Aos olhos de Mario Benedetti, o Uruguai é uma nação que atingiu a decadência sem ter passado pelo auge. Ou ao menos é essa a imagem que permanece após a leitura de Gracias por el Fuego. O pequeno país cisplatino que emerge das páginas do romance é um território fadado ao malogro, habitado por corruptos, provincianos e tipos de moral torta. Um território marcado pela inversão de valores, no qual até mesmo os justos e bons são assolados pela tibieza de caráter. Ao comprar o livro, não esperava uma escrita tão ácida e impiedosa. Pouco tinha ouvido falar de Benedetti até sua morte, mas simpatizava com seu rosto bonachão e vinha buscando a oportunidade de ler um livro seu.
Foi uma boa surpresa, por mais que Gracias por el Fuego funcione muito mais como uma declaração de princípios – sobretudo políticos e éticos – do que como uma obra de ficção propriamente dita. Não que ler suas páginas seja uma tarefa árdua (não é), até porque há momentos de grande literatura e reflexões sofisticadas sobre a realidade uruguaia, que por sinal se encaixariam perfeitamente numa descrição do Brasil ou de muitos outros países, sejam latino-americanos ou não. Há algo de Silvio Berlusconi em Edmundo Budiño, o crápula milionário que, a despeito de todas as suas falcatruas, se converte numa espécie de reserva moral da nação. Uma nação formada por pessoas que prezam a opulência sem dar a mínima para a origem dela. Vigorosa, a narrativa é filtrada pelos olhos de Ramón Budiño, filho do magnata e seu extremo oposto no campo das idéias e dos atos. Mas mesmo a integridade de Ramón é maculada por uma resignação atroz, por uma franca incapacidade de tomar as rédeas do jogo, partir para o ataque e desferir o golpe mortal. Gracias por el Fuego é um romance de idéias. E a realidade que ele desvela é uma amostra inequívoca de como a ausência de escrúpulos coletiva pode sepultar uma nação.
Alguns trechos:
“Como quer que eu não despreze as pessoas, se as pessoas me aceitam como sou? Desde o começo foi para mim uma tentação espantosa: estafá-los, fodê-los. Mas isso sim, prometendo-me formalmente que ao primeiro sinal de alerta, ao primeiro sintoma de que sua sensibilidade funcionava, não teria inconveniente em retroceder. Vou dizer mais ainda: quando rapaz pensei que queria saber onde estava o fundo deste país, porque só sabendo onde está o fundo verdadeiro uma pessoa pode apoiar-se. Comecei minhas sondagens. Uma mentira e não toquei no fundo; um embuste e tampouco; uma estafa monetária, e nada; uma fraude moral e menos ainda; coação, pressões, chantagem, e zero; agora distribuo armas para os filhinhos de mamãe, levo a cabo campanhas caluniosas. Mas confesso que estou me aborrecendo. Será que este país não tem fundo? (...) Sempre há alguém que pode ser comprado, ou não tem colhões suficientes, ou que tira um cigarro e encolhe os ombros. Eles não sabem o mal que me fizeram. Porque sou obstinado; tenho a obsessão de encontrar esse fundo; e na busca me aviltei. Agora, mesmo que o encontrasse, creio que não me deteria. Eu mesmo me sinto podre por dentro.”
“E se, como é quase certo, tudo vai continuar igual, estarei consciente de minha própria corrosão, desta espécie de abulia doentia que me ataca antes de toda decisão importante. Além disso, e a esta altura, quem não tem culpa? Quem pode viver neste país, neste mundo, neste tempo, de acordo com seus princípios, suas normas, sua moral, quando na realidade são outros que ditam os princípios, a moral e as normas? Além disso, esses outros não consultam ninguém. Todos estamos misturados com todos. Ninguém é quimicamente puro. O marxista trabalha, por exemplo, num banco. O católico fornica sem pensar na sagrada reprodução da espécie, ou fazendo o possível para evitá-la. O vegetariano convicto come resignadamente seu churrasco. O anarquista recebe um salário do estado. Quem pode viver as vinte e quatro horas do dia num acordo total com seu Deus, sua consciência, seu fanatismo ou credo? Nobody.”
“Neste país em que os escassos revolucionários por vocação suspenderiam sua revolução por causa do mau tempo, ou a adiariam até abril para não perder a temporada de praia, neste amorfo país de andrajosos que votam em milionários, de peões rurais que são contra a reforma agrária, de uma classe média que cada vez encontra mais dificuldade para imitar os tiques e os coquetéis da alta burguesia e no entanto pensa na palavra solidariedade como se se tratasse do sétimo círculo infernal.”
“As boas coisas que minha infância anunciou, as proteções, as ousadias, ficaram todas no caminho, e o recordar se torna então um mero registro de frustrações.”
