Alguém ainda lembra de Hermes Aquino? Quando criança, eu adorava a música Nuvem Passageira, que acredito tenha sido seu único sucesso, e me intrigava a suavidade com que ele cantava aqueles versos, como se quisesse esconder o verdadeiro significado deles. “Você não vê que a vida corre contra o tempo? Sou um castelo de areia na beira do mar”. Todos nós somos. No caso de alguns, a maré alta surpreende antes da hora e destrói o que parecia feito para durar muito mais do que uma tarde. Mario Quintana uma vez escreveu: “Que haverá com a lua que sempre que a gente a olha é com o súbito espanto da primeira vez?”. A morte provoca um espanto semelhante: por mais que a presenciemos todos os dias nos jornais e nas conversas com parentes e amigos, sempre cabe o assombro, a lâmina no estômago, o desconforto mudo.
Desde o início, a maioria de nós tem consciência, ainda que fugidia, dessa condição provisória, do curto percurso que nos leva à velocidade da luz do berço à sepultura, mesmo que em alguns a fé aplaque o espanto e conduza à resignação. E nos surpreende mais ainda o caráter aleatório, que faz com que uns permaneçam até se cansarem da vida, enquanto outros se vêem privados dela antes mesmo de tateá-la inteiramente. É quase como os nazistas faziam – segundo o comovente relato de uma sobrevivente de Auschwitz ao repórter Geneton Moraes Neto –, ao decidir quem seria brindado com um banho de água corrente e quem levaria uma ducha de gás letal. Uni, duni, tê. Apenas uma imensa vastidão de acaso a nos assombrar.
Eu tinha 12 anos quando uma prima morreu, vítima de um tumor no cérebro. Até então, acreditava que os santos-anjos e pais-nossos ensinados por minha mãe seriam capazes, por si sós, de reverter o quadro, trazê-la de volta a uma vida saudável. Aos 16, já estava convertido ao ateísmo, crença que professo até hoje por falta de opção, e que só se fortalece quando leio histórias como a de Arthur Amorim Santos, definido em seu obituário na Folha de S.Paulo como “o pequeno paleontólogo”. Aos nove anos, Arthur se orgulhava de entender tudo de dinossauros. Conhecia todas as espécies e os períodos em que viveram, e chegou a escrever um livrinho sobre eles: As Aventuras de Yoshito. Morreu de um tipo raro de câncer, como um cristal bonito, que se quebra quando cai. O que dizer sobre isso, além do lamento aparvalhado? O que depreender de um fato tão cruel e ao mesmo tempo tão banal? Não é a primeira vez que escrevo sobre isso, nem será a última. A repetição funciona como um mantra obsessivo, mórbido talvez, que uso para tentar entender o vazio. Inutilmente, claro.
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