quinta-feira, 8 de julho de 2010

Gangrena


Num ensaio sobre Anton Tchekhov, publicado semana passada na Folha de S.Paulo, o poeta e tradutor Leonardo Fróes utilizou a expressão “gangrena social” para definir o universo retratado com maestria pelo escritor russo em seus contos. Ele se refere ao início da derrocada do império czarista russo, nas últimas décadas do século 19, quando os avanços tecnológicos começavam a deixar para trás a Rússia essencialmente agrária e cronicamente atrasada. Fróes recorre a frases como “sociedade em fase terminal, que apodrecia por inércia” e “que sofre, sobretudo, de estreiteza mental”. É essa sociedade que o criador de As Três Irmãs e A Dama do Cachorrinho espelha em seus textos: “Clinicamente, como o médico praticante que foi, Tchekhov observa e anota os sintomas que ausculta no corpo social gangrenado”, registrando “a ganância desmedida de uns, a boçalidade desesperada de outros, o desânimo, a obstinação, a esperteza”.

Passados mais de 100 anos, sabe-se que a Rússia não reservou um mundo melhor para os descendentes daquela sociedade gangrenada. O império czarista deu lugar a uma leva de ditadores sanguinários e estultos, que provocaram a morte de milhões de seres humanos em execuções em massa ou nos campos de trabalhos forçados na Sibéria, e hoje, com a União Soviética devidamente retalhada em pequenas repúblicas paupérrimas, o que se vê é corrupção generalizada, autoritarismo e conflitos étnicos irremovíveis.

Mas o que mais impressiona no texto de Fróes é a semelhança entre a descrição que ele faz da Rússia czarista do século 19 e a realidade que vivemos no Brasil do século 21. Impossível não reconhecer um corpo social gangrenado neste país permanentemente assolado pela violência urbana endêmica, pela paralisia do poder público, pelos abismos entre classes e pela absoluta ausência de premissas éticas. Só uma sociedade em fase terminal é capaz de gerar o câncer da brutalidade, que se espalha por todos os órgãos, veias e vísceras. O caso do goleiro Bruno é sintomático, pela inexistência de qualquer valor moral envolvido. Mata-se um ser humano como quem se livra de uma dor de cabeça tomando uma aspirina. De maneira prosaica, como quem entrega uma pizza, recorre-se a expedientes macabros como entregar uma mão e o resto do corpo de uma mulher para que cães façam o serviço sujo de tornar invisível a prova de um crime estarrecedor.

Tudo nessa história deixa entrever o apodrecimento generalizado: o atleta de origem pobre e personalidade torpe, que enriquece mas não é capaz de deixar para trás a escória onde nasceu. A garota amoral, que via num relacionamento forçado com um homem rico e famoso a oportunidade de deixar essa mesma escória. O pai da garota, condenado por estupro no passado. O amigo do jogador, disposto a tomar qualquer medida para o comparsa não sair chamuscado. O adolescente que participa de um crime bárbaro sem aparentemente se horrorizar em fazer parte dele. Tchechov certamente teria dificuldade em auscultar esse organismo gangrenado, por se tratar de uma enfermidade talvez ainda mais grave do que aquelas que diagnosticou na velha Rússia, com suas infindáveis hordas de famintos. Aqui é a barbárie que toma conta, se alastrando a passos largos rumo a lugar algum.

4 comentários:

Anônimo disse...

Porra!!!
Nada a acrescentar, apenas aquiescer o lastimável...

Paulo Sales disse...

A lástima também se alastra.
abs

Mário Viana disse...

Excelente análise, Paulo! Juntar Tchecov e Bruno é jogada de mestre. E mostra que a arte do velho russo não é assim tão distante de nós quanto os diretores esnobes tentam provar... montando as peças de um jeito q ninguém se aproxima delas. Enfim.

Paulo Sales disse...

Obrigado, Mário
Talvez o que mais aproxime Tchekhov da nossa realidade é o fato de que evoluímos muito pouco como civilização nos últimos 100 anos, a despeito dos avanços tecnológicos e de todos os "ismos" que surgiram depois dele.
Grande abraço.