terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
Anda. Anda. Anda
Após um atraso de meses (o que talvez torne este texto particularmente desinteressante), aproveitei o recesso do Carnaval para finalmente assistir aos filmes mais recentes dos diretores que, ao menos para mim, fazem hoje o melhor cinema do país. E saí de cada um deles com impressões radicalmente distintas. Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles, nunca se decide entre construir uma parábola existencial (falta-lhe substância para isso) ou apenas se limitar a ser um thriller apocalíptico, do qual está mais próximo (lembrando inclusive Extermínio, de Danny Boyle, em alguns momentos). Houve claramente um retrocesso em relação a O Jardineiro Fiel. Meirelles vive agora um momento de consolidação (ou talvez não) como cineasta internacional, fase pela qual Walter Salles já passou de forma um tanto traumática (sobretudo no caso de Água Negra, quando os produtores lhe negaram o corte final). O trauma fez com que o diretor de Central do Brasil voltasse (embora não definitivamente) à realidade do próprio país, e nesse sentido Linha de Passe representa um salutar retorno às origens. Trata-se de um filme denso e coeso, essencialmente humanista como todos os trabalhos de Walter, mas sem que esse humanismo acabe se convertendo no bom-mocismo ingênuo de, por exemplo, Diários de Motocicleta. Sandra Corveloni levou o prêmio de melhor atriz em Cannes pelo papel de uma mãe solteira, mas foi a atuação segura – aguda em alguns momentos, contida em outros – dos quatro rapazes que vivem seus filhos que mais me chamou a atenção. Mas o que realmente importa na trama urdida pelo diretor e sua parceira Daniela Thomas é o olhar desnudo – mas com boa dose de compaixão – que ela direciona a um microcosmo acima de tudo brutal: o cotidiano dos brasileiros urbanos de classe baixa. Enquanto essa realidade asfixiante se desenrolava à minha frente, eu me perguntava em silêncio como é possível viver com perspectivas tão exíguas. A pobreza e o horizonte estreito representam um fardo gigantesco, um peso intangível que impede que aqueles seres humanos – invisíveis para a maioria de nós, mesmo andando ou trabalhando ao nosso lado – alcancem uma liberdade mínima de movimentos. O que fazer quando pernas, braços e cérebro permanecem invariavelmente engessados por um fatalismo incontornável? Quem é íntegro e quem não é, nesse pequeno universo onde a solidez de caráter convive fraternalmente com a escassez diária de dignidade e a presença avassaladora da violência como fonte de renda? Ou melhor: onde termina o desespero e onde começa a abjeção? Os quatro filhos sem pai daquela mãe sem marido transitam permanentemente por essa zona cinzenta, e Linha de Passe termina sem qualquer sinal de redenção para eles. Não poderia ser diferente, ou estaríamos assistindo a uma realidade edulcorada, um conto de fadas hollywoodiano com seus heróis anônimos que superam as adversidades para se estabelecerem como alguém no mundo, tornando-se enfim visíveis aos que habitam o topo da pirâmide. Não é assim que funciona para quem mora em Cidade Líder, bairro que serviu de locação para o filme. Não é assim que funciona para quem mora no Nordeste de Amaralina, na Ceilândia, no Pavãozinho ou em qualquer bairro pobre de uma grande cidade brasileira. O que permanece é a paralisia, o imobilismo involuntário. Por mais que, como um dos personagens do filme, todas essas pessoas vivam dizendo a si mesmas: “Anda. Anda. Anda”.
Compaixões seletivas
“No passado, era conveniente pensar em termos bíblicos, acreditar que vivemos cercados de autômatos comestíveis, habitantes da terra e do mar, para nos servir. Agora se sabe que mesmo os peixes sentem dor. Tal é a complicação crescente da condição moderna, o círculo crescente da solidariedade moral. Não só os povos remotos são nossos irmãos e irmãs, as raposas também, e os macacos de laboratório, e agora os peixes. Perowne continua a pescá-los e comê-los e, embora nunca jogue uma lagosta viva dentro da água fervente, está disposto a pedir que lhe sirvam uma lagosta num restaurante. O truque, como sempre, a chave para o sucesso e para o domínio humano, consiste em ser seletivo nas compaixões. A despeito de todo o palavrório sensato, é o que está perto da mão, é o visível que exerce a força suprema. E aquilo que não se vê...”
