Vim para o trabalho ouvindo um disco que adoro: Thelonious Monk at the Blackhawk. Gravação ao vivo, cheia de ruídos de gente conversando, mas que é, junto com Straight no chaser, o meu álbum preferido de Monk. Fiquei prestando atenção nos solos ferinos e metálicos de Charlie Rouse. Solos precisos, vívidos, sem arestas. Principal parceiro de Monk, o saxofonista é um desses casos muito comuns no jazz de artistas talentosíssimos que não alcançam a notoriedade merecida. Rouse lançou discos excepcionais em carreira solo, como Unsung Hero e Takin’ Care of Business, mas nunca figura nessas listas de grandes gênios do gênero. De todos os saxofonistas que trabalharam com Thelonious – Coltrane e Sonny Rollins incluídos –, ele foi o que melhor entendeu as intrincadas estruturas harmônicas do mestre do piano percussivo. Seu solo em Round Midnight, que acabei de ouvir em meio a um congestionamento, me comove profundamente. Como me comovem suas intervenções em Japanese Folk Song e Locomotive, ambas do Straight no Chaser. Mas quase ninguém, fora do restrito círculo de iniciados em jazz, conhece Charlie Rouse, ou apenas se referem a ele como “o sujeito que tocava com Monk”. É o mesmo caso de outros caras maravilhosos mas invisíveis, como Louis Smith (trompetista virtuoso, da escola de Clifford Brown, que tocou com Horace Silver) ou Zoot Sims (um dos ídolos de Luis Fernando Verissimo e criador de ao menos dois discos essenciais: Suddenly it’s Spring e Zoot Sims and The Gershwin Brothers). Mesmo Paul Desmond, o genial sax alto do grupo de Dave Brubeck, não alcançou o prestígio que seu talento exigia. Desmond dizia que gostaria de soar como um dry martini. Ou seja: algo capaz de mesclar contemplação com amargura (se é que essa minha definição de um dry martini pode ser levada a sério). Basta ouvirmos Take Five ou Samba Cantina para constatar que ele conseguiu.
sexta-feira, 31 de julho de 2009
sábado, 25 de julho de 2009
O tempo passou na janela
Acredito que não apenas pessoas, mas também nações acabam vendo a história passar na sua frente sem que consigam se agarrar a ela. Assim como Collins, o Brasil teve a sua grande oportunidade. Foi lá pelo final dos anos 50, quando o país parecia viver um caso de amor com seus habitantes. Tínhamos a Bossa Nova, éramos o celeiro do mundo e nos sentíamos predestinados a ser o país do futuro. De certa forma, o conceito de welfare state (pleno emprego, prosperidade econômica, políticas de bem-estar social) aplicado nos países desenvolvidos respingava por aqui, embora embalado com traços de populismo e demagogia. Mas, também como Collins, vimos o futuro chegar pela janelinha da espaçonave sem que nos tornássemos o seu timoneiro, ou pelo menos um dos. Cinqüenta anos depois, o país do futuro ficou no passado, enquanto uma ditadura incompetente e obtusa jogava por terra todas as nossas aspirações, seguida de presidentes ineficazes e adeptos dos panos quentes. Assim como as outras metrópoles do país, o Rio, aquela cidade linda onde Leila Diniz tomava banho de mar com a barriga prenhe à mostra, virou um festival de carnificina. A pobreza quadruplicou, e uma massa de miseráveis erra pelas cidades, refém da violência e do crack, enquanto os mais abonados se endividam ou se corrompem, ratificando a afirmação que uma vez o cineasta Silvio Tendler me fez, de que “os pobres não têm direitos, e a classe média não quer direitos, só privilégios”. Somos hoje emergentes, ao lado da Índia, uma nação que praticamente inexistia quando Tom, Vinicius e João esboçavam suas inquietações estéticas. Ou seja: a história nos abraçou, embora num papel secundário.
Preto no branco
Foi então que levei um choque e percebi o abismo que ainda separa brancos e negros neste país. Mas depois de um tempo fiquei pensando: eu preciso mesmo ser preto para sentir uma dor avassaladora quando leio que um garotinho de pele escura que brincava na frente de casa foi morto por policiais que chegaram numa favela atirando a esmo? Não, não preciso. Esse fato doeu em mim por dias, e ainda hoje sinto um aperto no coração quando lembro dele. Assim como lembro, com um pesar que não cessa, de bebês bósnios partidos ao meio pela insânia sérvia a serviço de Milosevic, 15 anos atrás. Ou quando leio sobre toda aquela gente morta nos campos de concentração pela insânia alemã a serviço de Hitler, quando nem era nascido. Não, não preciso ser preto, ou bósnio, ou judeu, para sentir na carne o mal que o homem faz a si mesmo e a outras espécies vivas. Nenhuma raça tem exclusividade da dor, até porque – ao menos para mim – formamos uma única raça, essa que há alguns milhares de anos perambula de forma errática pelos quatro cantos do mundo, produzindo destruição, mas também beleza.
