Aos 18 anos eu ansiava por rebeldia. Queria pôr em prática os ensinamentos obscuros que havia absorvido nas leituras incipientes do Manifesto Comunista (em edição condensada e didática) e do volume O que é socialismo?, da coleção Primeiros Passos. Ou seja, apesar de conhecer apenas a quintessência da superfície, me sentia preparado para emitir palpites definitivos sobre o universo da foice e o martelo ou me juntar à marcha heróica de alguma revolução iminente. Bobagens, claro. No final dos anos 80, num país recém-saído e ainda traumatizado pela ditadura, tudo o que a garotada da minha geração queria era namorar, beber e jogar bola – atividades às quais eu também me dedicava com afinco, embora sem muito êxito. Havia, porém, um incômodo com aquela realidade edulcorada, que logo se traduziu em inadequação. Sabia desde a infância que vivia no lugar e na época errados, mas ao atingir a maioridade, com os hormônios pulando dentro de mim como foliões no Carnaval baiano, a situação se agravou. O que fazer com aquela imperiosa necessidade de sublevação, se não havia armas nem bandeiras para empunhar? Reconheço que teria sido presa fácil de algum messias vermelho disposto a depor o Estado para implantar uma ditadura do proletariado. Assim como reconheço a frustração por ser velho demais, já trabalhando e deixando a primeira faculdade no meio, quando os caras-pintadas, com sua rebeldia alegórica, saíram às ruas para exigir a saída de Collor e sua corja. Ou seja: fiquei num limbo entre os soturnos militantes do VAR-Palmares, ALN e MR-8 e a gente bronzeada que mostrou seu valor com as bochechas em verde e amarelo. E quer saber? Abençoado seja esse limbo.
Mas esta semana, ao ler uma história deliciosa protagonizada por Frei Betto em 1968 (publicada no Estadão), percebi um tênue sabor de rebeldia na saliva, ficando com uma inveja danada daquele pessoal que não dormia nunca. Chefe de reportagem do extinto Folha da Tarde, Betto foi convidado (por ser o único com o passaporte em dia) para cobrir com outros nove repórteres o casamento de Roberto Carlos e Nice na Bolívia (explica-se: como o divórcio ainda não era legalizado no Brasil e Nice era separada do primeiro marido, eles precisaram oficializar o matrimônio em solo estrangeiro). Já bastante endinheirado, o criador dos detalhes tão pequenos de nós dois fretou um avião para levar esse pessoal ao país vizinho, onde Ernesto Che Guevara fora assassinado meses antes pelo exército local, com ajuda da CIA. Frei Betto poderia tranquilamente escrever algumas linhas atulhadas de frivolidade sobre o evento e em seguida encher a cara e a pança no banquete promovido pelo Rei. Fez a primeira parte, mas trocou a embriaguez do álcool pela embriaguez de um sonho jornalístico. Entrevistou um monte de gente que conviveu com Guevara na selva ou participou da sua captura, chegando a pedir uma audiência com o então presidente boliviano, o general René Barrientos, no Palácio Quemado, sede do governo. Foi lá que conseguiu o maior furo de sua curta vida de jornalista, ao perguntar: "Afinal, quem mentiu? O senhor, ao dizer que Che foi enterrado, ou o chefe das Forças Armadas, general Alfredo Ovando Candía, ao afirmar que ele foi cremado?". Barrientos respondeu tranquilamente: “Nenhum dos dois mentiu. Parte do corpo foi enterrada, parte, cremada". Naquele momento, a lenda acabava de dar lugar ao fato.
É verdade que hoje, quando Che Guevara está mais para um mito pop do que para um grande homem do seu tempo, tudo isso soa meio ingênuo e inócuo. Mas o mundo fervia em 1968. E eu não estava lá para descarregar todo o meu desconforto existencial de almanaque.
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