terça-feira, 18 de janeiro de 2011
Novo feudalismo
Não lembro quem escreveu que a internet, ao invés de democratizar a informação e incentivar o pluralismo, está na verdade criando pequenos feudos onde as pessoas ficam entrincheiradas em suas opiniões, cada vez mais arraigadas e refratárias ao que o outro tem a dizer. Quando digo “o outro”, me refiro aos que possuem opiniões contrárias às da maioria e as expressam de algum modo, seja em artigos na imprensa, textos em blogs ou outro meio qualquer de comunicação. Não sei se é culpa da internet, mas o fato é que estamos ficando intolerantes. E essa espécie de “novo feudalismo”, na qual cada um é dono do seu quadrado e tudo que vem de fora é desqualificado sistematicamente, vem ganhando ainda mais força nos sites e blogs de política.
Ontem, li no blog do jornalista Luís Nassif uma nota afirmando que o historiador inglês Eric Hobsbawm elogiava o ex-presidente Lula, definindo-o como “o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil”, acrescentando que “no Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles”. Uma bela frase vinda de um belo intelectual, humanista forjado no marxismo e na convulsão das duas guerras mundiais, que admiro profundamente desde que li A Era dos Extremos. O estranho, apenas, é que se trata de uma frase dita há dois anos, o que curiosamente não é informado no blog. Mas o que mais me chamou a atenção foi o espaço reservado aos comentários dos leitores. Quase sem exceção, eles elogiavam Hobsbawm e aproveitavam para desancar o poeta Ferreira Gullar, que no domingo passado escreveu, em sua coluna na Folha de S.Paulo, um virulento ataque ao ex-presidente. Como se uma opinião automaticamente excluísse a outra.
Tanto Hobsbawm quanto Gullar apresentam argumentos pertinentes para justificar seus elogios e críticas, respectivamente. Pode-se concordar com eles ou não, mas vale a pena ler o que têm a dizer, para o bem de uma consciência crítica plenamente formada. Foi o que acredito ter feito. Concordo em parte com Gullar, embora ache que Lula foi um dos maiores presidentes – se não o maior – que o Brasil já teve. Errou? Muito, sobretudo no primeiro mandato. E a forma demagógica com que atuou nos últimos anos é quase tão condenável quanto o apoio irrestrito a José Sarney, o descaso diante das denúncias do mensalão, a aproximação com o Irã e a recusa teimosa em reconhecer os méritos do seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Essa é só uma amostra da fartura de equívocos cometidos na era Lula. Mas poderia elencar aqui uma série de virtudes do mesmo governo que fizeram desse período uma época sem precedentes, das quais o combate à exclusão social e à miséria absoluta foram as mais louváveis.
Fechar os olhos para essas contradições é agir com irresponsabilidade e desrespeito à história. E chamar um dos maiores poetas e intelectuais brasileiros de “gagá”, “fichinha” ou “representante das elites mais reacionárias do Brasil” é não aceitar a opinião do outro, por mais embasada e honesta que seja – e é, no caso de Ferreira Gullar. Mas na internet essa parece ser mesmo a regra. Os esquerdistas se entrincheiram em blogs como o de Nassif e os direitistas ficam aquartelados no portal de um Reinaldo Azevedo, por exemplo (muito embora o conceito de direita e esquerda, hoje, seja absolutamente nebuloso).
Com isso, estimulamos o sectarismo e reprimimos a capacidade primordial de pensar por conta própria, discutir e convencer ou ser convencido. Afinal, é mais fácil se esconder em comentários anônimos ou vociferar contra o oposto (quase sempre com um vocabulário simplório e raciocínios que não se completam) como se ele fosse um inimigo da verdade. Neste universo digital de compartimentos estanques, o consenso se torna a regra e quem pensa diferente que vá procurar sua turma. Afinal, a internet não é uma mesa de bar, onde pessoas de todo tipo sentam, bebem, conversam, discutem e trocam conhecimento mutuamente, enriquecendo o debate sobre as coisas que realmente importam.
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11 comentários:
Perfeito.
É interessante notar que isso acontece na maioria dos casos no âmbito da política e devido a disputa pelo poder entre PT e PSDB, dois partidos semelhantes em sua proposta de inventar uma social-democracia à brasileira. Se existisse um pouco de simetria ideológica na política pátria, o normal seria esses dois partidos atuarem em aliança, mas não. Como disse, o troço é a disputa pelo poder. Há um outro problema: Ferreira Gullar tem uma birra, uma coisa mal resolvida com o PT, certamente advinda do fato de que o partido absorveu para si a maioria da lideranças sindicais, acadêmicas e estudantis que eram cortejadas pelo Partidão de Gullar. Com o início da redemocratização, na década de 80, o PCB ensaiava passos em direção à sua posterior polêmica interna: seria um partido de massas ou de quadros? Com o aparecimento do PT e a adesão de quase toda a esquerda, mesmo com a, à época, simpatia de Roberto Freire (que a terra lhe seja leve), o partidão não ficou sendo nem uma coisa, nem outra. Ferreira Gullar põe isso no passivo petista.