Erosão
domingo, 19 de julho de 2009
Moto-perpétuo
É claro que em Machuca o diretor toma partido. Escolhe o lado de Allende, mesmo mostrando que a vida sob o seu governo era um caos, onde faltavam produtos básicos e onde a miséria permanecia incólume, ali nos guetos de pobreza extrema. De qualquer modo, como escolher o outro lado? O que se vê ao final do filme não é uma invasão de seres alienígenas prontos para destruir Santiago, como se poderia esperar de um filme de Roland Emmerich ou Michael Bay. É uma amostra edulcorada da realidade (porque perante a realidade a ficção será sempre edulcorada), aquela mesma que fez da tortura e do assassinato coletivo os combustíveis primordiais do regime de Pinochet. Uma realidade de olhos arrancados, vaginas invadidas por ratos vivos e seres humanos jogados do alto de aviões. A economia melhorou? Com o perdão da palavra, foda-se a economia. Estamos falando de vidas destruídas, durante ou muito depois do golpe. Mas Machuca vai mais longe. Vai ao âmago da nossa desgraça. É quando o garoto rico diz a um soldado, no meio de uma matança na favela: “Olhe pra mim, eu não pertenço a isso”, e o soldado vê que se trata de um garoto de traços anglo-saxões, com tênis Adidas no pé. Não, ele não pertence a isso. No caso, o extermínio de pobres vagamente ligados à esquerda comunista, incluindo aí o seu amigo que dá nome ao filme. Claro que ele não pertence a isso, assim como eu, que bebo meu vinho português num cômodo confortável numa noite chuvosa, e provavelmente você que lê isso agora. Então o que fazer? Como ir além de um texto pretensamente indignado? De que forma devo, ou devemos, agir para evitar essa barbárie que se instala e sempre se instalou diante de nós? Não sei. Sinto um travo amargo, um misto de revolta e impotência que sei que será atenuado quando for dormir, embriagado e de barriga cheia, e que amanhã é um outro dia. Não é, como diria Renato Russo. Sei apenas que daqui a vinte anos – ou a quarenta ou sessenta, se chegar até lá – vou continuar me fazendo a mesma pergunta. E, obviamente, vou continuar sem resposta.
terça-feira, 14 de julho de 2009
Da cama para o mundo
Pelo menos uma vez por semana recebo e-mails de conteúdo pornográfico. É uma corrente virtual que não cessa. Outro dia foi uma seqüência protagonizada por uma participante do Big Brother. Ontem foi a vez das cenas da vereadora de São Paulo, cuja vida virou pelo avesso com a disseminação das imagens toscas em que aparece abocanhando um pênis e sorrindo para a câmera. É praticamente o que vemos durante os quarenta e poucos segundos de duração do vídeo. Terminei de ver, apaguei a mensagem e senti um tédio danado. Lembrei de imediato de um conto de Roberto Bolaño em que ele fala da “tristeza dos caralhos”, ou melhor, da “tristeza dessas pirocas monumentais na vastidão e na desolação deste continente”. Você termina de assistir e tem a impressão de que aquilo não reverbera, não provoca reações significativas no seu córtex cerebral. Mais ou menos como eu me senti aos 13 anos, após a primeira e entusiasmante meia-hora de exibição de Garganta Profunda, o primeiro pornô a que assisti, num cinema vagabundo de Aracaju. A repetição gera o fastio.
Embora não me negue o prazer de contemplar fotos de mulheres nuas, no geral me cansa essa propagação maciça de voyeurismo pela internet. Essa necessidade cada vez mais premente em homens e mulheres de acrescentar uma dose farta de exibicionismo ao sexo, sobretudo o casual. Mais do que nunca, numa espécie de pulverização da intimidade, o prazer acontece não no momento do orgasmo, mas depois: dias, semanas, meses ou – no caso da vereadora – anos. Como se, ao gravar aquelas imagens, fosse possível perpetuar o prazer e passá-lo de mão em mão. Além, obviamente, de permitir o surgimento de novos Casanovas. Hoje, a cereja do bolo não está na relação sexual em si, mas na quantidade de pessoas que presenciam essa relação à distância. Que nem aquela piada em que o cara transa com a Sharon Stone numa ilha deserta e depois de um tempo, já meio de saco cheio, pede a ela que se fantasie de homem só para ele chegar e dizer: “Rapaz, você não sabe quem eu tô comendo”.