Ian McEwan, Sábado
O mais interessante nesse trecho do instigante livro de McEwan é o conceito – o truque, nas palavras dele – das compaixões seletivas. Em outras palavras, uma versão amena de hipocrisia, uma forma de evitarmos o confronto entre nossas convicções racionais e o nosso desejo primal, instintivo. É reconfortante se deliciar com um corte ao ponto de bife ancho ou miolo de alcatra já que não vemos, ali à nossa frente, o boi ser executado com uma pistola de ar comprimido e depois retalhado, com sangue e vísceras escorrendo por todo lado. A idéia de pescar está tão entranhada em nossa memória afetiva de crianças que não nos damos conta do absurdo que é arrancar um ser vivo de dentro do seu meio e em seguida sufocá-lo numa cesta de vime (para depois, em muitos casos, nem aproveitá-lo como alimento).
A verdade é que reproduzimos – obviamente com sofisticação, complexidade e escala de produção e consumo inigualáveis – a ancestral necessidade de extinguir outra vida, de nos apropriarmos da sua energia para continuarmos andando. Você pode degustar uma lagosta ao molho termidor ou uma galinha ao molho pardo, mas jamais vai apagar o fato de que está comendo uma lagosta ou uma galinha. Para justificar em palavras sua renúncia total ao alimento de origem animal, uma amiga minha disse que não come nada que tenha rosto. Racionalmente, gostaria de agir da mesma forma. Mas minhas compaixões são, como as do personagem de McEwan, mais seletivas. Algo em mim clama por sangue, pelo “ardente prazer de dilacerar”, para usar as palavras com que Borges traduziu o desejo inato de um leopardo.
Seria uma hipocrisia e tanto afirmar que este coração hedonista não padece de pequenos surtos de prazer ao dilacerar finas e delicadas tiras de salmão cru ou pedaços tenros e altos de picanha cheios de gordura, enegrecidos pela brasa. Renunciar a esses surtos seria doloroso ao extremo, quase um castigo perpétuo. Por outro lado, o que fazer com o apelo racional, o aprendizado constante que a evolução intelectual nos impõe? Não vou viver para presenciar o fim desse dilema, até porque sou parte dele, mas é bem possível que a humanidade caminhe – a passos de tartaruga – para um mundo habitado apenas por herbívoros. Sem churrascarias e suas carnes exóticas, iguarias japonesas, moquecas de camarão e siri mole, ostras, polvos, mexilhões, presuntos de Parma ou mesmo um simpático feijão branco com rabada. Pensando bem, não ser imortal tem lá suas compensações.
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
Chamem o Pedro de Lara!
Outro dia estava comprando umas coisas para casa num supermercado que tinha som ambiente (não sei se para entreter ou enervar os clientes). E lá pelas tantas, após uma meia dúzia de pagodes sem pé nem cabeça, reconheci, por trás da interpretação tosca, a letra e a melodia de A Fórmula do Amor, uma baladinha legal que Léo Jaime e Paula Toller cantavam na década de 80. Mas a interpretação profundamente amadora me intrigou. Cheguei a pensar que estavam promovendo um karaokê com os clientes em alguma parte do estabelecimento, provavelmente no setor de eletroeletrônicos. Aos poucos, fui percebendo que aquilo havia sido gravado por um artista profissional (seja lá o que for isso hoje): o arremedo de voz, os instrumentos de contornos sonoros indefinidos, os indefectíveis “sai do chão!” e “vamos nessa, galeeeeera!” deixavam evidente que se tratava de um legítimo integrante do cancioneiro baiano contemporâneo. Então me vieram à mente os shows de calouros que assistia na infância, quando os artistas amadores precisavam demonstrar ao menos alguma afinação, um timbre de voz agradável ou um certo balanço para convencer o auditório de que não mereciam levar o buzinaço. Se não, corriam o risco de ser desancados em praça pública pelos finados Aracy de Almeida e Pedro de Lara, os chatos exigentes de plantão, que se contrapunham aos puxa-sacos que achavam tudo o máximo. Ou seja, mesmo em se tratando de diletantes, havia algum critério, um grau mínimo de exigência para que aquilo não virasse a Casa da Mãe Joana. O “calouro” que ouvi no supermercado jamais passaria pelo crivo de Dona Aracy, do mal-humorado Pedro de Lara ou de qualquer pessoa sensata, assim como essas outras manifestações de mau gosto que dão as caras nos carros com som ligado ao máximo (essa equação não tem erro: a qualidade da música é inversamente proporcional à potência dos altos-falantes). Não que as coisas que a gente ouvia naquele tempo nos programas de calouros fossem lá grande coisa. Mas o julgamento de uma criança é bem mais condescendente com os medíocres. Tudo isso ficou perambulando por minha cabeça enquanto pegava umas folhas de escarola para botar numa lasanha.
