terça-feira, 5 de maio de 2009

Em carne viva


Algumas obras nos marcam tanto que é impossível voltar a elas, de tão dilacerante que foi a experiência. Outro dia postei um comentário no blog de Luiz Carlos Merten (http://blog.estadao.com.br/blog/merten/) – que considero o mais preparado e sobretudo o mais sensível crítico de cinema do país – sobre a não-inclusão de Ninguém Pode Saber numa dessas listas de melhores filmes do século 21. Não imaginava que, assim como eu, ele também devota profunda admiração por esse trabalho do japonês Hirozaku Kore-Eda, tendo até citado outros longas do autor que não conheço e postado uma entrevista que fez com ele – um humanista convicto e cultor da alteridade – em Cannes. Ninguém Pode Saber é uma dessas obras a que me referi no início. Não conseguiria enfrentá-la de novo, agora sabendo de antemão em que culmina a série de infortúnios por que passam quatro garotinhos abandonados pela mãe num apartamento em Tóquio. Seria, de certa forma, como retornar a um trauma pessoal atenuado pelo tempo. Deve haver, em alguma região da minha mente, uma superfície em carne viva, que se inflama de imediato ao descobrir ou presenciar qualquer tipo de agressão – física ou psicológica – contra crianças. E o abandono dos filhos na história de Kore-Eda, surpreendentemente baseada num episódio real ocorrido no Japão, é uma dupla agressão, capaz de provocar um talho invisível que se aprofunda progressivamente na carne e no espírito daqueles meninos. Merten adiantou também que o cineasta está de volta ao Festival de Cannes com Still Walking, sobre uma mãe que persegue uma borboleta por achar que ela é a reencarnação do seu filho morto. Em 2004, Ninguém Pode Saber perdeu para o engajado documentário Fahrenheit 11 de Setembro, de Michael Moore, numa decisão essencialmente política do então presidente do júri, Quentin Tarantino.

Segue abaixo um texto que escrevi na época do lançamento desse que considero um dos grandes filmes deste sombrio e ainda incipiente século 21.

  

O desamparo dos inocentes*

 Cineasta japonês imerge no abandono e na indiferença no dilacerante ‘Ninguém pode saber’

 Paulo Sales

Há filmes que nascem para confrontar o espectador com seus sentimentos mais dolorosos, permitindo a ele alcançar a essência da própria insignificância. Ninguém pode saber (Dare mo shinarai, 2004) pertence a essa estirpe. Um dos principais expoentes do novo cinema japonês, Hirozaku Kore-Eda aborda com sensibilidade e ternura temas como desamparo e indiferença, tendo como ponto de partida um fato real (e tristemente comum no Japão), ocorrido em Tóquio na década de 80: uma mãe que abandonara os quatro filhos num apartamento na periferia da cidade, apenas com um pouco de comida. Munido desse alicerce, o cineasta concebeu uma história dilacerante.

A mãe, em Ninguém pode saber, comporta-se de maneira infantil e se envolve em relacionamentos fortuitos. Através deles, teve quatro filhos de pais diferentes. Ela se muda com as crianças para um apartamento pequeno e aconchegante, numa região pacata de Tóquio. À exceção do mais velho, Akira (Yuya Yagira, ganhador do prêmio de melhor ator no Festival de Cannes), de 12 anos, os outros chegam ao prédio escondidos (dois dentro de malas e uma que viajou separada do grupo). O motivo: no Japão, mães solteiras cheias de filhos são malvistas e dificilmente conseguem alugar apartamentos.

Assim, as quatro crianças vivem praticamente aprisionadas, enquanto a mãe sai para trabalhar e se divertir. Precocemente maduro, Akira supre essa ausência cuidando da casa e dos irmãos, indo ao banco, comprando e cozinhando comida. Na primeira vez, a mãe fica um mês fora. Na segunda, não volta mais. Akira, Keiko (Ayu Kitaura), 10 anos, Shigeru (Hiei Kimura), 7, e Yuki (Momoko Shimizu), 4, tentam sobreviver longe da escola e dos parques de diversão, contando apenas com o amor mútuo. Os pais, quando são encontrados, revelam-se indiferentes e apenas dão alguns trocados a um Akira cada vez mais preocupado com a conta bancária e com o destino dele e de seus irmãos.

Os meses passam, a mãe já é uma lembrança distante e os meninos vão ficando cada vez mais empobrecidos e com roupas puídas, enquanto as contas começam a atrasar (luz, água e gás são cortados). Todo esse drama é vivido em silêncio, evidenciando a frieza das relações sociais num país que vive para o trabalho. Akira não quer pedir ajuda a entidades assistenciais, pois teme a possibilidade de ver seus irmãos separados. Então acontece a pancada, o golpe que faz com que as crianças abandonem de vez o fiapo de inocência para encarar, com medo e tristeza, mas também com determinação inabalável, a vida adulta.

Kore-Eda apresenta o cotidiano das crianças - que oscila entre brincadeiras infantis, tédio e solidão - sem apelar para qualquer golpe baixo. Não há sentimentalismos na narrativa, embora ela comova profundamente. Rodadas com câmera na mão e pontuadas por uma bela trilha minimalista, as cenas são compostas de longos silêncios e pequenos detalhes dos corpos das crianças, como as mãos que se apertam ou se acariciam. Conduzidos com maestria, os pequenos atores revelam-se sublimes em sua espontaneidade. E o diretor maneja o tempo a seu favor, construindo seqüências longas e contemplativas, como só o cinema oriental é capaz de construir.

Ninguém pode saber é uma obra-prima, em tudo que essa definição encerra em termos de reflexão e profundidade. Aproxima-se, nesse sentido, de uma arte ainda mais reflexiva: a literatura. Ao mostrar o cotidiano de quatro crianças abandonadas e sua capacidade de sobreviver nas condições mais adversas, Kore-Eda celebra a vida e questiona as formas que escolhemos para desfrutá-la: o tempo desperdiçado, a brutal apatia em relação ao outro e, acima de tudo, a ausência de sentimentos num mundo árido e desprezível.

 

* Publicado originalmente no Correio da Bahia

3 comentários:

Marcos disse...

Vc tem filme? Me interessei. Abs

Paulo Sales disse...

Rapaz, não tenho. Mas é fácil de achar em qualquer locadora decente (o que não sei se tem por essas bandas de Angola).
abs

Marcos disse...

Aqui só tem locadora de filme pirata. E Wolverine vendendo nas ruas. hehe Abs