Não por acaso, o que mais se vê em Nebraska, filme de Alexander
Payne, são vidas desperdiçadas. Vidas escorrendo numa sala em frente à tevê ou
vendo carros passar. Vidas esperando ansiosamente por um nome na sepultura. Daí
ser tão comovente a tentativa vã do seu protagonista de imprimir, já nos
estertores da vida, um esboço de sentido em uma trajetória que até aquele
momento foi pouco mais do que um borrão, um quadro em branco. Prestes a
sucumbir de vez à senilidade, Woody Grant (Bruce Dern) se agarra a uma
propaganda enganosa, um folheto que diz ser ele o ganhador de 1 milhão de
dólares. Para receber o prêmio, precisa ir até Lincoln, no
Nebraska. Uma distância significativa do lugar onde mora, mas nem por isso
capaz de demover um homem determinado. Mais do que ganhar um bom dinheiro, o
que impulsiona Woody é legar algo para depois que for embora, em vez de apenas
sumir da paisagem.
Há algo do Alvin Straight de História Real, o magnífico filme de
David Lynch, em Woody Grant. Ambos são velhos turrões, que se apegam a uma
última cartada oferecida pela vida para se tornarem pela primeira vez
protagonistas da própria história. Lançam-se pelas libertadoras estradas da
América na tentativa de concretizar o seu pequeno naco de sonho e fazer um
acerto de contas final com a família antes que chegue o oblívio. Tanto em Alvin
quanto em Woody, o senso de urgência, de que é preciso viver enquanto há tempo,
chegou tarde demais. E a velhice é território propício à proliferação de
frustrações e arrependimentos altamente nocivos.
Transpondo o drama derradeiro de Woody para o nosso dia a dia,
chegamos a uma conclusão implacável: não temos qualquer controle sobre o nosso
destino, além do fato de que cuidarmos razoavelmente da nossa saúde eleva as
nossas probabilidades. Mas são apenas estatísticas, regras cheias de exceções,
que não levam em conta a brutal insensibilidade do acaso. Intimamente,
projetamos nossa trajetória com princípio, fim e um meio com duração
minimamente generosa. Talvez por isso, procuramos – eu pelo menos – não contar
com a sorte e tratamos de realizar nossos prosaicos sonhos de felicidade fugaz.
Mas é sempre muito menos do que quase todos gostaríamos.
Não sei, algo me diz que não devo contar com o futuro. Ele não é
muito confiável. Basta lembrar de Tomas e Teresa no final de A Insustentável
Leveza do Ser, dirigindo plenamente felizes pela estrada, pouco antes do
acidente fatal. A morte encontrou os dois justamente quando superaram tudo, o
fim abrupto da Primavera de Praga, as dificuldades de uma vida complicada, com
amantes em série, do lado dele, e uma insegurança crônica, do dela. Recordo da
vez em que chorei copiosamente enquanto subiam os créditos do filme numa
madrugada solitária em São Paulo, acossado pela sensação de impotência e vazio
que nos provocam as mortes no auge.
Lembro também de Tony Judt, intelectual brilhante, tomado pela
esclerose lateral amiotrófica aos 60 anos, talvez o melhor momento da sua vida.
Reproduzi aqui no blog o trecho em que ele fala, no
livro O Chalé da Memória, que a maior frustração causada pela doença terminal é
não poder voltar a viajar de trem. “Waterloo nunca mais, paradas no interior
nunca mais, solidão nunca mais”. É muito doloroso. De minha parte, pretendo conhecer os
países possíveis, cultivar os afetos que me são caros e aproveitar os pequenos
tesouros que passam vez ou outra à minha frente. Afinal, um dia também não
poderei mais andar de trem.
2 comentários:
Nossa. A veia sangra...
Gracias, Comadre.
Beijo e obrigado mais uma vez pelo texto de Dorfman sobre Cortázar.
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