Com um atraso de alguns anos, acabei de assistir a Machuca, um filme chileno dirigido por Andrés Wood. Um filme chileno que trata de uma chaga chilena – a permanência da desigualdade – assim como poderia tratar de uma chaga brasileira, argentina, angolana, chinesa, mexicana, haitiana ou filipina. E, como já aconteceu e voltará a acontecer muitas vezes no decorrer da minha existência, a minha cabeça se embaralha, dá um nó cego, num vai e vem que não se extingue nunca, por mais que o tempo passe e eu pense que alguma coisa anda para frente, em vez de se reproduzir ao infinito, como um moto-perpétuo. Por que tenho que fazer aos 39 anos a mesma pergunta que me fazia aos 20? Por que, depois de 10 mil anos ou mais do que se convencionou chamar de civilização, a humanidade ainda é capaz de perpetuar a pobreza? De manter em realidades só na aparência estanques gente que tem muito e gente que tem nada? Por que – e reconheço nesses questionamentos uma gigantesca e inútil ingenuidade – a injustiça permanece sendo o motor da nossa evolução como espécie? A resposta não está nos discursos de esquerda e muito menos nos de direita, ou sequer está soprando no vento, como Dylan nos fazia crer. Nem com Marx, nem contra Marx, como diz um livro de Norberto Bobbio que tenho aqui na estante (e que não li). Para ser franco, não acredito que exista resposta, ou ao menos uma resposta alentadora, algo que nos possa conduzir a um destino além da estupidez, onde regimes autoritários ou pretensamente democráticos (se levarmos ao pé da letra a origem da palavra democracia) levam a reboque milhões de pessoas, jogando-as numa vala comum na qual o horizonte é só um borrão espesso e refratário à lucidez e à felicidade. Continuamos quase tão perdidos quanto os egípcios do tempo da servidão coletiva ou dos humanistas gregos. Em que avançamos? Na tecnologia certamente. No domínio da agricultura, da pecuária, das vacinas que evitam epidemias. Mas por que, quarenta anos após a chegada do homem à lua, uma façanha e tanto do desenvolvimento humano, não chegamos à cura da indigência?
É claro que em Machuca o diretor toma partido. Escolhe o lado de Allende, mesmo mostrando que a vida sob o seu governo era um caos, onde faltavam produtos básicos e onde a miséria permanecia incólume, ali nos guetos de pobreza extrema. De qualquer modo, como escolher o outro lado? O que se vê ao final do filme não é uma invasão de seres alienígenas prontos para destruir Santiago, como se poderia esperar de um filme de Roland Emmerich ou Michael Bay. É uma amostra edulcorada da realidade (porque perante a realidade a ficção será sempre edulcorada), aquela mesma que fez da tortura e do assassinato coletivo os combustíveis primordiais do regime de Pinochet. Uma realidade de olhos arrancados, vaginas invadidas por ratos vivos e seres humanos jogados do alto de aviões. A economia melhorou? Com o perdão da palavra, foda-se a economia. Estamos falando de vidas destruídas, durante ou muito depois do golpe. Mas Machuca vai mais longe. Vai ao âmago da nossa desgraça. É quando o garoto rico diz a um soldado, no meio de uma matança na favela: “Olhe pra mim, eu não pertenço a isso”, e o soldado vê que se trata de um garoto de traços anglo-saxões, com tênis Adidas no pé. Não, ele não pertence a isso. No caso, o extermínio de pobres vagamente ligados à esquerda comunista, incluindo aí o seu amigo que dá nome ao filme. Claro que ele não pertence a isso, assim como eu, que bebo meu vinho português num cômodo confortável numa noite chuvosa, e provavelmente você que lê isso agora. Então o que fazer? Como ir além de um texto pretensamente indignado? De que forma devo, ou devemos, agir para evitar essa barbárie que se instala e sempre se instalou diante de nós? Não sei. Sinto um travo amargo, um misto de revolta e impotência que sei que será atenuado quando for dormir, embriagado e de barriga cheia, e que amanhã é um outro dia. Não é, como diria Renato Russo. Sei apenas que daqui a vinte anos – ou a quarenta ou sessenta, se chegar até lá – vou continuar me fazendo a mesma pergunta. E, obviamente, vou continuar sem resposta.
É claro que em Machuca o diretor toma partido. Escolhe o lado de Allende, mesmo mostrando que a vida sob o seu governo era um caos, onde faltavam produtos básicos e onde a miséria permanecia incólume, ali nos guetos de pobreza extrema. De qualquer modo, como escolher o outro lado? O que se vê ao final do filme não é uma invasão de seres alienígenas prontos para destruir Santiago, como se poderia esperar de um filme de Roland Emmerich ou Michael Bay. É uma amostra edulcorada da realidade (porque perante a realidade a ficção será sempre edulcorada), aquela mesma que fez da tortura e do assassinato coletivo os combustíveis primordiais do regime de Pinochet. Uma realidade de olhos arrancados, vaginas invadidas por ratos vivos e seres humanos jogados do alto de aviões. A economia melhorou? Com o perdão da palavra, foda-se a economia. Estamos falando de vidas destruídas, durante ou muito depois do golpe. Mas Machuca vai mais longe. Vai ao âmago da nossa desgraça. É quando o garoto rico diz a um soldado, no meio de uma matança na favela: “Olhe pra mim, eu não pertenço a isso”, e o soldado vê que se trata de um garoto de traços anglo-saxões, com tênis Adidas no pé. Não, ele não pertence a isso. No caso, o extermínio de pobres vagamente ligados à esquerda comunista, incluindo aí o seu amigo que dá nome ao filme. Claro que ele não pertence a isso, assim como eu, que bebo meu vinho português num cômodo confortável numa noite chuvosa, e provavelmente você que lê isso agora. Então o que fazer? Como ir além de um texto pretensamente indignado? De que forma devo, ou devemos, agir para evitar essa barbárie que se instala e sempre se instalou diante de nós? Não sei. Sinto um travo amargo, um misto de revolta e impotência que sei que será atenuado quando for dormir, embriagado e de barriga cheia, e que amanhã é um outro dia. Não é, como diria Renato Russo. Sei apenas que daqui a vinte anos – ou a quarenta ou sessenta, se chegar até lá – vou continuar me fazendo a mesma pergunta. E, obviamente, vou continuar sem resposta.