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
Fio desencapado
Há alguns dias postei um texto aqui falando do ataque de neonazistas suíços a uma brasileira. Não retiro uma palavra do que disse sobre a necessidade de enterrarmos de vez o cadáver do fascismo, se é que realmente estamos evoluindo (ou queremos evoluir) como civilização. Mas agora deixamos o terreno da xenofobia e do racismo – sobre o qual é possível caminhar, ainda que pantanoso – para nos aventurarmos pelo universo fluido das obsessões humanas. Já é quase certo que Paula Oliveira forjou o ataque, cortou a própria pele, inventou uma gravidez de gêmeos e mentiu em seu depoimento à polícia. Já é quase certo que ela irá se complicar por lá, onde a mídia e a opinião pública se manifestaram de forma tão acalorada quanto aqui. Mas o que fica de tudo isso, mesmo que ainda estejamos no território das suposições, é: quais as motivações de uma mulher de 26 anos, com um bom emprego, legalmente estabelecida em um dos países mais civilizados da Europa, para cometer tamanha sandice? Há certos desvãos na alma humana inalcançáveis para os homens comuns, entre os quais me incluo. Esses recônditos abrigam um grau de complexidade tamanho que pode nos levar para o bem ou para o mal, embora o maniqueísmo seja apenas uma invenção de contornos bíblicos e nós estejamos eternamente nos deslocando por uma sombria zona cinzenta. Não se trata de medo, angústia, ódio, amor, insegurança ou tristeza, mas de uma combinação em proporções exacerbadas de todos esses sentimentos e mais uma dezena de outros que (não sei como) acaba descambando para algum tipo de desequilíbrio. Um dia, algo em nós deixa de funcionar adequadamente e passamos a nos comportar fora dos padrões. Quando nos damos conta, o estrago está feito. Pode ser que eu ou você nunca soframos um desses curtos-circuitos no decorrer da vida. Mas é certo que em alguma gaveta fechada com cadeado lá no nosso íntimo existe um fio desencapado, pronto para causar um estrago.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
Arquivo - Sinto um gosto amargo
Sinto um gosto amargo
Escrito em 19 de dezembro de 1991
Eu senti que os olhos me doíam como se
Pequenos pedaços de vidros de lâmpada
Fizessem lar neles
Essas vitrines da minha juventude
Onde eternos invernos nublados
Fazem chover solidão em minha consciência
Por que tanta tormenta?
Por que essa dor no peito?
