sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Uma foto em preto e branco



"Alguém clamando por socorro
A 2000 km de distância
É tão longe
É como aquela velha foto
Esquecida amarelada
De teus pais andando à beira da estrada
Aquele mato aquela cachoeira
As crianças nuas
É tão longe
É como aquele tempo em que
A bondade tinha sua recompensa
Uma foto em preto e branco
De um mundo tão remoto
Não dá mais para lembrar
Aquela juventude.
Um bebê roubado sem carinho
Sem mãe sem leite
É tão longe
É como aqueles dias nos
Nossos corações
Em que antes de tudo
Imperava a felicidade.
O mato cresce revolto
Desafiando os céus."

Esse poeminha foi escrito no dia 10 de fevereiro de 1991, aniversário de minha mãe, durante uma viagem a Recife, por um rapaz que acabara de completar 21 anos e dava vazão a uma inevitável propensão à nostalgia, algo inusitado para alguém tão jovem. Talvez fosse um recado ao homem de 44 anos, fios brancos em profusão dominando paulatinamente o cabelo e a barba, que agora bebe os últimos goles de um vinho espanhol no aconchego de sua casa. Difícil crer que o “tão longe” a que ele se refere no poema é um intervalo de pouco mais de dois anos, quase um sopro de horas para quem já atravessou tantas outras, muitas delas desperdiçadas. Há um idealismo enviesado, ou ao menos um esboço de um tempo feliz que curiosamente pertence ao passado, e não ao futuro, como se ele de certa forma já enxergasse o outrora, e não o porvir.

Mas talvez o rapaz de 21 anos já antevisse naquela época a incômoda capacidade do tempo de se converter em cinzas. Provavelmente sabia que o seu poema ficaria esquecido num armário até ser lembrado por acaso pelo seu autor, ou pela pessoa em que o seu autor se transformou, eu, tão diferente e ao mesmo tempo tão íntimo dele, como um irmão mais velho ou um velho amigo. Lembro que ficava intrigado quando ouvia minha mãe relembrar da sua infância e arrematar com um “parece que foi ontem”. Para mim, a sua aurora tinha a distância de uma eternidade, se é que podemos medir dessa forma o tempo ao qual não pertencemos. Mas a minha aurora é também medida em eternidades, embora alguns fatos permaneçam vívidos como um tropeção.

Ouvi há pouco um disco lançado em 1980, quando eu tinha 10 anos, e ele me trouxe reminiscências vívidas de casas, ruas, pessoas, casos prosaicos, sentimentos confusos, saudades avassaladoras e, principalmente, a sensação de que a memória é uma companheira de jornada muitas vezes cruel, mas da qual não conseguimos – e provavelmente não queremos – nos livrar. “Olhe bem nos meus olhos. Olhe bem pra você. O fato é que a gente perdeu toda aquela magia. A porta dos meus 15 anos não tem mais segredo. E velha, tão velha, ficou nossa fotografia. A quem é que a gente engana com a nossa loucura. Decerto a gente perdeu a noção do limite”, cantava Oswaldo Montenegro em Aquela Coisa Toda, o autor do disco que eu ouvia ainda agora. Pergunto a mim mesmo onde foram parar meus 15 anos, meus 18 anos, meus 21 anos sem portas ou segredos, abarrotados de poemas, viagens e amores que pareciam imortais. Estão aqui, em algum canto obscuro, ajudando a sustentar a essência do que sou, um emaranhado de lembranças que me impelem inevitavelmente para o futuro. 

2 comentários:

ArmundoAlves disse...

"Nos deram espelhos e vimos um mundo doente". Renato Russo tinha algumas coisas, alguns enfoques em comum com Osvaldo MOntenegro, além de terem morado em Brasília. Mas "a pessoa em que o seu autor se transformou", certamente, vai ser cada vez mais alguém a cultivar a memória como um território firme de algum tipo de vivência, já que não se volta no tempo e, segundo alguns, não se volta nunca a lugar nenhum. Mudamos nós e mudam os lugares, o tempo é inexorável.

Paulo Sales disse...

Sim, a memória é como um porto seguro, desde que não seja confrontada com quem somos hoje, o que seria desleal, acho. Quando voltamos no tempo dessa forma (a única) passamos a entender melhor quem nos tornamos. Mas a conclusão final de tudo isso é uma só, a sua: o tempo é inexorável.