sábado, 25 de dezembro de 2010
2011
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Quero viver mais 200 anos
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Correnteza
Aos poucos, foram surgindo outros personagens: Ambrósio, Amália, Cayo Bermúdez, Don Fermín, Ludovico, Carlitos, Chispas, Teté, Hortênsia, Queta. Gente comum, como eu ou você, que em dado momento se via arrebatada pela história de um país dominado por militares sem ideais, empresários sem dignidade e arrivistas sem escrúpulos. Um país separado por uma correnteza sem rumo. Numa margem, o presidente Odría, os apristas, comunistas e congêneres. Na outra, uma população sem horizonte, capaz de se agarrar ao cipó mais próximo para não submergir no rio do anonimato. Se por um lado é impiedoso com o seu país, por outro Vargas Llosa refaz o percurso de todos esses párias com um afeto que comove. São tragédias que se sucedem sem redenção à vista, amenizadas por ligeiros lapsos de felicidade fugidia, mas inevitavelmente fadadas ao desenlace trágico. Mais do que um romance político, Conversa na Catedral é um romance de formação – no caso, a de Santiago, que rejeita o dinheiro e o afeto do pai para viver miseravelmente, primeiro como militante comunista e mais tarde como jornalista sem ideais, movido pela inércia, destroçado pela própria inteligência. É um dos personagens mais palpáveis que já conheci nessas andanças por romances e contos vida afora. Vi muito de mim em Santiago, assim como vi muito de pessoas que conheço ou que imagino existirem nos demais personagens.
domingo, 12 de dezembro de 2010
A essência de uma era
Uma música que ouço todos os dias, sem cansar, e que descubro a cada novo artista, a cada novo disco desenterrado em lojas ou na internet. O fascínio de um solo quase se evaporando de Lester Young. O dedilhado infinito de Oscar Peterson. A ascese espiritual e musical de Coltrane. A força vital de Blue Mitchell, Lee Morgan, Kenny Dorham. O lirismo de Clifford Brown, que foi embora tão cedo. A sonoridade que se assemelha a um dry martini nos solos de Paul Desmond. A alegria incontida na voz de Louis, que joga por terra qualquer melancolia. A loucura sagrada de Monk. A chama gélida nos solos de Miles, que adoro acima de todos os outros e que ouço agora, nesta noite preguiçosa de domingo.
sábado, 4 de dezembro de 2010
Salute!
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
Ir embora
De um jeito ou de outro, seja qual for a sua motivação, o suicídio é invariavelmente fruto do desespero, mesmo quando planejado de maneira metódica, pensado e repensado várias vezes para que nada saia errado (tanto que há formas engenhosas de se matar que vão muito além da queda, do enforcamento ou do tiro na testa). Um ato complexo, em suma, que Camus definiu como a grande questão filosófica do nosso tempo e que foi cometido por Ernest Hemingway, Virginia Woolf, Stefan Zweig e Sylvia Plath, para ficar restrito ao universo literário. Como eles, multidões solitárias de anônimos se lançam todos os dias rumo ao olvido movidos por perdas avassaladoras, sobretudo emocionais, mas também – e essas são as que mais me intrigam – morais ou financeiras.
Voltando a Monicelli, acho que essa estranheza que o seu suicídio causou em mim tem a ver com um preconceito velado – e provavelmente involuntário – contra a velhice. Por que, por exemplo, um Kurt Cobain pode se matar aos 24 anos, ainda jovem, belo e com a estrada aberta à sua frente, e Monicelli, já no quilômetro final da mesma estrada, não pode? Para um, heroísmo, para o outro, covardia? Como se aos velhos, principalmente se doentes, fosse proibido o livre-arbítrio. Monicelli deu uma banana para toda essa baboseira, assim como Richard Farnsworth, o magnífico ator de A História Real, que meteu uma bala na cabeça ao se ver com um câncer terminal aos 80 anos, em 2000. Não sei o que pensar, afinal, sobre tudo isso. Não tenho nem mesmo uma opinião formada sobre o suicídio, seja ele praticado na velhice ou na juventude. Sei apenas que é um enigma, como muitos que dão forma à alma humana, e que por mais que investiguemos, permaneceremos na penumbra. Ir-se embora da vida, enquanto tantos querem permanecer, um ano ou mais que seja, por aqui.