Foi uma boa surpresa, por mais que Gracias por el Fuego funcione muito mais como uma declaração de princípios – sobretudo políticos e éticos – do que como uma obra de ficção propriamente dita. Não que ler suas páginas seja uma tarefa árdua (não é), até porque há momentos de grande literatura e reflexões sofisticadas sobre a realidade uruguaia, que por sinal se encaixariam perfeitamente numa descrição do Brasil ou de muitos outros países, sejam latino-americanos ou não. Há algo de Silvio Berlusconi em Edmundo Budiño, o crápula milionário que, a despeito de todas as suas falcatruas, se converte numa espécie de reserva moral da nação. Uma nação formada por pessoas que prezam a opulência sem dar a mínima para a origem dela. Vigorosa, a narrativa é filtrada pelos olhos de Ramón Budiño, filho do magnata e seu extremo oposto no campo das idéias e dos atos. Mas mesmo a integridade de Ramón é maculada por uma resignação atroz, por uma franca incapacidade de tomar as rédeas do jogo, partir para o ataque e desferir o golpe mortal. Gracias por el Fuego é um romance de idéias. E a realidade que ele desvela é uma amostra inequívoca de como a ausência de escrúpulos coletiva pode sepultar uma nação.
Alguns trechos:
“Como quer que eu não despreze as pessoas, se as pessoas me aceitam como sou? Desde o começo foi para mim uma tentação espantosa: estafá-los, fodê-los. Mas isso sim, prometendo-me formalmente que ao primeiro sinal de alerta, ao primeiro sintoma de que sua sensibilidade funcionava, não teria inconveniente em retroceder. Vou dizer mais ainda: quando rapaz pensei que queria saber onde estava o fundo deste país, porque só sabendo onde está o fundo verdadeiro uma pessoa pode apoiar-se. Comecei minhas sondagens. Uma mentira e não toquei no fundo; um embuste e tampouco; uma estafa monetária, e nada; uma fraude moral e menos ainda; coação, pressões, chantagem, e zero; agora distribuo armas para os filhinhos de mamãe, levo a cabo campanhas caluniosas. Mas confesso que estou me aborrecendo. Será que este país não tem fundo? (...) Sempre há alguém que pode ser comprado, ou não tem colhões suficientes, ou que tira um cigarro e encolhe os ombros. Eles não sabem o mal que me fizeram. Porque sou obstinado; tenho a obsessão de encontrar esse fundo; e na busca me aviltei. Agora, mesmo que o encontrasse, creio que não me deteria. Eu mesmo me sinto podre por dentro.”
“E se, como é quase certo, tudo vai continuar igual, estarei consciente de minha própria corrosão, desta espécie de abulia doentia que me ataca antes de toda decisão importante. Além disso, e a esta altura, quem não tem culpa? Quem pode viver neste país, neste mundo, neste tempo, de acordo com seus princípios, suas normas, sua moral, quando na realidade são outros que ditam os princípios, a moral e as normas? Além disso, esses outros não consultam ninguém. Todos estamos misturados com todos. Ninguém é quimicamente puro. O marxista trabalha, por exemplo, num banco. O católico fornica sem pensar na sagrada reprodução da espécie, ou fazendo o possível para evitá-la. O vegetariano convicto come resignadamente seu churrasco. O anarquista recebe um salário do estado. Quem pode viver as vinte e quatro horas do dia num acordo total com seu Deus, sua consciência, seu fanatismo ou credo? Nobody.”
“Neste país em que os escassos revolucionários por vocação suspenderiam sua revolução por causa do mau tempo, ou a adiariam até abril para não perder a temporada de praia, neste amorfo país de andrajosos que votam em milionários, de peões rurais que são contra a reforma agrária, de uma classe média que cada vez encontra mais dificuldade para imitar os tiques e os coquetéis da alta burguesia e no entanto pensa na palavra solidariedade como se se tratasse do sétimo círculo infernal.”
“As boas coisas que minha infância anunciou, as proteções, as ousadias, ficaram todas no caminho, e o recordar se torna então um mero registro de frustrações.”
6 comentários:
Seja bm-vindo a Mario Benedetti, meu amigo Paulo. O sujeito de fao é muito bom. Também eu fui iniciado no Mario com essa Gracias por el fuego, uma graça de romance. Nele dá pra entrever um quê de Graciliano (de Angústia) e umas boas pitadas de ironia machadiana. De resto, goze com o Mario. E quando tiver tempo, leia A trégua, dele.
Abraço!
É, o cara é bom, e há um desencanto doloroso na forma com que ele olha o mundo. E, claro, A Trégua será o próximo. Até comprei na Submarino, mas depois eles não tinham mais em estoque e fiquei na mão (bem, eles devolveram o dinheiro). Preciso voltar aos latino-americanos, dos quais andava afastado havia um bom tempo.
Grande abraço.
Cara, sabe que esse é o livro que menos gostei do Benedetti? "A trégua" ainda é imbatível, mas ele tem outras boas coisas, como "Montevideanos" e "Quem de nós".
Bem, então o cara é mesmo muito bom, embora, como eu tenha dito, este livro funcione mais como uma declaração de princípios que como um romance, pois é meio desigual. O próximo será A trégua, que acabei não conseguindo comprar.
abs
Oi, Paulo,
Você já havia me falado do livro, e agora fiquei mais interessada, ao ler seu texto, como sempre ótimo.
Os comentários do Ricardo e do João também contribuiram para aguçar a vontade...
beijo
Obrigado, Nina.
É, precisamos conhecer melhor Mario Benedetti, já estou correndo atrás de A Trégua novamente. Um novo autor é um novo país que a gente conhece, né?
Outro beijo pra você.
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