Os belos, os felizes
Eu cansei dessa tristeza
E um animal querido observa a minha decrepitude
Um homem que pede um pouco de carinho
Jogado numa cama e só
Ferido
O problema é não ver o horizonte
É beber muito para poder esquecer de si mesmo
Eu reparei naquela árvore no crepúsculo
Ninguém reparou
Vi, eu vi, sim, eu vi os olhos vermelhos
No reflexo da janela e o vidro embaçado
Tocando a chuva do outro lado com o nariz
Os pedaços de lâmpada me fazendo lacrimejar
O paraíso tão perto
A alma querendo ir
Os velhos só queriam jogar damas e eu
Pedindo para ser anjo
Eu caí na sarjeta às cinco horas da manhã morto de bêbado
Eu não estava bem
Tirei o fio de juventude de uma dezena de putas
E escrevi poemas profanos na areia da praia
Eu destruí a vida de mulheres que me amavam e só
Eu fiquei em posição fetal durante duas horas
Quase morto de tanta solidão
Esperei bem uns nove meses sentado numa rodoviária
Para tentar achar uma índia
Tudo o que eu quero é um pouco de sanidade
Não vou ficar embaixo da grama, embaixo de tudo
A morte sempre nos torna medíocres
Todos seremos medíocres um dia, não adianta
Buscar a genialidade na estrada
Nem nos livros nem nos olhos dos velhos mendigos bebuns
Não adianta buscar nada
Felicidade é uma pedra de gelo
E a velhice é o castigo final e o castigo é a esclerose
Olhos vendados, estamos sempre de olhos vendados
A cegueira é sempre achar que o paraíso está perto
Se nunca conseguimos alcançá-lo
Nos vendemos a nossos próprios pais
Nos vendemos a nosso próprio país
Nações territórios demarcações fronteiras
Invenções tolas
Homens são todos iguais e se acham singulares
Todas aquelas árvores seculares foram mortas por eles
Elas, que são muito mais sábias
Elas, que são sim eternas
Não entendi quando me falaram sobre mentes destruídas
Sobre corpos torturados
Eu ainda não entendo o sofrimento
Há tanta tristeza
Pairando no ar
Tornando o ar pesado
Ainda há muitos gritos de mães atormentando nossos ouvidos
Ainda há uivos de dor flutuando no vento
Minha solidão ataca, lasca
Feito a visão de um fuzilamento
Carrego toda dor sozinho
Pois só tenho a mim mesmo, pois não
Me apoio em soluções invisíveis, impalpáveis
Sinto um gosto amargo como se comesse uva podre
Sinto um cheiro de bosque que já não existe
Um pressentimento como se animais famintos
Viessem ao meu encalço
Toda a minha fé está em mim e não tenho fé
Tenho um impulso colérico, uma fúria de vida
Dois olhos dolorosos, olhos doloridos, olhos horrorosos
Duas feridas iguais abertas e infeccionadas
Infecções intestinais
Buracos ulcerados no estômago e no fígado
Já destruído pela cirrose hepática
Mil cigarros e litros de fumaça por dia
Meu vício é achar que tenho chance de ser feliz
Meu vício é esse narcisismo contraditório
Sempre tentando esconder tolices
Tolices sempre aparecem cedo ou tarde
Feito baratas saindo de esgotos
Tudo o que tenho a dar é um pouco de aflição
Um pouco de desesperança
Doses violentas de niilismo e depressão
Uísques vagabundos jogados fora no vômito
Os piores homens são os que se matam por amor à pátria
Os melhores homens são assassinados pela solidão
Vive-se uns sessenta anos para se acabar numa vala comum
Num terremoto qualquer
Eu repentinamente vejo aviões bombardeiros passarem
Jogam bombas em nossas almas
Punks imbecis quebram bancos 24 horas e se flagelam
E desde quando violência e dor levam a algum lugar?
Há sempre alguém tramando alguma coisa em qualquer canto
Sempre algum idiota querendo vencer na vida
Metrópoles fazem as pessoas enlouquecerem
O tráfego e a buzina
As brigas de bar e os assaltos
Oh, o tempo...
Somos todos fantoches e nossas vitrines estão quebradas
Alguém jogou uma pedra e roubou o brilho dos nossos olhos
Começo a pensar que não temos para onde ir
Que mesmo fugindo em um avião o desnorteio vem junto
Como um tiro persegue um alvo em fuga
E o tiro é na consciência
Quase me joguei um dia de um penhasco e
Imaginei meu corpo fazendo companhia às pedras
Todos nós somos espancados como as pedras pelas ondas
E não podemos beber água por ser salgada
Me sinto como um feto recebendo pancadas
Das mãos da mãe
Gosto de sentir a minha mão apertar um seio
Gosto de pensar em algum dia me entregar ao mar
De morrer enlouquecido de bebida em algum bar de striptease
Ferir a minha imagem jogando um copo no espelho
Um copo de vodka gelo e limão
Um espelho de banheiro
Quantos cacos de vidro ainda restam em meu olho?
Quantas lágrimas?
Quantos olhos me restam?
A queda sempre pode estar próxima
Meu vento é um sopro de solidão soprando no deserto
Eu espero a primavera
Eu espero a sanidade
Eu espero a felicidade
Mesmo que não exista e eu espero que exista
Estranhos melancólicos febris
Esses são os olhos da noite
E esses são meus olhos
Seus olhos, querida, parecem cortes de gilette
Sangrando em meus pulsos...