8 comentários:
Ainda não vi esse filme, mas gosto dessa temática. Acho que assisti a todos de Costa Gavras. Eu pertenço a isso, Paulinho. Acho que porque tenho o DNA daqueles jagunços dizimados ali no sertão, ou porque sempre estive entre os que lutam pela sobrevivência. Mas, embora continue me revoltando com essas desigualdades, acho que temos avançado. Vivemos mais, e melhor, claro, apesar das tantas exclusões. Caminhamos, sim, pra um mundo melhor. Só precisamos acreditar mais, ter mais fé, como diz a música de Gonzaguinha: "fé na vida, fé no homem, fé no que virá". Porque foi o sonho de muitos que morreram nos paus-de-arara ou nas emboscadas da polícia ou enforcados nas praças que nos fez chegar até aqui livres de coisas horrorosas como a escravidão. Só precisamos voltar a sonhar juntos e ter clareza de onde estão nossos inimigos. Agora nessa minha ida a Canudos pude confirmar como a solidariedade transforma e como o individualismo tem sido um aliado poderoso dos nossos inimigos. Sem medo de ainda citar Marx, "inimigos de classe".
Concordo em boa parte com você, Socorrinho. Concordo que avançamos em várias questões, como o fim da escravidão e a derrocada do nazi-fascismo, e também concordo que precisamos acreditar que existe alguma evolução em curso. Mas é impossível refrear o ceticismo quando vemos um filme como Machuca (assista, vale a pena) e lembramos do legado de Pinochet – ou de Milosevic, Osama, Bush, Pol Pot, Médici, Videla, Idi Amin, Mobutu ou aquele imbecil da Coréia do Norte de quem não nunca sei o nome... Enfim, encaro o ceticismo como uma defesa contra essa gente toda que atravanca o nosso caminho, e que detém poder demais por tempo demais. Ainda mais quando sei que o mundo, entre os anos 50 e 70, chegou mais próximo de algo que se possa chamar de civilização, mas então a coisa degringolou e chegamos ao século 21 assolados pela barbárie. Mas quem sabe um dia isso passa.
Paulao, ainda nao vi o filme, mas tou vivendo uma realidade mais escrota do q conhecia. Uma coisa foda q acontece qnd volto prai é q me sinto no 1o mundo, com ruas limpas, iluminadas, sinais de transito, etc. Enfim, um mundo "civilizado", com seus problemas tb, mas ao q parece em constante evoluçao. E olhe q eu sou um privilegiado em relaçao a media local.
Se houvesse consciencia politica, com certeza estariamos em outro patamar, pois nunca passamos por uma guerra ai e isso sim é violencia. E nao adianta falar em guerra do trafico ou violencia urbano, pois por mais q a insegurança seja foda, ate hj os traficantes nunca usaram de minas terrestres pra deixar tanta gente com sequelas pelas ruas, nem expulsaram meio mundo de pessoas de suas cidades do interior.
Bom, ia me alongar ainda mais, ess papo rende, mas tenho q ir agora.
Abs e valorize sua Belgica.
É importante passar por uma experiência como a que você está vivendo, até para ter uma medida quase exata de onde o homem pode chegar, embora Angola seja um país – bem ou mal, mais mal do que bem – em reconstrução. Na pior África, aquela de Serra Leoa, Libéria ou Sudão, o buraco é muito mais embaixo, e aí talvez você passasse a achar que, junto deles, Luanda é primeiro mundo. Só não podemos perder de vista os parâmetros minimamente aceitáveis do que significa uma vida decente. E podemos ver nitidamente o aviltamento desses parâmetros tanto no Brasil quanto em Angola. Enfim, vamos vivendo e pensando num jeito de melhorar tudo isso.
abração
Obrigada, querido, gosto muito deste filme (por razões óbvias). Quando tiver a resposta, me conte, eu também estou aguardando. Beijos
Obrigado a você, querida. Mas acho que a resposta, se um dia ela aparecer, será dada aos nossos bisnetos.
beijão
O filme não chega a ser ruim, mas é... hmmm... cult demais pro meu gosto. Mas não se engane, não sou fã apenas de filmes comerciais. Prefiro o meio termo.
Rapaz, esse filme é uma obra-prima. Comovente e impiedoso ao mesmo tempo. Saí devastado dele.
abs
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