Outro dia, numa mesa de bar, tive com uma amiga dos tempos de jornal uma discussão acalorada – como devem ser as discussões em mesas de bar, desde que terminem com um abraço e algumas saideiras, como esta terminou. Falávamos sobre as diferenças na evolução das relações entre brancos e negros nos Estados Unidos e no Brasil. No primeiro, o recrudescimento das tensões raciais nascidas após a Guerra da Secessão provocou violentos embates e a exacerbação do preconceito, personificada na formação da Ku Klux Klan, que tinha o costume de enforcar negros ou queimar igrejas cheias de homens, mulheres e crianças de cor (e basta ouvir Billie Holiday cantando Strange Fruit para sentir um décimo da dor que tudo isso causou). O Brasil não chegou a tanto. Nossa índole cordial, latina e acomodada produziu um racismo mais ameno, embora apenas na aparência. Já escrevi neste blog que nunca precisamos ter uma Rosa Parks, aquela moça que se recusou a ir para o banco de trás reservado aos negros nos anos 50, dando início a uma nova era no combate à discriminação racial. Não precisamos porque aqui as negras não eram proibidas de freqüentar a parte da frente dos ônibus, mas não o faziam ou porque não tinham dinheiro ou porque tinham vergonha. Aqui a dissimulação sempre foi a regra. O não-dito, como também já havia escrito. Deu no que deu: hoje os EUA têm um presidente negro e lida muito melhor com o preconceito do que o Brasil, onde o homicídio é a principal causa de morte de negros jovens (ou seja, perdemos mais essa guerra). Nisso, eu e minha amiga – que é negra e tem perfeita consciência do que isso representa no outrora país cordial – concordamos. Mas discordamos num ponto crucial. Para mim, viver na América do início do século 20 era infinitamente pior do que viver aqui, mesmo com toda dissimulação. Afinal, no Brasil não havia uma organização perseguindo e matando de forma sistemática uma raça. Disse isso, e ela arrematou: e você por acaso é preto para entender o nosso sofrimento?
Foi então que levei um choque e percebi o abismo que ainda separa brancos e negros neste país. Mas depois de um tempo fiquei pensando: eu preciso mesmo ser preto para sentir uma dor avassaladora quando leio que um garotinho de pele escura que brincava na frente de casa foi morto por policiais que chegaram numa favela atirando a esmo? Não, não preciso. Esse fato doeu em mim por dias, e ainda hoje sinto um aperto no coração quando lembro dele. Assim como lembro, com um pesar que não cessa, de bebês bósnios partidos ao meio pela insânia sérvia a serviço de Milosevic, 15 anos atrás. Ou quando leio sobre toda aquela gente morta nos campos de concentração pela insânia alemã a serviço de Hitler, quando nem era nascido. Não, não preciso ser preto, ou bósnio, ou judeu, para sentir na carne o mal que o homem faz a si mesmo e a outras espécies vivas. Nenhuma raça tem exclusividade da dor, até porque – ao menos para mim – formamos uma única raça, essa que há alguns milhares de anos perambula de forma errática pelos quatro cantos do mundo, produzindo destruição, mas também beleza.
Foi então que levei um choque e percebi o abismo que ainda separa brancos e negros neste país. Mas depois de um tempo fiquei pensando: eu preciso mesmo ser preto para sentir uma dor avassaladora quando leio que um garotinho de pele escura que brincava na frente de casa foi morto por policiais que chegaram numa favela atirando a esmo? Não, não preciso. Esse fato doeu em mim por dias, e ainda hoje sinto um aperto no coração quando lembro dele. Assim como lembro, com um pesar que não cessa, de bebês bósnios partidos ao meio pela insânia sérvia a serviço de Milosevic, 15 anos atrás. Ou quando leio sobre toda aquela gente morta nos campos de concentração pela insânia alemã a serviço de Hitler, quando nem era nascido. Não, não preciso ser preto, ou bósnio, ou judeu, para sentir na carne o mal que o homem faz a si mesmo e a outras espécies vivas. Nenhuma raça tem exclusividade da dor, até porque – ao menos para mim – formamos uma única raça, essa que há alguns milhares de anos perambula de forma errática pelos quatro cantos do mundo, produzindo destruição, mas também beleza.
6 comentários:
Cê nos deve um outro comentário: o que não acabou em abraços...
Não, Socorrinho, esse não me interessa. O bom de conversar com Bel - e com você também - é que a gente discute e diverge, mas aceita a opinião um do outro e não deixa de tomar a saideira.
beijos
Paulinho, nada mais saudável e eficiente que bons argumentos, as vezes é preciso umas provocações pra tocar em assuntos considerados tabus, claro que sei da sua humanidade e respeito, só que com as ultimas estatísticas dizendo que 30 milhões de jovens não chegarão a completar 18 anos e que desses jovens 90% são negros e afro descendentes, é preciso falar e muito sobre o assunto, o racismo é uma doença, e só existe um jeito de tratar uma doença, diagnosticando... haja mesa de bar haja argumentos,luta e respeito, você é o cara! beijos
O importante é que concordamos no essencial, Belzinha. No fato de que vivemos num país genocida, onde a maioria absoluta das vítimas é negra e pobre. Enquanto isso não mudar, vamos precisar de muitas cervejas para tentar encontrar algo próximo a uma solução. Estamos no mesmo barco, isso é o que importa. Você é a cara!
beijão e vamos beber mais.
PSales! Belíssimo texto, fico feliz por ter presenciado essa discussão ao vivo. Para mim, é sempre uma honra dividir essas cervejas com vocês e aprender cada vez mais. Um grupo tão heterogêneo como nosso faz com que essas nossas saídas sejam muito enriquecedoras. É o legado que o velho Correio nos deixou. Grande abraço!
A honra também é minha, Léo. E são essas diferenças da nossa turma - se é que podemos chamar assim esse bando multifacetado de tipos mais ou menos insanos - que evitam o consenso e a unanimidade. Quando você voltar, voltaremos à mesa de bar.
Abração
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