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
Pá de cal
O fascismo é um cadáver insepulto. De vez em quando o ar muda de direção e sentimos o cheiro de sua decomposição incessante. Vislumbramos, através do odor acre que invade nossas narinas, sua carne podre e esverdeada. Na última semana, uma brasileira grávida de gêmeos, 26 anos, foi espancada por skinheads na Suíça, que com um estilete riscaram palavras imbecis em seu ventre. Ela perdeu os bebês. Passados 63 anos do fim da Segunda Guerra, não já é hora de a humanidade – se se pretende civilizada e em evolução contínua – enterrar de vez o defunto e deixá-lo enfim repousar à sombra da história?
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
O primeiro hominídeo
O pavor teve início aos 16 anos. Acordava no meio da noite banhado em suor e dizendo a mim mesmo: vou morrer. Não, não padecia de alguma doença grave, nem mesmo de uma frugal tuberculose, doença que minou a vida de milhares de jovens românticos no século 19. O pavor não se referia a uma possibilidade iminente, mas sim a uma certeza, por mais que ainda distante. Descobrir tão novo a extensão da própria finitude pode ser devastador. No meu caso, produziu uma curiosidade mórbida de conhecer e investigar os questionamentos de quem veio antes (e que, na maioria dos casos, já havia ido embora) sobre o assunto. Acabei encontrando ateus em desespero, católicos ansiosos por uma redenção impossível e budistas surpreendentemente serenos. Mas jamais descobri uma resposta ao escavar as belas e desconcertantes reflexões que os grandes poetas e prosadores me legaram ao longo desses anos. Continuei tão sozinho quanto todos aqueles que, um dia, tiveram uma epifania pelo avesso – como um grito para dentro – ao se depararem com a certeza da extinção.
Com o tempo, o pavor se converteu numa resignação atroz, mas várias vezes, na noite alta, ainda digo a mim mesmo: vou morrer. A diferença é que agora meu tempo de vida sobre a Terra é ainda menor. Mas fazer o quê? Ter plena consciência de que um dia cessaremos e que o planeta continuará placidamente o seu curso não me fez mais inteligente ou mais preparado para o futuro, pelo contrário. Ao menos, tento compreender o que exatamente significa o ponto final. O que sei é que não conseguimos nos despregar do nosso corpo. Ele é como uma carapaça solidamente fixada à nossa alma por alguma membrana invulnerável, sem a qual é impossível seguir vivendo. É por meio dessa membrana invisível que recebemos os estímulos vitais: o conhecimento, o aprendizado pelos sentidos, o medo. Somos como animais que habitam conchas: sem elas é impossível sobreviver mais que alguns segundos no meio ambiente. Quando vemos um morto, vemos uma pessoa dormindo. Só que é um sono sem sonhos. Tudo cessa por dentro daquela couraça de pele e pêlos, à exceção das bactérias que se reproduzem à profusão no estômago e no intestino. Verissimo escreveu – ou reproduziu a frase de alguém, não lembro – que nossa morte é um evento para os outros, não para nós. Ou seja: não estaremos aqui (ou em algum outro lugar, muito menos num camarote celestial) para presenciar as lágrimas sinceras, os comentários condoídos, os pêsames formais, e depois a caminhada, a terra ao lado do buraco, o barulho dela caindo no caixão, a volta para casa sem nós. Tudo isso, variando apenas a forma, é fato. Muitos se conformam, outros celebram a passagem para um plano superior, e alguns poucos sentem no íntimo aquela dor primordial, quase uma asfixia, que deve ter afligido o primeiro hominídeo quando ele se deu conta de que a pessoa que vivia ao seu lado não acordaria nunca mais. E que ele, um dia, também não acordaria.
