quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Terceira classe





Dos 17 aos 28 anos, viajei muito de ônibus. Era a maneira que encontrava para desafiar distâncias enormes, como o trecho da BR-116 que liga Salvador a São Paulo e que percorri inúmeras vezes quando vivi na capital paulista. Ou mesmo para conhecer outros cantos do Brasil, como Fortaleza, Porto Alegre, Brasília ou Belo Horizonte. Avião nem pensar. Como hoje, pertencia à classe média. A mesma classe média beneficiada pelo bolsa-avião involuntário que nos permitiu lotar aeroportos e atrasar voos, para desespero dos quatrocentões do ar. Agora também posso dar meu rolezinho nos saguões de embarque internacional, pagando em não tão suaves prestações a minha viagem.

A inclusão aérea, proporcionada pela inclusão social dos últimos 15 anos, deveria ser vista sob qualquer aspecto como algo positivo. Na Europa, vemos pessoas de várias classes, cores e crenças reunidas pacificamente nos salões de embarque, com voos saindo praticamente sem atraso. Assim como vemos por lá essas mesmas pessoas no metrô e nas ruas. Mas parece que não queremos ser como a Europa. Queremos manter o segregacionismo social dos velhos tempos, para evitar que aeroportos virem rodoviárias e exponham a chaga da nossa falta de educação, do nosso atraso, da postura jeca dos nossos meio-pobres. Queremos evitar pessoas como o advogado fotografado de bermuda e camiseta em um aeroporto do Rio por uma professora, ela também - provavelmente - de classe média como ele, mas que imaginava estar tirando sarro de um alien social perdido num lugar que não lhe cabe. 


Sim, somos um povo mal-educado, grosseiro, que fala alto e ouve arrocha ou sertanejo universitário no celular sem se importar com os outros ouvidos. Afinal, a inclusão social não trouxe a reboque uma educação formal decente, e nesse sentido permanecemos patinando no século 20, que escancarou nossas desigualdades existentes desde a colônia. Mas ao menos “eles” têm uma boa desculpa. Já os ricos, ah, os ricos. São aqueles que, com raras exceções, estacionam SUVs enormes no passeio, que destratam garçons, vendedores ou vigilantes por qualquer falha mínima, que se exibem com guardanapos na cabeça e fazendo trenzinho em restaurantes chiques de Paris, como a turma de Cabral e Cavendish. Nossa elite é tosca, preconceituosa e, como alguns de nossos pobres, profundamente mal-educada. O recato e a discrição não parecem ser características admiradas pelos brasileiros. Arrotamos vantagens em restaurantes, nos vangloriamos das bocas-livres, dos convites VIPs, da exclusividade a qualquer custo. 

Como consequência, estamos criando uma nova espécie de apartheid, gestando um ovo de serpente que pode ter consequências imprevisíveis. Cada vez mais nos odiamos, algo que pode ser mensurado facilmente nas brigas de trânsito e de torcida, nos espancamentos de negros e gays, na proliferação de quadrilhas da fé que perseguem religiões africanas. Tudo isso observado por um Estado ausente, que deixa os aeroportos lotarem, os imbecis se matarem e os inocentes se ferrarem. Não evoluímos como sociedade. Continuamos primitivos e mal-acompanhados por nações que se desenvolvem a qualquer custo, sem políticas de bem-estar social ou ambientais, como Rússia, China e Índia. É isso que queremos? Um ódio desmedido e sem sentido? No Brasil, ao contrário do que disse Sartre, o inferno somos nós.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Uma foto em preto e branco



"Alguém clamando por socorro
A 2000 km de distância
É tão longe
É como aquela velha foto
Esquecida amarelada
De teus pais andando à beira da estrada
Aquele mato aquela cachoeira
As crianças nuas
É tão longe
É como aquele tempo em que
A bondade tinha sua recompensa
Uma foto em preto e branco
De um mundo tão remoto
Não dá mais para lembrar
Aquela juventude.
Um bebê roubado sem carinho
Sem mãe sem leite
É tão longe
É como aqueles dias nos
Nossos corações
Em que antes de tudo
Imperava a felicidade.
O mato cresce revolto
Desafiando os céus."