Mas não é só isso. Em alguns e-mails, junto com as imagens, recebo informações sobre a mulher que se despe para a câmera: é recepcionista da clínica tal na cidade tal ou trabalha na agência tal do banco tal. É como se fosse preciso buscar algum tipo de legitimidade naquelas imagens. Como se, ao saber que se trata de uma moça comum, gente como a gente, alguma fagulha despertasse em nós a libido refreada pelo excesso de ócio ou de trabalho. Não basta mais ver vídeos ou fotos estrelados por quem sobrevive da indústria do sexo (indústria que, como as demais gigantes do entretenimento, deve ter perdido parte do poder e do faturamento com a chegada da internet). É preciso conferir a vida como ela é. Pescar na rede imagens gravadas por celulares mostrando bocas, picas e bucetas anônimos em ação, ou de preferência saber que eles pertencem a alguém com nome, sobrenome, carteira de trabalho e CPF. E assim vamos nos abobalhando, ávidos por sexo a qualquer preço (incluindo aí a humilhação alheia) e entediados ao extremo, como viciados recém-libertos do efeito da droga. Até que a caixa de entrada volte a se encher e nos faça gozar de novo com o pau dos outros.
domingo, 12 de julho de 2009
Sobre algozes e vítimas
segunda-feira, 6 de julho de 2009
Meu pequeno purgatório
Cheguei a colocar o título no post: Anoitece sobre Tegucigalpa. E em seguida exprimi minhas impressões sobre o golpe em Honduras, manifestando minha indignação em alguns trechos, lamentando em outros o nosso fatalismo, a sina inescapável da América Latina, com seus caudilhos e tipos soturnos ostentando insígnias desimportantes. E concluí que, no caso de Honduras, a história não se repetiu como farsa, e sim novamente como tragédia. E que o já frágil argumento usado pela junta militar para justificar a derrubada do presidente caiu de vez por terra no aeroporto de Tegucigalpa, ao lado de corpos de civis e cápsulas de balas de fuzil.
Escrevi o texto inteiro, reli e me preparava para postá-lo quando parei um pouco para pensar: hoje mesmo, na grande imprensa ou fora dela, vou encontrar análises sobre o assunto muito mais embasadas, com muito mais conhecimento de causa e provavelmente embaladas por textos mais precisos e inspirados do que o meu. A partir daí, comecei a questionar o meu texto, a necessidade de escrevê-lo e até mesmo o verdadeiro sentido deste blog. Por que e para quem escrevo? Uma amiga me disse certa vez que escrevo para mim mesmo, o que é verdade. Mas, se fosse apenas isso, por que disponibilizaria um conteúdo tão pessoal para qualquer pessoa que entre no Google e, por uma associação de palavras, encontre o endereço em meio ao denso emaranhado de informação que povoa a web?
Há, evidentemente, uma inclinação narcisista em criar um blog e provê-lo duas ou três vezes por semana de novos textos em primeira pessoa, a maioria escrita com certo apuro estético, evitando opiniões derivativas e buscando ponderações inusitadas ou ângulos inesperados para determinado assunto. Sei que tenho um número pequeno de leitores freqüentes, entre 15 e 20, acredito, a maioria formada por pessoas que conheço. E outros ocasionais, que de vez em quando digitam o endereço e fuçam o que ando escrevendo. Alguns comentam os posts, outros mandam e-mails, os demais optam pelo silêncio ou a indiferença. Como todos eles, não faço idéia sobre qual é o rumo deste blog. Numa analogia automobilística, ele seria menos um carro de passeio e mais um táxi. Ou seja: seu itinerário não é ditado pelo condutor, e sim pelos passageiros (no caso, os temas que surgem na minha cabeça e às vezes me impedem de dormir sossegado). Sei apenas que o blog é guiado por motivações muito breves, e se passar o dia posso não palpitar mais sobre determinado assunto, como já fiz algumas vezes, deixando o esboço morrer de inanição em algum documento do Word. Também me desobrigo de comentar tudo que ouço, leio ou assisto, a não ser quando me comove ou incomoda. Não quero, aqui, exercitar a arte da crítica, mas sim usar obras de arte ou da realidade como fagulhas capazes de detonar barris de pólvora escondidos nalgum canto da mente, criando clarões que lancem luz sobre o meu jeito, por vezes contraditório, outras vezes insensato, de olhar e pensar a condição humana. Em seis meses de blog, este é um balanço um tanto confuso do que já fiz e do que ainda quero fazer neste pequeno purgatório. Sei apenas que adoro escrever aqui, e espero que os meus parcos leitores compartilhem, em maior ou menor medida, desse prazer.