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009
(Um pequeno grande texto de Borges)
Inferno, I, 32
Jorge Luis Borges
Do crepúsculo do dia ao crepúsculo da noite, um leopardo, nos anos finais do século XII, via umas tábuas de madeira, umas barras verticais de ferro, homens e mulheres cambiantes, um paredão e talvez uma canaleta de pedra com folhas secas. Não sabia, não podia saber, que ansiava por amor e crueldade e pelo ardente prazer de dilacerar e pelo vento com cheiro de veado, mas algo nele se sufocava e se rebelava e Deus lhe falou num sonho: "Vives e morrerás nessa prisão, para que um homem que conheço te olhe um número determinado de vezes e não te esqueça e ponha tua figura e teu símbolo num poema, que tem seu preciso lugar na trama do universo. Sofres o cativeiro, mas terás dado uma palavra ao poema". Deus, no sonho, iluminou a rudeza do animal e este compreendeu as razões e aceitou esse destino, mas só houve nele, ao despertar, uma obscura resignação, uma valorosa ignorância, porque a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade de uma fera.
Anos depois, Dante morria em Ravena, tão injustiçado e tão só quanto qualquer outro homem. Num sonho, Deus lhe declarou o secreto propósito de sua vida e de seu lavor; Dante, maravilhado, soube por fim quem era e o que era e abençoou suas amarguras. A tradição relata que, ao despertar, sentiu que tinha recebido e perdido uma coisa infinita, algo que não poderia recuperar, nem mesmo vislumbrar, porque a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade dos homens.
Jorge Luis Borges
Do crepúsculo do dia ao crepúsculo da noite, um leopardo, nos anos finais do século XII, via umas tábuas de madeira, umas barras verticais de ferro, homens e mulheres cambiantes, um paredão e talvez uma canaleta de pedra com folhas secas. Não sabia, não podia saber, que ansiava por amor e crueldade e pelo ardente prazer de dilacerar e pelo vento com cheiro de veado, mas algo nele se sufocava e se rebelava e Deus lhe falou num sonho: "Vives e morrerás nessa prisão, para que um homem que conheço te olhe um número determinado de vezes e não te esqueça e ponha tua figura e teu símbolo num poema, que tem seu preciso lugar na trama do universo. Sofres o cativeiro, mas terás dado uma palavra ao poema". Deus, no sonho, iluminou a rudeza do animal e este compreendeu as razões e aceitou esse destino, mas só houve nele, ao despertar, uma obscura resignação, uma valorosa ignorância, porque a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade de uma fera.
Anos depois, Dante morria em Ravena, tão injustiçado e tão só quanto qualquer outro homem. Num sonho, Deus lhe declarou o secreto propósito de sua vida e de seu lavor; Dante, maravilhado, soube por fim quem era e o que era e abençoou suas amarguras. A tradição relata que, ao despertar, sentiu que tinha recebido e perdido uma coisa infinita, algo que não poderia recuperar, nem mesmo vislumbrar, porque a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade dos homens.
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
O mais querido
Depois de quase sete anos no cargo, quando à exaustão do poder se soma o desgaste natural junto à população, é impressionante que Luís Inácio Lula da Silva continue alcançando índices de aprovação maciça à sua persona e ao seu governo. Sobretudo numa época sombria, de crise mundial já consolidada, com refluxo na atividade industrial e aumento do desemprego. Pela milionésima vez cabe a pergunta: o que esse ex-torneio mecânico e ex-líder sindical possui, além de um carisma pessoal avassalador e uma invejável capacidade de falar olho no olho com seus súditos, como numa conversa de bar? É simples: Lula tem competência e, principalmente, uma sensibilidade social genuína, ausente em todos os que vieram antes dele. Baixada a poeira do seu primeiro governo, terrível sob quase todos os aspectos, ele reviu a rota, tirou a água que invadia a proa e reconduziu o país à condição de nação emergente, e não em fase de submersão. Para isso, foi necessário limar o pendor autoritário e a corrupção institucionalizada como mecanismo de persuasão e manutenção do poder (ambos personificados na figura abominável de José Dirceu). Restou um governo razoavelmente eficiente, que tem como principal premissa a redução da brutal desigualdade social que assola o Brasil desde que ele atendia pela alcunha de Ilha de Vera Cruz. E há, obviamente, o fator Lula, que está acima do seu partido e do seu governo. Quando ele combate o spread e o excesso de juros nos bancos públicos, está na verdade corrigindo uma distorção histórica: bancos públicos não são empresas criadas com o objetivo primordial de obter lucro, e sim de oferecer crédito à população em condições menos adversas que os privados. Atitudes assim poderiam ser evitadas com o costumeiro empurrar com a barriga, por isso é tão louvável que ele as tenha. E mais: pode-se contestar o assistencialismo como um fim em si, mas num país de miseráveis ele é legítimo e necessário, simplesmente porque não se pode deixar alguém morrer por falta de conteúdo no estômago. Ignorar isso é sucumbir a um discurso elitista, cada vez mais patético em sua tentativa de desqualificar o dar o peixe, como se fosse possível ensinar quem não consegue se manter de pé a colocar a isca no anzol e lançar a linha. Lula é popular não porque usa o assistencialismo em benefício próprio (e usa), mas porque criou uma rede de proteção social que beneficia milhões de pessoas que jamais tiveram qualquer atenção por parte do Estado.