Esse poeminha foi escrito no dia 10 de fevereiro de 1991, aniversário de minha mãe, durante uma viagem a Recife, por um rapaz que acabara de completar 21 anos e dava vazão a uma inevitável propensão à nostalgia, algo inusitado para alguém tão jovem. Talvez fosse um recado ao homem de 44 anos, fios brancos em profusão dominando paulatinamente o cabelo e a barba, que agora bebe os últimos goles de um vinho espanhol no aconchego de sua casa. Difícil crer que o “tão longe” a que ele se refere no poema é um intervalo de pouco mais de dois anos, quase um sopro de horas para quem já atravessou tantas outras, muitas delas desperdiçadas. Há um idealismo enviesado, ou ao menos um esboço de um tempo feliz que curiosamente pertence ao passado, e não ao futuro, como se ele de certa forma já enxergasse o outrora, e não o porvir.

Mas talvez o rapaz de 21 anos já antevisse naquela época a incômoda capacidade do tempo de se converter em cinzas. Provavelmente sabia que o seu poema ficaria esquecido num armário até ser lembrado por acaso pelo seu autor, ou pela pessoa em que o seu autor se transformou, eu, tão diferente e ao mesmo tempo tão íntimo dele, como um irmão mais velho ou um velho amigo. Lembro que ficava intrigado quando ouvia minha mãe relembrar da sua infância e arrematar com um “parece que foi ontem”. Para mim, a sua aurora tinha a distância de uma eternidade, se é que podemos medir dessa forma o tempo ao qual não pertencemos. Mas a minha aurora é também medida em eternidades, embora alguns fatos permaneçam vívidos como um tropeção.

Ouvi há pouco um disco lançado em 1980, quando eu tinha 10 anos, e ele me trouxe reminiscências vívidas de casas, ruas, pessoas, casos prosaicos, sentimentos confusos, saudades avassaladoras e, principalmente, a sensação de que a memória é uma companheira de jornada muitas vezes cruel, mas da qual não conseguimos – e provavelmente não queremos – nos livrar. “Olhe bem nos meus olhos. Olhe bem pra você. O fato é que a gente perdeu toda aquela magia. A porta dos meus 15 anos não tem mais segredo. E velha, tão velha, ficou nossa fotografia. A quem é que a gente engana com a nossa loucura. Decerto a gente perdeu a noção do limite”, cantava Oswaldo Montenegro em Aquela Coisa Toda, o autor do disco que eu ouvia ainda agora. Pergunto a mim mesmo onde foram parar meus 15 anos, meus 18 anos, meus 21 anos sem portas ou segredos, abarrotados de poemas, viagens e amores que pareciam imortais. Estão aqui, em algum canto obscuro, ajudando a sustentar a essência do que sou, um emaranhado de lembranças que me impelem inevitavelmente para o futuro. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Antes do fim




Não por acaso, o que mais se vê em Nebraska, filme de Alexander Payne, são vidas desperdiçadas. Vidas escorrendo numa sala em frente à tevê ou vendo carros passar. Vidas esperando ansiosamente por um nome na sepultura. Daí ser tão comovente a tentativa vã do seu protagonista de imprimir, já nos estertores da vida, um esboço de sentido em uma trajetória que até aquele momento foi pouco mais do que um borrão, um quadro em branco. Prestes a sucumbir de vez à senilidade, Woody Grant (Bruce Dern) se agarra a uma propaganda enganosa, um folheto que diz ser ele o ganhador de 1 milhão de dólares. Para  receber o prêmio, precisa ir até Lincoln, no Nebraska. Uma distância significativa do lugar onde mora, mas nem por isso capaz de demover um homem determinado. Mais do que ganhar um bom dinheiro, o que impulsiona Woody é legar algo para depois que for embora, em vez de apenas sumir da paisagem.

Há algo do Alvin Straight de História Real, o magnífico filme de David Lynch, em Woody Grant. Ambos são velhos turrões, que se apegam a uma última cartada oferecida pela vida para se tornarem pela primeira vez protagonistas da própria história. Lançam-se pelas libertadoras estradas da América na tentativa de concretizar o seu pequeno naco de sonho e fazer um acerto de contas final com a família antes que chegue o oblívio. Tanto em Alvin quanto em Woody, o senso de urgência, de que é preciso viver enquanto há tempo, chegou tarde demais. E a velhice é território propício à proliferação de frustrações e arrependimentos altamente nocivos.

Transpondo o drama derradeiro de Woody para o nosso dia a dia, chegamos a uma conclusão implacável: não temos qualquer controle sobre o nosso destino, além do fato de que cuidarmos razoavelmente da nossa saúde eleva as nossas probabilidades. Mas são apenas estatísticas, regras cheias de exceções, que não levam em conta a brutal insensibilidade do acaso. Intimamente, projetamos nossa trajetória com princípio, fim e um meio com duração minimamente generosa. Talvez por isso, procuramos – eu pelo menos – não contar com a sorte e tratamos de realizar nossos prosaicos sonhos de felicidade fugaz. Mas é sempre muito menos do que quase todos gostaríamos.

