terça-feira, 8 de maio de 2012

Menu de maldades




Gosto de ficar por dentro das novidades da alta gastronomia. Saber, por exemplo, o que Alex Atala anda fazendo no D.O.M. para que o restaurante tenha alcançado o quarto lugar entre os melhores do mundo, segundo a revista Restaurant. Ou quem sabe tentar entender o uso da química nas criações de Ferran Adrià, chef responsável por subverter vários conceitos culinários no extinto El Bulli, que durante anos freqüentou o topo da mesma lista. Ou, ainda, conhecer o que servem os restaurantes três estrelas de Paris, como o Epicure ou o Guy Savoy.

É um universo ao qual pouquíssimos abonados (entre os quais não me incluo) têm acesso, onde são servidas preciosidades inusitadas, como ostras com tutano, ouriço-do-mar com musse de ovo, bochecha de porco cozida em especiarias com batata ou rim de cordeiro com abacaxi e purê de cará com priprioca. Um mundo à parte, que revela o extremo do bom-gosto e da sofisticação alcançados pelo homem, após milênios caçando porcos selvagens com lanças e comendo com as mãos em frente a fogueiras. Mas é um mundo que não esconde o nosso outro lado: o dos predadores cotidianos que atingem, na alimentação de massa, requintes de crueldade.

Quando um ojo de bife chega à nossa mesa, tostadinho por fora e sangrento por dentro, aguçamos nossos sensores pré-históricos e em seguida nos desconectamos da origem dessa carne, de qual elemento ela faz parte. Quem viu o filme Amarelo Manga sabe bem como os bois são abatidos e depois retalhados, para depois virarem picanhas, fraldinhas ou alcatras. Já escrevi há algum tempo aqui no blog, refletindo sobre um texto de Ian McEwan, que nossas compaixões são seletivas. Temos pena do animal que morre, mas não nos culpamos por degustá-lo, seja grelhado, ao molho ou reduzido a porções minimalistas, como vemos nos restaurantes de alta gastronomia. É como se, aos nossos olhos famintos, os ojos de bife e seus congêneres dessem em árvores.

Com relação aos frangos, a situação não é muito melhor: eles passam toda a sua curta existência andando em círculos num ambiente superpovoado e fortemente iluminado, para que não repousem e comam mais, ficando maiores e prontos para o abate em menos tempo. Mas nada supera o que fazemos com os caranguejos: eles são jogados em água fervente, e muitos espirram sua urina ao tocarem a água, o mais próximo que podem chegar de um grito de dor. É bem possível que todo esse sofrimento chegue de alguma forma até nós. Li em algum lugar que animais confinados vivem sob estresse contínuo e liberam substâncias prejudiciais ao nosso organismo. Uma vingança involuntária, talvez.

Partindo de tudo isso, a pergunta que faço é: precisamos causar tanto sofrimento? Se prestarmos atenção, fazemos com os animais algo muito semelhante ao que os nazistas faziam com seus prisioneiros nos campos de concentração. Vale ressaltar, antes que me acusem de hipócrita, que sou um apreciador voraz de carnes, peixes e mariscos, e que não pretendo abdicar desse prazer. Então por que levanto essas questões? Bem, talvez porque elas me incomodem de alguma maneira. Lastimo a morte de um animal na rua, o gato ou cachorro vira-lata que se vê cara a cara com o pára-choque de um carro. Deploro o que se faz com grandes mamíferos, como baleias, gorilas e rinocerontes. Portanto, não poderia pensar diferente em relação aos pobres animais criados em cativeiro, cuja existência tem como único objetivo nos alimentar.

O fato é que, ao matarmos para comer, deixamos às mostras o quanto ainda estamos no início da nossa evolução como espécie. Trata-se apenas de mais uma manifestação do nosso primitivismo, como guerrear em estádios ou morrer no trânsito. Por mais que sejamos capazes de conceber pratos refinadíssimos em restaurantes não menos requintados, somos acima de tudo bichos selvagens e agressivos buscando desesperadamente a perpetuação da espécie. Em pleno século 21, ainda uma aurora para a humanidade, levamos nossos filhotes famintos para lanchar hambúrgueres no Mc Donald's. Igualzinho às leoas, que matam zebras para dar de comer aos seus. 

6 comentários:

Socorro disse...

Pensei isso ontem, observando como os colegas liam horrorizados uma notícia do roubo de ossadas humanas no cemitério de Madre Deus que seriam usadas pra fazer sopa. Parece que eram adolescentes, inconsequentes como fomos um dia, que queriam dar o "manjar" pra um deficiente físico e depois colocar na internet.

Paulo Sales disse...

Nossa, Socorrinho, mas esse caso é bárbaro. Não sei se é só inconsequência, me parece uma coisa mais grave, amoralidade mesmo. Horrível. Revela todo o primitivismo da espécie,com internet e tudo.

Laura Dantas disse...

Barbarismo X requinte, numa belíssima reflexão. Vlw!

Paulo Sales disse...

Valeu, Laura. Engraçado como as duas coisas caminham juntas. Bjs

angela disse...

acabo de conhecer seu blog e de cara encontro um texto que traduz minhas convicções de vegetariana. pra mim é inconcebível torturar e matar seres com tamanha crueldade. pense que porcos têm inteligência a ponto de atenderem pelo nome, bois choram a morte de seus iguais, carneiros choram derramando lágrimas... enfim, o ser humano está anos-luz de distancia no item humanidade...

Paulo Sales disse...

Seja bem-vinda, Angela.
Como eu disse no texto, ainda somos bichos selvagens e agressivos. Mas acho que ultrapassamos nossos limites éticos na forma como criamos e matamos animais, numa linha de produção que ignora a dor e o sofrimento. Ainda não atingi o seu grau de evolução, nem acredito que consiga. Mas admiro o fato de você não participar dessa matança coletiva.
Obrigado pelo comentário.