Não lembro quem disse que "é possível resgatar um homem da escória, mas a escória estará sempre dentro dele". Recordei dessa frase ao assistir a um vídeo que mostra imagens da orca Tilikum e de sua domadora Dawn Brancheau, minutos antes do ataque fatal desferido pela baleia, em meio a uma apresentação no parque aquático Sea World, nos Estados Unidos. São imagens ternas, acima de tudo. O tratamento amoroso da domadora e a forma dócil com que o animal o recebe não prenunciam nada, como se estivéssemos diante de um elefante seduzido por uma criança. Mas a natureza não permite divagações desse tipo, e é claro que a imensidão do oceano estará sempre dentro de Tilikum, assim como a selva estará sempre dentro de um leão, ainda que nasçam em cativeiro. Ainda que seus pais, avós e tataravôs tenham nascido em cativeiro.
Assim também somos nós. Carregamos nossas escórias particulares mundo afora, anos seguidos, encerrando em um cofre imaginário nossas convicções, traumas, preconceitos, vergonhas, frustrações, perdas e remorsos, ainda que nada disso seja verbalizado ou esteja devidamente deglutido e assimilado pelo organismo. Afinal, ainda somos seres primitivos, herdeiros do temor ancestral da escuridão. Um dia, porém, o cofre se escancara, deixando à mostra aquilo que nos habita. Sylvia Plath escreveu: “Sou habitada por um grito”. E continuou: “Tenho pavor dessa coisa escura
que dorme em mim;
Todo o dia sinto seu retorcer emplumado, sua índole ruim”. No caso dela, o grito venceu, deixando atrás de si um estrago e tanto.
O fato é que um dia, quando menos se espera, viramos baleia. Algo em nós se rompe, o oceano se liberta e nos tornamos assassinos ou suicidas – ou as duas coisas. Como Steiner, aquele personagem de A Doce Vida que tinha um Mediterrâneo represado dentro de si. Culto, bem-sucedido e com uma bela família, Steiner era uma espécie de reserva moral para Marcello, personagem de Marcello Mastroianni, que ambicionava abandonar a carreira de repórter de celebridades para se tornar escritor. Um dia, Steiner deu cabo de si mesmo e de seus filhos, esfacelando seu sagrado paraíso particular. Como explicar? Da mesma forma que com Tilikum, o golpe fatal é um átimo de fúria, como um raio sem sentido, precedido e seguido de calmaria.
2 comentários:
Nossa, Paulo, adorei esse texto. Além do valor literário, me identifiquei. Porque ando visitando meus lugares escuros...
Beijo
(que lindo isso "o oceano que nos habita")
Muito obrigado, Nina, mesmo. Em alguns de nós esses lugares escuros são tenebrosos, mas é preciso encará-los para conhecermos o que somos, não?
O oceano que nos habita é claramente inspirado no "sou habitada por um grito" de Sylvia Plath, uma poeta que adoro.
Um beijo
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