"Alguém
clamando por socorro
A
2000 km de distância
É
tão longe
É
como aquela velha foto
Esquecida
amarelada
De
teus pais andando à beira da estrada
Aquele
mato aquela cachoeira
As
crianças nuas
É
tão longe
É
como aquele tempo em que
A
bondade tinha sua recompensa
Uma
foto em preto e branco
De
um mundo tão remoto
Não
dá mais para lembrar
Aquela
juventude.
Um
bebê roubado sem carinho
Sem
mãe sem leite
É
tão longe
É
como aqueles dias nos
Nossos
corações
Em
que antes de tudo
Imperava
a felicidade.
O
mato cresce revolto
Desafiando
os céus."
Esse
poeminha foi escrito no dia 10 de fevereiro de 1991, aniversário de minha mãe,
durante uma viagem a Recife, por um rapaz que acabara de completar 21 anos e
dava vazão a uma inevitável propensão à nostalgia, algo inusitado para alguém
tão jovem. Talvez fosse um recado ao homem de 44 anos, fios brancos em profusão
dominando paulatinamente o cabelo e a barba, que agora bebe os últimos goles de
um vinho espanhol no aconchego de sua casa. Difícil crer que o “tão longe” a
que ele se refere no poema é um intervalo de pouco mais de dois anos, quase um
sopro de horas para quem já atravessou tantas outras, muitas delas
desperdiçadas. Há um idealismo enviesado, ou ao menos um esboço de um tempo
feliz que curiosamente pertence ao passado, e não ao futuro, como se ele de
certa forma já enxergasse o outrora, e não o porvir.
Mas
talvez o rapaz de 21 anos já antevisse naquela época a incômoda capacidade do
tempo de se converter em cinzas. Provavelmente sabia que o seu poema ficaria
esquecido num armário até ser lembrado por acaso pelo seu autor, ou pela pessoa em que o seu autor se transformou, eu, tão diferente e ao mesmo tempo tão íntimo
dele, como um irmão mais velho ou um velho amigo. Lembro que ficava intrigado quando
ouvia minha mãe relembrar da sua infância e arrematar com um “parece que foi
ontem”. Para mim, a sua aurora tinha a distância de uma eternidade, se é que
podemos medir dessa forma o tempo ao qual não pertencemos. Mas a minha aurora é
também medida em eternidades, embora alguns fatos permaneçam vívidos como um
tropeção.
Ouvi
há pouco um disco lançado em 1980, quando eu tinha 10 anos, e ele me trouxe
reminiscências vívidas de casas, ruas, pessoas, casos prosaicos, sentimentos confusos,
saudades avassaladoras e, principalmente, a sensação de que a memória é uma
companheira de jornada muitas vezes cruel, mas da qual não conseguimos – e provavelmente
não queremos – nos livrar. “Olhe bem nos meus olhos. Olhe bem pra você. O fato
é que a gente perdeu toda aquela magia. A porta dos meus 15 anos não tem mais
segredo. E velha, tão velha, ficou nossa fotografia. A quem é que a gente engana
com a nossa loucura. Decerto a gente perdeu a noção do limite”, cantava Oswaldo
Montenegro em Aquela Coisa Toda, o autor do disco que eu ouvia ainda agora. Pergunto
a mim mesmo onde foram parar meus 15 anos, meus 18 anos, meus 21 anos sem portas
ou segredos, abarrotados de poemas, viagens e amores que pareciam imortais. Estão
aqui, em algum canto obscuro, ajudando a sustentar a essência do que sou, um
emaranhado de lembranças que me impelem inevitavelmente para o futuro.
2 comentários:
"Nos deram espelhos e vimos um mundo doente". Renato Russo tinha algumas coisas, alguns enfoques em comum com Osvaldo MOntenegro, além de terem morado em Brasília. Mas "a pessoa em que o seu autor se transformou", certamente, vai ser cada vez mais alguém a cultivar a memória como um território firme de algum tipo de vivência, já que não se volta no tempo e, segundo alguns, não se volta nunca a lugar nenhum. Mudamos nós e mudam os lugares, o tempo é inexorável.
Sim, a memória é como um porto seguro, desde que não seja confrontada com quem somos hoje, o que seria desleal, acho. Quando voltamos no tempo dessa forma (a única) passamos a entender melhor quem nos tornamos. Mas a conclusão final de tudo isso é uma só, a sua: o tempo é inexorável.
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