Hoje acordei com vontade de ouvir Adoniran Barbosa. De sorrir ao escutar suas tiradas hilárias e me comover com a ingenuidade dos seus personagens. Pus um CD enquanto me arrumava para o trabalho e fiquei ouvindo canções como Apaga o fogo, Mané, Uma Simples Margarida e Despejo na Favela. O centenário de Adoniran foi comemorado com pompa em São Paulo, onde ele se eternizou como o cronista dos humildes. Um reconhecimento merecido. Afinal, há muito mais do que bom humor e irreverência na sua obra. Com um pouco de atenção, é possível identificar bolsões de ternura e melancolia circundando aqueles pequenos sonhos desarrumados pelo cotidiano, aqueles dramas envolvendo barracos derrubados e romances irrealizados pela precariedade financeira de quem os protagoniza. Impossível, por exemplo, não se emocionar com a dramaticidade de Saudosa Maloca (pinçada de forma precisa por Elis Regina numa interpretação inesquecível): “Peguemos todas nossas coisa e fumos pro meio da rua apreciar a demolição. Que tristeza que nós sentia, cada tauba que caía doía no coração”. É um sentimento genuíno, sólido como um compensado vagabundo que protege do frio.
Adoniran é a prova inconteste de que a música brasileira conseguiu falar com as classes populares de igual para igual, e não de cima para baixo, com aquele incômodo olhar sociológico tão freqüente no cinema e na literatura do país. Nesse sentido, o autor de Trem das Onze é muito mais autêntico que um José Lins do Rego ou um Glauber Rocha, para ficar em duas figuras emblemáticas. Não era um intelectual, não discursava para as massas nem pretendia doutriná-las. Apenas reproduzia em forma de canção o que ouvia nas ruas do Bixiga, do Brás e do centro velho. Adoniran fazia parte daquelas vielas, cortiços e botecos, tão caros à memória de quem, como eu, morou naquela região. Alimentava-se daquilo. Seu fio de voz, marinado em cigarro e cachaça, testemunhou uma cidade em feroz transformação, mas ainda provinciana e amigável. Ele foi embora, essa cidade também. Resta sua obra, o que não é pouco.
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