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
O Brasil nos tempos da cólera
O problema, para pessoas assim, é que a civilização é dinâmica. E a pirâmide social brasileira – que durante muito tempo se configurou como um corpo letárgico, com castas rigidamente depositadas umas sobre as outras – presencia uma mobilidade inédita. Hoje, cada vez mais gente anda de carro, para desespero de pessoas como o jornalista Luiz Carlos Prates, comentarista de uma emissora de tevê catarinense, que esbravejou contra os “miseráveis” motorizados e atribuiu a eles a culpa pelos graves acidentes ocorridos no último feriado nas estradas de Santa Catarina. Gente, segundo ele, que “jamais leu um livro, mora apertado numa gaiola que hoje chamam de apartamento, não tem nenhuma qualidade de vida, mas tem um carro na garagem”. Coincidentemente, também peguei a estrada no feriado e vi muitos motoristas cometendo barbaridades, sendo que muitos deles dirigiam automóveis de luxo, não os habitualmente adquiridos pelos “desgraçados” a que se refere Prates, quase derramando saliva pelos cantos da boca.
O fato é que quando a motivação de uma pessoa para agredir outra está na não-aceitação do que essa outra pessoa é – não o que ela pensa ou defende – então estamos caminhando por um território sombrio. É o mesmo campo minado habitado por israelenses e palestinos, já que um não aceita a existência do outro, embora a convivência pacífica entre ambos fosse a alternativa mais viável. Ou seja: não basta odiar o outro; é preciso acabar com ele. É preciso acabar com os pobres que compram carros, acabar com os gays que andam nas ruas e deveriam voltar aos guetos, acabar com os nordestinos que votam em Dilma Rousseff. O que me leva a pensar que nossa epidemia talvez não seja de cólera, seja de demência mesmo.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
O ser e o nada
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
O homem é um bicho mau
Em O Gato por Dentro, sua singela declaração de amor aos felinos, William Burroughs relembra um episódio de infância traumático: estava com colegas e um “professor sulista com jeito e aparência de político” num acampamento escolar próximo a um rio, quando um texugo se aproximou do grupo. Era um animal pequeno, inofensivo, mas assim mesmo o professor sacou a arma e atirou contra ele. O texugo não foi atingido e, sem se dar conta do perigo, continuou se aproximando,“brincalhão, amistoso e inexperiente como os índios astecas que levaram frutas para os espanhóis, que cortaram fora suas mãos”, descreve Burroughs. Então o professor se aproximou ainda mais e, à queima-roupa, disparou vários tiros contra o bicho, que rolou morrendo pela ribanceira. Aquilo marcou o escritor, e o fez escrever: “O texugo só queria brincar e fazer umas travessuras, e leva um tiro com um .45 do exército. Dá para entender isso? Para se identificar com isso? Sinta isso. E pergunte a si mesmo: que vida vale mais? A do texugo ou daquele perverso de merda branco? Como diz Brion Gysin: o homem é um bicho mau.”
Nunca esqueci desse trecho do livro, e lembrei dele ao ler uma notícia que me chocou: um filhote de coala foi encontrado na Austrália com 15 tiros no corpo, ao lado da mãe morta. Um animal tão frágil e pequeno quanto o texugo de Burroughs, que sobreviveu não se sabe como e agora está sendo tratado por veterinários. Seu estado, claro, é muito grave, já que as balas o atingiram no estômago e no intestino e ele passou por duas cirurgias para a remoção dos bagos de chumbo. Chamado de Frodo na clínica onde está internado, o filhote é uma fêmea com pouco mais de um ano, e pertence a uma espécie ameaçada de extinção na Austrália.
Cada vez mais chego à conclusão de que o homem regrediu alguns milênios em sua escala evolutiva quando criou a pólvora e posteriormente as armas de fogo. A partir desse momento, o ato de matar, que até então exigia envolvimento físico e confronto com o oponente, tornou-se algo banal, que podia ser praticado à distância, sem qualquer desgaste físico – e, a julgar pelo que assistimos ao longo dos últimos séculos, sem desgaste moral também. Mata-se sem pretexto, sem objetivo, sem sentido, já que apertar um gatilho é tão fácil quanto dar um peteleco numa formiga que sobe no nosso braço. Camus sabia bem do que estava falando em O Estrangeiro.
