sábado, 2 de maio de 2009

Um mundo em extinção


Não sei quem escreveu que quando uma pessoa morre, morre um mundo com ela. Muito menos quem concebeu o clichê de que cada cabeça é um mundo. Sei apenas que, mais do que frases de efeito, são reflexões de uma exatidão primorosa. Há uns cinco anos, minha tia-avó (na verdade o mais próximo que tive de uma avó em termos de afeto e presença) sugeriu que eu escrevesse um livro contando a história da vida dela. Estávamos na varanda da minha casa conversando, e ela então passou a listar vários acontecimentos interessantes que a tornaram o ser humano que se tornou: uma pessoa de semblante invariavelmente alegre, com uma sede de viver invejável, que trabalhou mais de 50 anos como enfermeira em tudo quanto é canto. Eram acontecimentos não apenas da vida dela, mas pertencentes também à saga da minha família, iguais aos de muitas outras, mas por outro lado completamente distintos (não foi por acaso que Tolstói iniciou Anna Karenina dizendo que todas as famílias felizes são iguais entre si. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira). Nessa época, minha tia já havia passado dos 80 anos, e hoje ela completou 87. Mas a pessoa que encontrei, primeiro numa missa, desinteressante como quase todas as missas, e depois sentada numa cadeira na sala de sua casa, não era mais a pessoa que cinco anos antes me relatara casos pitorescos. Como aquele em que foi raptada na infância pelo pai marinheiro, que a levou para morar com ele no Rio, e só depois de algum tempo e algumas confusões jurídicas voltou para a mãe, minha bisavó, mulher pobre e viúva recente, que conhecera esse marinheiro e com ele tivera minha tia. Ela lembrava inclusive de uma “laranjinha gelada” que chupou no navio que a levava para a então capital brasileira junto com o pai, que a amava.
É esse mundo que de certa forma está acabando, como uma vela no fim, enquanto minha tia se lança inevitavelmente rumo à senilidade, numa espécie de morte a conta-gotas. Mesmo que eu tente reproduzir aqui esta e outras histórias, elas serão apenas um espelho do que aconteceu oito décadas atrás, e nunca o acontecimento real, as sensações ambíguas, o sabor inconfundível da laranja, o temor da separação e talvez um incipiente senso de aventura naquela cabine de navio, vendo o oceano revolto à sua frente. Hoje ela me olha, mas não me vê. Olha para minha filha, sua afilhada (como eu), e vê apenas uma garotinha desconhecida. Não sabe que 11 anos atrás celebrou meu casamento, após aceitar o convite para ser a sacerdotisa de uma cerimônia informal e divertida, regada a uísque e canções do Creedence. Não sabe sequer que foi raptada e andou de navio, e que sua vida teria sido completamente diferente se tivesse ficado por lá, vivendo com outra família e com uma condição financeira melhor do que sua mãe poderia oferecer. Senti uma pontada de tristeza ao constatar que a longevidade, no seu caso, não foi um bom negócio, pelo menos nesses últimos dois anos em que sua memória se pulverizou. E, com este texto, tento sem êxito reparar o que fiz ao não atender ao seu pedido de pôr no papel uma vida bem vivida, mas que, como todas as outras, se aproxima a passos de lebre do ponto final.

Um comentário:

Socorro disse...

Paulinho,

Já senti tanto isso. Tantas boas histórias se perderam na minha vida. Da minha avó índia, que a mãe foi pega no mato, como bicho. Uma bela mulher, que morreu com mais de 80 anos...
Dos meus mestres lá de Canudos, tanta gente que me contava histórias interessantes dos tempos da guerra, alguns que viveram os últimos momentos de Canudos...
Outro dia encontrei uma pessoa ue conheço tem uns 30 anos, que tem uma história que não pode ser abandonada, de um massacre no sertão da Bahia, parecido com Canudos, 40 anos atrás, mas o tempo vai passando e eu não encontro a forma de contar essa história...
Hoje me pego sentindo a morte de Augusto Boal. E penso que ele representa uma boa parte da minha geração. Aquela que sabia contar. E que sabia que era preciso contar. Mas, cê sabe, acredito em destino, e, por causa disso, sei que essas histórias que entram na na nossa vida têm uma razão. Um dia, de alguma forma, ela serão contadas...