Lembro da primeira vez que li sobre a existência da aids, quando ela nem tinha esse nome. Era só o “câncer gay”, conforme reportagem da revista Planeta, que nem sei se ainda é publicada. Estávamos em 1983, e a matéria relatava o pânico que atingira a comunidade gay de São Francisco após dezenas de mortes misteriosas, retratadas posteriormente no filme Meu Querido Companheiro, um trabalho sensível do diretor Norman René. Há outro filme sobre o tema, chamado E a Vida Continua, comentado por um amigo no seu blog (http://verbotransitivo.blogspot.com), mas este eu não vi.
De qualquer modo, o comentário me fez recordar esses primeiros anos da doença, que coincidiram com meus primeiros anos de adolescência e vida sexual. Uma época em que a aids era pouco mais que uma peste de gueto, rodeada de preconceito e com origem nebulosa (teorias conspiratórias diziam até que se tratava de um vírus de laboratório concebido como arma biológica pelos americanos). Era, enfim, algo muito distante da nossa realidade, tanto que virou até mote para uma canção de Léo Jaime, de humor desastroso, com um refrão ridículo (“aids, não tente colocar band-aids”). Claro que a gente não se dava conta disso, mas naquele momento quase todas as conquistas da revolução sexual dos anos 60 – o sexo casual, a permissividade paterna, a promiscuidade sem culpa – estavam prestes a passar por um período de intenso refluxo, substituídas pelo pavor de se contrair uma doença sem cura e com altíssimo grau de letalidade.
Os anos passaram e vimos cantores, atores, artistas plásticos, estilistas e muita gente comum sucumbirem à aids, muitos deles gays, embora não todos, o que deixava claro que não se tratava mais de um problema “deles”. Cazuza agonizava em praça pública, como estampou a polêmica capa da Veja em 1989. Betinho e Henfil, heterossexuais, mas hemofílicos, contraíram a doença via transfusão de sangue, causando uma comoção no país. Passamos a conhecer pessoalmente portadores do vírus, muitos deles sobreviventes do período mais duro e sombrio da doença, e a camisinha se tornou item obrigatório (bem, nem tanto) na hora de se aventurar na noite. Enfim, saímos de uma ditadura política e entramos numa ditadura comportamental. Terreno fértil para o puritanismo fatalista, pois havia algo de bíblico, talvez uma punição divina, numa doença que atingia os degenerados e pervertidos, incapazes de manter uma relação monogâmica ou praticar sexo apenas para procriação. Monogamia? Procriação? Lembro agora de outro filme, Kids, tristemente premonitório do trinômio sexo, drogas e tédio na adolescência contemporânea, no qual a garota quase virgem se descobria portadora do vírus e, como num efeito dominó, passava-o para frente mesmo que de maneira involuntária. Era o princípio do fim, que chegava cedo demais.
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E na África, onde teoricamente o vírus foi gerado, a aids se alastrou de tal forma que hoje é quase um desastre natural, um tsunami que arrasta milhões de pessoas, muitas delas crianças, sem atendimento adequado, coquetel de medicamentos ou qualquer ajuda formal dos arremedos de governo. Lá, a aids está longe de ser uma doença crônica, mas não necessariamente letal. É como a fome ou a barbárie, arrebata e destrói o que aparece pela frente.
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