Existe o amor que enternece, mas há também o amor que devasta. Sobreviver à perda de alguém que se ama é seguir em frente com algo em nós amputado, algum órgão imaginário que começa no estômago e termina na garganta. Um sofrimento que nos faz, como na canção de José Miguel Wisnik, cantar e gritar “de lamento e luto”, para no final arrematar: “Te amarei eternamente e ainda depois”. Enfim, permanecemos e prosseguimos, e essa é a dor suprema: permanecer e prosseguir quando aquilo que nos fazia viver, nosso passaporte para a plenitude, se extingue inapelavelmente, como um diamante no ralo.
É dessa dor que fala A Trégua, de Mario Benedetti. Um pequeno e valioso ensaio sobre a inevitável incompletude do amor, por mais que tentemos trazê-lo para nós, protegê-lo, criar em torno dele um invólucro invulnerável. Uma novela outonal, implacavelmente triste, que ao final deixa em nós um travo de amargura. A Trégua me lembrou um romance pouco conhecido de Balzac que li aos 13 anos, chamado O Lírio do Vale. Ambos tratam do mesmo tema, embora de forma radicalmente diferente. Benedetti também me fez recordar de outros romances e contos que falam sobre o amor dilacerado, aquele sentimento em carne viva que pode levar fortalezas à ruína. Textos que em épocas diferentes incutiram em mim o medo da perda, o pavor de continuar mesmo com uma hemorragia na alma.
Lembro, por exemplo, de Adeus às armas e do seu parágrafo final, que Hemingway reescreveu dezenas de vezes até atingir o ponto máximo de depuração e o mínimo de autocomplacência: “Era como se eu estivesse me despedindo de uma estátua. Depois de um instante, saí para a rua e regressei ao hotel a pé, lentamente, debaixo da chuva”. Lembro também de Riobaldo, devastado pela morte de Diadorim e simultaneamente descobrindo o seu verdadeiro sexo em Grande Sertão: Veredas: “Aqui a estória se acabou. Aqui a estória acabada. Aqui a estória acaba”. Lembro, ainda, do velho ateu confrontado com a fé da mulher que amou e perdeu, em Fim de Caso, de Graham Greene: “Oh, Deus, você já fez o bastante, já me privou do bastante, estou cansado e velho demais para aprender a amar, deixe-me em paz para sempre”. E por aí vai.
Mas há os contos também. Aquele de Bukowski, A Mais Linda Mulher da Cidade, sobre uma garota belíssima (perfeitamente encarnada no cinema por Ornella Muti) que provocava cortes impiedosos no próprio corpo até dar cabo de si mesma, deixando o seu amante reduzido a um tronco oco: “A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada”. Ou uma história pouco conhecida de García Márquez, chamada O Rastro do Teu Sangue na Neve: “Foi embora sem se despedir, sem nada a agradecer, pensando que a única coisa que necessitava com urgência era encontrar alguém para arrebentar a correntadas, para se desquitar de sua desgraça”.
Os trechos acima evidenciam reações distintas, que vão da revolta ao ensimesmamento, passando pela indiferença e pelo conformismo. O improvável herói de meia-idade de A Trégua, Martín Santomé, recolhe-se a um sentimento difuso: “Em algumas ocasiões, não posso captar os matizes que separam a inércia do desespero”. Para o personagem de Benedetti, prosseguir é um martírio sem sentido, um caminhar sem norte até que a própria morte o resgate e redima. Dor, em suma, vã e estúpida como costumam ser as dores mais avassaladoras. A Trégua nos leva a ela aos poucos, em conta-gotas, até o momento do espasmo.
***
“É evidente que Deus me concedeu um destino escuro. Nem sequer cruel. Simplesmente escuro. É evidente que me concedeu uma trégua. A princípio, relutei em acreditar que isso pudesse ser a felicidade. Resisti com todas as minhas forças, depois me dei por vencido e acreditei. Mas não era a felicidade, era apenas uma trégua. Agora estou outra vez metido em meu destino. E é mais escuro do que antes, muito mais.”
6 comentários:
Nesse seu texto, você falou de um dos meus livros preferidos "Fim de Caso". E de um dos meus contos preferidos "O rastro do teu sangue na neve".
Não li o livro de Benedetti, mas vou comprar. Já sei que vou gostar.
E acho que tenho muitos lugares escuros na minha alma antiga...
Bj
Oi, Nina
Mais uma vez nossos gostos literários se misturam, né?
A Trégua é um belo livro, mas que vai nos ganhando aos poucos, principalmente do meio para o final. É muito bom esse tal de Benedetti.
Sabe que nunca consegui reler O rastro do teu sangue na neve? Doeu demais quando li. Ontem, retirei o livro da estante e me detive apenas nas páginas finais, para pescar uma frase. Lembrava bem dele, como de todos os outros que citei. É o poder da boa literatura.
Um beijo.
O melhor texto que li sobre a "A trégua"...
Obrigado, meu velho. Ainda mais vindo de você.
abs
Li no ano passado "A Trégua", primeiro livro que li de Benedetti. Comecei bem, logo com uma obra-prima inquestionável. É daqueles livros curtos como "Pedro Páramo", de Rulfo, por ex., que ficam na nossa memória para sempre. Recomendo com ênfase (os 2 citados acima). Belo texto esse seu, o meu domingo ficou melhor depois de lê-lo. Parabéns!
Obrigado, Tácito.
É, A Trégua nos pega de jeito quando menos esperamos. Um belo livro. Pedro Páramo é outro grande romance, embora de natureza diametralmente oposta à do de Benedetti. Até tenho um texto sobre ele aqui no blog.
Grande abraço.
p.s. - Acompanho o seu trabalho no Substantivo Plural, um site de cultura excelente. Parabéns a você também.
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