O assistencialismo é o grande diferencial do governo Lula, e reconheço que isso é muito pouco, embora existam aspectos positivos na gestão econômica, essencialmente desenvolvimentista, ao contrário do monetarismo que reinou nos anos FHC. Prefiro assim, mesmo morrendo de medo das conseqüências do PAC, que nos próximos dois anos vai ser usado à exaustão para alçar Dilma Roussef à condição de candidata viável ao Planalto. Na seara política o governo ainda peca pela profusão de negociatas e o aparelhamento dos cargos técnicos – resquício da herança stalinista no PT. E é claro que persistem a demagogia barata, o excesso de informalidade no trato diplomático, os equívocos na política externa (sobretudo no apoio aos tiranetes bolivarianos e no uso de pesos distintos ao tratar de quem nos pede asilo). Mas as virtudes são incontestes e – num país combalido por séculos de egoísmo e inapetência – muito bem-vindas.
Não sei se o PT deve continuar gerindo o país a partir de 2010. Talvez a alternância com o PSDB seja saudável, talvez não, embora essa alternância tenha sido responsável por uma reviravolta no panorama social, político e econômico brasileiro nos últimos 15 anos. Por outro lado, é sintomático que excrescências da nossa política (Paulo Maluf, Antonio Carlos Magalhães, Joaquim Roriz etc) estejam saindo (ou já saíram) de cena, e que tenhamos hoje novas lideranças aparentemente capazes. Muito embora a minha geração não viva para ver um poder público livre da corrupção generalizada e do mau-caratismo em escala industrial. A eleição de 2010 será a primeira desde 1989 (ou seja, 21 anos) da qual Lula não participará diretamente. Sentiremos saudades? Não sei. Mas, para quem votou nele em três dos cinco pleitos que disputou, vai ser impossível não sentir uma ponta de nostalgia com a sua saída de cena, mesmo que provisória. E lembrar de um tempo em que Lula e o PT representavam a nossa reserva moral. Isso acabou. Vivemos tempos de pragmatismo, e não há espaço para invocações românticas. De qualquer modo, acho que esse pernambucano de Garanhuns vai entrar para a história como o presidente que conseguiu mitigar nossa miséria atávica, o que já é um feito e tanto.
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
domingo, 1 de fevereiro de 2009
O estorvo de cada um
David Lynch já cravou seu nome na história do cinema pelos flertes com o bizarro e o nonsense, presentes, por exemplo, em Coração selvagem e Cidade dos sonhos. Mas seu filme que ainda hoje encontra eco no meu coração é mesmo A história real, que revi ontem na TV, ainda que seja tão linear e essencialmente humanista, características que só vamos encontrar de novo no Lynch de O homem elefante, outro de meus preferidos. Há uma cena em A história real da qual não me recordava e que é essencial para a trama: é quando o velho viajante Alvin (Richard Farnsworth) confessa – a um homem idoso como ele e ex-combatente como ele, portanto muito mais apto a entender sua angústia silenciosa – que matou por engano um estimado companheiro de exército durante uma batalha na Segunda Guerra. E que só agora, naquele momento, outra pessoa além dele próprio ficava a par do episódio.
