Gosto de ficar
por dentro das novidades da alta gastronomia. Saber, por exemplo, o que Alex
Atala anda fazendo no D.O.M. para que o restaurante tenha alcançado o quarto
lugar entre os melhores do mundo, segundo a revista Restaurant. Ou
quem sabe tentar entender o uso da química nas criações de Ferran Adrià, chef
responsável por subverter vários conceitos culinários no extinto El Bulli, que
durante anos freqüentou o topo da mesma lista. Ou, ainda, conhecer o que servem
os restaurantes três estrelas de Paris, como o Epicure ou o Guy Savoy.
É um
universo ao qual pouquíssimos abonados (entre os quais não me incluo) têm
acesso, onde são servidas preciosidades inusitadas, como ostras com tutano,
ouriço-do-mar com musse de ovo, bochecha de porco cozida em especiarias com
batata ou rim de cordeiro com abacaxi e purê de cará com priprioca. Um mundo à
parte, que revela o extremo do bom-gosto e da sofisticação alcançados pelo
homem, após milênios caçando porcos selvagens com lanças e comendo com as mãos
em frente a fogueiras. Mas é um mundo que não esconde o nosso outro lado: o dos
predadores cotidianos que atingem, na alimentação de massa, requintes de
crueldade.
Quando um
ojo de bife chega à nossa mesa, tostadinho por fora e sangrento por dentro,
aguçamos nossos sensores pré-históricos e em seguida nos desconectamos da
origem dessa carne, de qual elemento ela faz parte. Quem viu o filme Amarelo
Manga sabe bem como os bois são abatidos e depois retalhados, para depois
virarem picanhas, fraldinhas ou alcatras. Já escrevi há algum tempo aqui no blog, refletindo sobre um texto de Ian McEwan, que nossas compaixões são
seletivas. Temos pena do animal que morre, mas não nos culpamos por degustá-lo,
seja grelhado, ao molho ou reduzido a porções minimalistas, como vemos nos
restaurantes de alta gastronomia. É como se, aos nossos olhos famintos, os ojos
de bife e seus congêneres dessem em árvores.
Com relação
aos frangos, a situação não é muito melhor: eles passam toda a sua curta
existência andando em círculos num ambiente superpovoado e fortemente
iluminado, para que não repousem e comam mais, ficando maiores e prontos para o
abate em menos tempo. Mas nada supera o que fazemos com os caranguejos: eles
são jogados em água fervente, e muitos espirram sua urina ao tocarem a água, o
mais próximo que podem chegar de um grito de dor. É bem possível que todo esse
sofrimento chegue de alguma forma até nós. Li em algum lugar que animais
confinados vivem sob estresse contínuo e liberam substâncias prejudiciais ao
nosso organismo. Uma vingança involuntária, talvez.
Partindo de
tudo isso, a pergunta que faço é: precisamos causar tanto sofrimento? Se
prestarmos atenção, fazemos com os animais algo muito semelhante ao que os
nazistas faziam com seus prisioneiros nos campos de concentração. Vale
ressaltar, antes que me acusem de hipócrita, que sou um apreciador voraz de
carnes, peixes e mariscos, e que não pretendo abdicar desse prazer. Então por
que levanto essas questões? Bem, talvez porque elas me incomodem de alguma
maneira. Lastimo a morte de um animal na rua, o gato ou cachorro vira-lata que
se vê cara a cara com o pára-choque de um carro. Deploro o que se faz com
grandes mamíferos, como baleias, gorilas e rinocerontes. Portanto, não poderia pensar
diferente em relação aos pobres animais criados em cativeiro, cuja existência
tem como único objetivo nos alimentar.
O fato é
que, ao matarmos para comer, deixamos às mostras o quanto ainda estamos no início da
nossa evolução como espécie. Trata-se apenas de mais uma manifestação do nosso
primitivismo, como guerrear em estádios ou morrer no trânsito. Por mais que
sejamos capazes de conceber pratos refinadíssimos em restaurantes não menos requintados,
somos acima de tudo bichos selvagens e agressivos buscando desesperadamente a
perpetuação da espécie. Em pleno século 21, ainda uma aurora para a humanidade,
levamos nossos filhotes famintos para lanchar hambúrgueres no Mc Donald's. Igualzinho
às leoas, que matam zebras para dar de comer aos seus.
6 comentários:
Pensei isso ontem, observando como os colegas liam horrorizados uma notícia do roubo de ossadas humanas no cemitério de Madre Deus que seriam usadas pra fazer sopa. Parece que eram adolescentes, inconsequentes como fomos um dia, que queriam dar o "manjar" pra um deficiente físico e depois colocar na internet.
Nossa, Socorrinho, mas esse caso é bárbaro. Não sei se é só inconsequência, me parece uma coisa mais grave, amoralidade mesmo. Horrível. Revela todo o primitivismo da espécie,com internet e tudo.
Barbarismo X requinte, numa belíssima reflexão. Vlw!
Valeu, Laura. Engraçado como as duas coisas caminham juntas. Bjs
acabo de conhecer seu blog e de cara encontro um texto que traduz minhas convicções de vegetariana. pra mim é inconcebível torturar e matar seres com tamanha crueldade. pense que porcos têm inteligência a ponto de atenderem pelo nome, bois choram a morte de seus iguais, carneiros choram derramando lágrimas... enfim, o ser humano está anos-luz de distancia no item humanidade...
Seja bem-vinda, Angela.
Como eu disse no texto, ainda somos bichos selvagens e agressivos. Mas acho que ultrapassamos nossos limites éticos na forma como criamos e matamos animais, numa linha de produção que ignora a dor e o sofrimento. Ainda não atingi o seu grau de evolução, nem acredito que consiga. Mas admiro o fato de você não participar dessa matança coletiva.
Obrigado pelo comentário.
Postar um comentário