terça-feira, 7 de setembro de 2010

Caminho dos cavalos


Até dois anos atrás, eu morava num apartamento de localização singular. Ficava no alto de uma ladeira, em frente à mata fechada do Parque da Cidade. Se virasse à esquerda e descesse a ladeira, chegaria a uma das principais avenidas de Salvador. Se prosseguisse pela direita, entraria num dos bairros mais miseráveis e – por conseqüência – violentos da cidade: a Santa Cruz. Eu gostava de circular por esse bairro. Na época em que ainda fumava, ia comprar cigarros nos mercadinhos da avenida principal, que tem um comércio fértil e movimentado. E costumava pegar um atalho por uma ruela que margeava o parque (cercado por um muro de concreto) e também a parte mais pobre do bairro. Um lugar desolador, onde a coleta de lixo não chega e homens em idade ativa circulam sem ter o que fazer, em meio a crianças maltrapilhas, velhos, carcaças de carros, cavalos, galinhas e muitos cachorros. De tanto passar por lá, já conhecia os animais de vista e dava nomes a eles. Eu e minha filha chamávamos essa passagem de “caminho dos cavalos”, e ela adorava um cavalo malhado, marrom e branco, que sempre víamos pelo caminho.

Mas, como já disse, é um lugar violento. Um dia, quando passei por lá, vi que alguns adolescentes cercaram discretamente o carro, como se vigiassem quem estava dentro dele. Quando passei e olhei pelo retrovisor, um deles portava um revólver enorme, que não fazia questão de esconder. Eram umas 7 da manhã, e várias pessoas caminhavam pelo local, indo para o trabalho. O cara poderia ter me matado, se quisesse. A partir daí, me dei conta do que já sabia em teoria: como uma metástase, o tráfico de drogas lançou seus tentáculos por toda a região, recrutando um pequeno exército de adolescentes sem camisa e muito bem armados. Adolescentes que morrem feito moscas em confrontos com a polícia ou entre grupos rivais. Atualmente, nessa mesma rua, há tiroteios terríveis a qualquer hora, provocando invariavelmente vítimas entre a população impotente. Voltei apenas uma vez ao caminho dos cavalos, fugindo de um congestionamento monstruoso que parou Salvador num dia de tempestade. Nesse dia, não prestei atenção aos cavalos e cães, apenas me fixei nas pessoas que circulavam por ali, temendo levar um tiro. A inocência tinha acabado.

Quando penso num lugar como a Santa Cruz, percebo como o percurso que falta para Salvador (e por conseqüência a Bahia e o Brasil) se tornar uma cidade digna é praticamente intransponível. Naquelas ruelas sem calçamento e naqueles casebres sem reboco, a herança da escravidão ainda é vívida como uma chibatada. Os mais de cem anos que separam este 7 de setembro de 2010 da abolição da escravatura são apenas um sopro, um pequeno hiato no qual o país evoluiu muito menos do que o mínimo necessário, e no qual a leva de miseráveis só fez se multiplicar, reproduzindo em escala industrial a senzala de outros tempos. A miscigenação racial não representou uma transferência de renda racial, e hoje brancos e negros permanecem em compartimentos estanques, como passageiros da primeira classe e da classe econômica, que quase nunca se esbarram. No meio ficamos nós, encantados com as benesses da classe executiva, mas loucos por um upgrade. Resta saber aonde esse vôo vai nos levar. Provavelmente à Suíça, mas com uma escala no Haiti, para o pessoal da rabeira poder desembarcar.

6 comentários:

claudina disse...

Obrigada, amigo, por conseguir decodificar meus sentimentos em relação à nossa louquíssima realidade... beijos

Paulo Sales disse...

Obrigado a você, Antonia, pela presença aqui no blog. Não é fácil entender esta realidade, mas vou tentando.
Um beijo.

Leo Maia disse...

Muito bom o texto, PSales! Hoje, em São Paulo, convivo bem menos com essa realidade dura de bairros pobres e violentos. Aqui, como você bem sabe, a concentração é bem maiior nas periferias. Em Salvador, as coisas são bem amis misturadas, eu mesmo morava entre o Calabar e o Alto das Pombas, no Jardim Apipema. Está tudo muito complicado, mas vejo com especial tristeza a condição de nossa cidade...

Paulo Sales disse...

Obrigado, Leozão.
São níveis diferentes de miséria e de exposição dela. Mas mesmo em SP, quando a gente circula pelo centro velho, é uma terra desolada. Aí você passa a Paulista e se depara com aqueles carros enormes e aqueles prédios caríssimos. É um mal brasileiro. Mas Salvador vive um drama único, e - como eu disse no texto - praticamente intransponível.
Grande abraço.

Marcos disse...

Fala, seu Paulo. De certa forma acho muito boa essa caracteristica de SSA, pois faz com q a pobreza nao seja esquecida apenas pelo fato de estar longe, num bairro da periferia. Nao podemos empurrar a "sujeira" pra debaixo do tapete e sim fazer uma limpeza geral. Espero q um dia todos os soteropolitanos possam ter um certo nivel de conforto, indepentende de estarem num bairro pobre ou nobre. É utopico, mas nao perco as esperancas. Abs!

P.s: sou lider da serie B! Esse fim de ano 70% da capital vai ficar mais feliz, com ou sem dinheiro no bolso! BBMP! \o/

Paulo Sales disse...

A pobreza não deve ser esquecida nunca, Pantico. Mas o ideal é que que ao longo de anos, décadas e séculos ela seja mitigada, e se torne cada vez mais pálida. Infelizmente, não percebo uma evolução nesse sentido por aqui, e meu ceticismo não deixa espaço para utopias.
p.s. - Parabéns pelo Baea, quero ver o tricolor na Série A em 2011