Concordo plenamente com você, Armundo. A disputa pelo poder entre PT e PSDB explica essa e muitas outras questões da política brasileira, embora eu ache que a intolerância na internet seja fruto de um problema ainda mais amplo. São partidos muito parecidos, com origem na secessão provocada pela ditadura e um olhar até certo ponto semelhante sobre o desenvolvimento do país. E sua leitura sobre a consolidação do PT como partido hegemônico da esquerda, em detrimento do PCB, é muito interessante. É a primeira vez que leio uma explicação plausível para a relação de antagonismo entre o PT e Gullar, um intelectual de formação marxista.
Um abraço e obrigado pelo comentário.
Cirúrgico, o post, Paulo.
Compactuo tanto da admiração pelo ex-presidente quanto da decepção dos deslizes do primeiro mandato. E, sobretudo, concordo com a proposta da diversidade de opiniões. O que só enriquece o debate, o país, a cidadania.
A diversidade é fundamental sempre, João, sobretudo para que não tenhamos trincheiras monolíticas, refratárias a opiniões que em outro caso poderiam ser de extrema valia. E Lula é uma persona muito mais complexa do que parece à primeira vista, daí ser tão difícil defini-lo.
Grande abraço.
Esse entricheiramento fetichista em suas opiniões e o não aceite da diversidade determinam o baixo nível da discussão política brasileira, onde, principalmente na web, imperam os adjetivos e substantivos adjetivados do tipo 'petralha', 'PIG' e outros. Vejamos o caso de Lula, onde a coisa beira a irracionalidade. O cara, desde sindicalista, sempre acreditou que um dos negócios era dinheiro no bolso do trabalhador/consumidor (política de rendas). Como presidente, promoveu aumentos reais do salário mínimo, das aposentadorias, ampliou consideravelmente o Bolsa Família, promoveu a difusão do crédito popular, ou seja, ampliou o potencial de consumo e fortaleceu o mercado interno (que foi crucial para enfrentar a crise de 2008). Nao fez, a rigor, outra coisa senão apontar para algo parecido com um capitalismo amadurecido (Delfim Neto, que já o achava 'um sindicalista diabolicamente inteligente, chegou ao exagero de chamá-lo de 'salvador do capitalismo brasileiro'). Mas o que fazem os ditos porta-vozes e ideológos no nosso capitalismo? Tratam-no de uma maneira que apenas denota o seu preconceito de classe, o seu estranhamento em ter na presidência alguém alheio ao estamento, ainda que não o tenha confrontado, ignorando os grandes benefícios que a sua administração trouxe ao país. O pior é que esse tipo de comportamento excludente acontece justamente numa época em que adversários políticos deveriam (ou deverão) sentar para discutir as reformas que o estado e a sociedade brasileiros exigem há algum tempo. (Desculpem o comentário longa-metragem).
Obrigado pelo comentário longa-metragem, Anrafel.
Você toca num assunto interessante, a forma como Lula é visto por quem teoricamente comanda as ações que movem o país. Há preconceito e obtusidade, sem dúvida, o que é terrível e que já devia ter sido superado. Da mesma forma, percebo certa dificuldade entre os simpatizantes do lulo-petismo em receber críticas ao governo, muitas delas procedentes e feitas de forma clara e isenta.
Só não entendi uma coisa: quando você fala em "entricheiramento fetichista em suas opiniões e o não aceite da diversidade" está se referindo ao que eu escrevi? Porque eu penso justamente o contrário, como está exposto no texto.
abs
Nem pensar nisso. Refiro-me à tendência dos internautas encastelar-se como 'nassifistas', 'reinaldistas', 'mainardistas', por exemplo, dimensionando a qualidade das suas opiniões pelo metro da concordância ao redor. Exatamente o oposto do que você explicitou no post, que é a defesa da democracia, do pensar diferente.
(Gostei muito do texto transcrito no Caderno2+. Quantos não tentaram, quantos não chegaram às mesmas conclusões?)
Obrigado, Anrafel. Democracia e diversidade acima de tudo.
abs
Paulo,
Embaralhei os nicks. Esse Anrafel também pode ser chamado de ArmundoAlves.
Um caso clássico de dupla personalidade (hehehe). De qualquer modo, obrigado pelos comentários e principalmente pelo conteúdo deles, Armundo Anrafel.
abs
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