Não sei, algo me diz que não devo contar com o futuro. Ele não é muito confiável. Basta lembrar de Tomas e Teresa no final de A Insustentável Leveza do Ser, dirigindo plenamente felizes pela estrada, pouco antes do acidente fatal. A morte encontrou os dois justamente quando superaram tudo, o fim abrupto da Primavera de Praga, as dificuldades de uma vida complicada, com amantes em série, do lado dele, e uma insegurança crônica, do dela. Recordo da vez em que chorei copiosamente enquanto subiam os créditos do filme numa madrugada solitária em São Paulo, acossado pela sensação de impotência e vazio que nos provocam as mortes no auge.

Lembro também de Tony Judt, intelectual brilhante, tomado pela esclerose lateral amiotrófica aos 60 anos, talvez o melhor momento da sua vida. Reproduzi aqui no blog o trecho em que ele fala, no livro O Chalé da Memória, que a maior frustração causada pela doença terminal é não poder voltar a viajar de trem. “Waterloo nunca mais, paradas no interior nunca mais, solidão nunca mais”. É muito doloroso. De minha parte, pretendo conhecer os países possíveis, cultivar os afetos que me são caros e aproveitar os pequenos tesouros que passam vez ou outra à minha frente. Afinal, um dia também não poderei mais andar de trem.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Viagem ao fim da noite



Um pesadelo: eu e meu irmão íamos no banco de trás de um carro. Estávamos na área externa de um hospital aqui da cidade e, ao passarmos por uma área gramada, vimos vários caixões enfileirados dos dois lados da pista. Então meu irmão disse algo como: “Não importa o que se faça, a gente acaba sempre em silêncio e sozinho”. Aquilo provocou em mim um soluço imediato, entre o choro e a falta de ar, e meu irmão me abraçou forte, tentando me consolar. Logo depois, descíamos uma ladeira íngreme à noite, agora com meu outro irmão no banco do carona conversando amenidades, e do lado de fora eu via um precipício enorme ao lado da estrada. Continuava chorando e sentindo falta de ar. Fui lançado para fora do sonho e me vi numa madrugada fria, por conta do ar condicionado. Senti uma tristeza intensa e uma sensação de confusão mental, como se não conseguisse entender a cena que acabava de presenciar. Custei a reencontrar a inconsciência.
Nunca li Freud, portanto minha interpretação do sonho é a mais rudimentar possível, embora também exista uma outra leitura plausível, mais pessoal, que não cabe contar aqui. Na minha analogia onírica, aqueles caixões pertenciam aos mortos em série que encontrei nos noticiários do dia anterior. O cinegrafista morto por um morteiro. O jovem morto por um imbecil enciumado numa festa. O pai de família morto numa briga de trânsito na frente da mulher e do filho bebê. O rapaz gay morto aos 18 anos depois de ser brutalmente espancado por um grupo. Parece claro, para mim, que a realidade ao redor vem provocando efeitos nocivos na minha inconsciência, interferindo nos pacatos devaneios que desenvolvo na zona abissal todas as noites. Porque não estou diante de uma realidade qualquer. O pesadelo de verdade está aqui fora, inescapável e opressor.

Não tem sido fácil acompanhar o crescimento avassalador da violência urbana no Brasil. E, principalmente, o recrudescimento de uma nova modalidade de fascismo. As pessoas não estão sendo abatidas apenas por conta de assaltos, sequestros relâmpagos ou outros tipos de crimes que têm como objetivo tomar o que é do outro (os quatro mortos listados acima comprovam isso). Em alguns casos, o objetivo é eliminar o outro, negar a sua existência, como Narcisos broncos que acham feio o que não é espelho. Caminho assustado por essa terra devastada, oca de bom senso, atulhada de opiniões rasas, derivativas e sem matizes de parte a parte. Tenho medo do que me cerca e lamento com soluços os que vergam rumo ao chão. Sou um pouco como o Barnabu de Céline em Viagem ao Fim da Noite ou o garoto cigano de Kosinski em O Pássaro Pintado, tentando sobreviver em campo minado, presenciando um mundo em dissolução, uma nova era dos extremos, o apogeu da idiotia. E minha viagem particular ao fim da noite de ontem diz muito sobre esse estado de coisas.