Um pesadelo: eu e meu irmão íamos no banco de trás
de um carro. Estávamos na área externa de um hospital aqui da cidade e, ao
passarmos por uma área gramada, vimos vários caixões enfileirados dos dois
lados da pista. Então meu irmão disse algo como: “Não importa o que se faça, a
gente acaba sempre em silêncio e sozinho”. Aquilo provocou em mim um soluço
imediato, entre o choro e a falta de ar, e meu irmão me abraçou forte, tentando
me consolar. Logo depois, descíamos uma ladeira íngreme à noite, agora com meu
outro irmão no banco do carona conversando amenidades, e do lado de fora eu via
um precipício enorme ao lado da estrada. Continuava chorando e sentindo falta
de ar. Fui lançado para fora do sonho e me vi numa madrugada fria, por conta do
ar condicionado. Senti uma tristeza intensa e uma sensação de confusão mental,
como se não conseguisse entender a cena que acabava de presenciar. Custei a
reencontrar a inconsciência.
Nunca li
Freud, portanto minha interpretação do sonho é a mais rudimentar possível,
embora também exista uma outra leitura plausível, mais pessoal, que não cabe
contar aqui. Na minha analogia onírica, aqueles caixões pertenciam aos mortos
em série que encontrei nos noticiários do dia anterior. O cinegrafista morto
por um morteiro. O jovem morto por um imbecil enciumado numa festa. O pai de
família morto numa briga de trânsito na frente da mulher e do filho bebê. O
rapaz gay morto aos 18 anos depois de ser brutalmente espancado por um grupo.
Parece claro, para mim, que a realidade ao redor vem provocando efeitos nocivos
na minha inconsciência, interferindo nos pacatos devaneios que desenvolvo na
zona abissal todas as noites. Porque não estou diante de uma realidade
qualquer. O pesadelo de verdade está aqui fora, inescapável e opressor.
Não tem
sido fácil acompanhar o crescimento avassalador da violência urbana no Brasil.
E, principalmente, o recrudescimento de uma nova modalidade de fascismo. As
pessoas não estão sendo abatidas apenas por conta de assaltos, sequestros
relâmpagos ou outros tipos de crimes que têm como objetivo tomar o que é do
outro (os quatro mortos listados acima comprovam isso). Em alguns casos, o
objetivo é eliminar o outro, negar a sua existência, como Narcisos broncos que
acham feio o que não é espelho. Caminho assustado por essa terra devastada, oca
de bom senso, atulhada de opiniões rasas, derivativas e sem matizes de parte a
parte. Tenho medo do que me cerca e lamento com soluços os que vergam rumo ao
chão. Sou um pouco como o Barnabu de Céline em Viagem ao Fim da Noite ou o
garoto cigano de Kosinski em O Pássaro Pintado, tentando sobreviver em campo
minado, presenciando um mundo em dissolução, uma nova era dos extremos, o apogeu
da idiotia. E minha viagem particular ao fim da noite de ontem diz muito sobre
esse estado de coisas.
4 comentários:
Como sempre, um excelente texto Paulo.
O horror está tão enraizado no cotidiano que, tal qual a Guanabara de Caetano, ficamos cegos de tento vê-lo.
Poucos ainda tem a sensibilidade e se comovem com essas barbáries.
Forte abraço.
O problema,Laert, é que até o nosso inconsciente está sendo invadido pela barbárie cotidiana. Nem em sonho temos sossego.
Grande abraço
Estamos virando um país de bárbaros, onde tudo - ou quase tudo, para ser mais exato - caminha na direção contrária do mínimo aceitável de uma boa civilidade. A barbárie está se espalhando pelo país. É uma pena, Paulinho. Só este ano, conforme a mídia relatou, já tivemos cabeças cortadas em Pedrinhas, no Maranhão. Gente amarrada no Rio de Janeiro, reacendendo os tempos terríveis dos escravos presos em Pelourinhos. Justiceiros. O aumento da violência de uma ponta a outra do país. Meu temor é o Brasil descambar para algo incontrolável, sobretudo em um ano complicadíssimo como este. O fascismo, como você bem lembrou, pode renascer em uma nova onda, em uma nova modalidade.
Mudando de assunto: é de tomar uma com Chicão dia 22? Forte abraço!
Rapaz, é assustador. O artigo de hoje de Ruy Castro na Folha fala de forma brilhante sobre isso, sobre a derrocada do país cordial, que está sendo substituído por uma terra devastada. E o pior: o uso político dos dois lados e a ignorância de quem deveria refletir um pouquinho são aterradores.
Quanto ao outro assunto, já está marcado, meu velho.
Grande abraço.
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