É só uma cena rápida em uma obra-prima recheada de grandes cenas e diálogos, mas ela é fundamental para se entender a personalidade de um homem que, para reencontrar o irmão com quem brigara décadas antes, sai viajando pelas estradas americanas a bordo de um cortador de grama levando atrás um trailer improvisado. Alvin precisou de mais de 50 anos para tirar do ombro um estorvo que o marcou durante todo esse tempo, fazendo com que se entregasse deliberadamente ao álcool e à melancolia (a atuação de Farnsworth, que se matou logo após o encerramento das filmagens ao saber que tinha um câncer incurável, só faz acentuar o peso desse estorvo). Na mesma cena, ele ainda comenta: “No final da guerra já estávamos matando garotos”, referindo-se aos meninos alemães recrutados nos estertores do nazismo para morrer no front. Mas a verdade é que Alvin era ele mesmo um garoto, despejado em algum confim da Europa ou Ásia para vivenciar o aniquilamento da própria inocência.
Ninguém sai imune (ou seria impune?) de uma guerra. Talvez seja a experiência mais próxima do que se entende por inferno. Quando assistimos a esses documentários sobre crimes de guerra no Vietnã ou no Iraque, percebemos que seria impossível não existirem abusos por parte dos invasores: são apenas garotos, tão equipados com armamentos que mal conseguem caminhar, entregues ao ato de dizimar seres humanos como se brincassem com soldadinhos de chumbo. Filmes como O franco atirador (Michael Cimino) e Além da linha vermelha (Terrence Malick) falam disso com propriedade, assim como o romance de estréia de Norman Mailer, Os nus e os mortos. Em A história real esse é apenas mais um ingrediente que nos ajuda a compreender a desdita de Alvin e sua imperiosa necessidade de redenção. Rever esse filme de tempos em tempos também é imperioso.
O clarão e o pipoco
Ontem eu voltava para casa no início da noite, após uma tarde descontraída ao lado de amigos e ex-colegas de jornal. Então, quase ao lado do Iguatemi, vi um motoqueiro meio inquieto alguns metros à minha frente dirigindo em ziguezague, querendo pegar a pista da esquerda. Mas de repente ele voltou para a direita, discutiu com um motorista de táxi que pegava o retorno para o shopping e parou a moto ao lado do acostamento: tirou um revólver do bolso, apontou e atirou. Questão de segundos. Vi o clarão e ouvi o pipoco alto. Em seguida, saiu em disparada, embora não tanto, a ponto de eu ainda conseguir vê-lo bem mais adiante, já na avenida Tancredo Neves. Não sei se acertou o homem no carro ou alguém que passava por ali (hoje pela manhã entrei nos sites dos jornais baianos em busca de alguma notícia, mas encontrei apenas notas sobre os shows “apoteóticos” do Festival de Verão: é a prova inequívoca de que vivemos num idílio eterno). Foi um acontecimento tão rápido que até agora não consigo conter minha perplexidade. Já vira pessoas armadas ameaçando outras em assaltos nas sinaleiras e também já ouvira o barulho de tiroteios, mas nunca presenciei alguém atirando deliberadamente em outra pessoa. O clarão e o pipoco agora soam meio irreais, como se fossem o sonho de uma noite de Verão. O fato é que não fiz nada, não anotei a placa do motoqueiro, não o segui, apenas continuei dirigindo meio no piloto automático até chegar em casa. O que mais me chamou a atenção é que, a não ser que esteja enganado, não se tratava de um assalto. Foi mais uma dessas brigas estúpidas que vemos todos os dias na rua entre imbecis com excesso de testosterona no sangue. E aí me pergunto: o que exatamente aquele sujeito almejava quando apertou o gatilho? Matar um ser humano como ele? Assustá-lo, feri-lo? É curioso como gente assim não mede conseqüências. Parece incapaz de imaginar que uma bala, caso não acerte seu alvo primordial, irá inapelavelmente atrás de outro. Pode ser um muro, uma lataria de carro ou, muito provavelmente, um corpo humano. Quando houve aquele plebiscito sobre o fim ou não do porte de arma por civis, o argumento mais usado pela ala belicista era que não podíamos deixar os cidadãos de bem indefesos, à mercê da bandidagem. Cidadãos de bem? O sujeito que vi ontem poderia muito bem ser enquadrado nessa nobre estirpe, pois não deve – pelo menos a princípio – ter como atividade principal cometer crimes contra o patrimônio alheio. Um país que considera pessoas assim cidadãos de bem (e permite que possam carregar uma arma no bolso) só pode mesmo chegar aonde chegou.
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