rumo, tentando entender por que tudo isso acontece.
Abração.
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