Era isso o que faziam os viajantes de trem nos Estados Unidos do século 19, ao atirar por diversão em bisões enormes que ocupavam pradarias a perder de vista no caminho do oeste, até ficarem quase extintos. É isso o que ainda fazem os caçadores de gorilas no Quênia, dizimando populações inteiras da espécie. Por uma certa ótica, o ser humano se sofisticou com o uso das armas de fogo, e passou a fazer o mesmo com outros seres humanos – a imagem que me vem à mente de imediato é a de Ralph Fiennes no papel do nazista Amon Goeth, atirando a esmo em judeus espalhados pelo campo de concentração em A Lista de Schindler. Daí a matar a distâncias ainda mais seguras – o avião que despeja bombas e varre do mundo populações inteiras – foi um pulo. “O horror, o horror”, como diria Brando/Kurtz em Apocalypse Now.
Dado todo esse histórico, por que ainda nos surpreendemos quando alguém desfere 15 tiros num filhote de coala? Afinal, já vimos pessoas desferirem tiros até em filhotes de pessoas. É que talvez permaneça, pelo menos em alguns de nós, um espanto primordial. Um travo de humanismo e desconforto com a injustiça, que parece ter ficado para trás quando a pólvora ganhou o mundo e nos trouxe até esta terra devastada. Esse espanto talvez nos redima um dia, mas é mais provável que o mal se torne de vez uma força da natureza, como um relâmpago ou um vulcão – o que, pensando bem, talvez já esteja acontecendo.
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Gente é para brilhar
Hoje mais cedo comentei com um velho amigo sobre o significado dessa letra do Ira! Estávamos – eu mais do que ele – em dúvida sobre o significado dos versos acima. Seriam eles uma demonstração explícita de racismo e xenofobia? Ou apenas ironia e rebeldia juvenil? Tanto faz. Conhecemos Nasi, vocalista e um dos líderes da banda, na época em que fazíamos faculdade, em São Paulo, quando o entrevistamos em sua casa para um fanzine que nunca chegou a ser publicado. E chegamos à conclusão de que, pela personalidade dele e dos demais integrantes, seria improvável que Pobre Paulista se configurasse como uma ode ao preconceito.
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
Somos pássaro novo longe do ninho
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
Um talento forjado em amargura
Carregamos a infância por toda a vida. Suas descobertas, perdas, frustrações e pequenas alegrias são como uma tatuagem invisível da qual nos livramos apenas na morte. Talvez por isso, seja praticamente impossível para uma criança que não recebeu afeto manifestar afeto na idade adulta. Cria-se involuntariamente uma carapaça, um invólucro refratário ao amor e às suas manifestações. A Ausência de afeto fez de Charles Bukowski um homem embebido em amargura. As surras diárias – violentíssimas e sem sentido algum – que recebia do pai, aliadas à incapacidade da mãe de evitá-las, o transformaram num homem permanentemente ferido, que vislumbrou no alcoolismo, nas brigas de bar e no vagar errante por subempregos uma improvável válvula de escape. Seria apenas mais um mendigo anônimo, como tantos que vemos por aí, lançados às ruas, se não contasse com um talento maiúsculo – e uma obstinação vigorosa para fazê-lo chegar aos seus leitores.
Bem, pelo menos foi isso o que depreendi ao assistir Bukowski – Born into This, um excepcional documentário dirigido por John Dullaghan. Nele, fica evidente que o escritor só conseguiu se desvencilhar da própria desdita na velhice, quando – para usar uma imagem de sua autoria – parecia ter enfim deixado voar o pássaro azul que habitava seu peito. A desdita pela qual passou, contudo, foi diretamente responsável pela edificação da sua obra e de uma visão de mundo cética, quase niilista. As centenas de poemas e dezenas de obras em prosa que Bukowski produziu deixam entrever com nitidez a sua infância tenebrosa e o desalento que se seguiu a ela. Isso fica claro num depoimento sobre o processo de criação de Misto Quente, seu melhor romance, no qual se mostra comovido, triste, ensimesmado. Corta a cena e lá está ele na casa onde cresceu, sofreu e apanhou, mostrando o lugar na cozinha onde o pai pendurava o cinto com o qual o espancava. É comovente.
Há muitos outros depoimentos preciosos no filme de Dullaghan. E também cenas antológicas, como uma insólita briga de Bukowski com a mulher (captada por Barbet Schroeder nos intervalos das filmagens de Barfly) ou uma animada leitura pública de seus poemas em São Francisco. Mais: vemos cenas prosaicas, cotidianas, como o escritor dirigindo seu carro até uma lavanderia, bebendo (quase sempre) ou chorando ao ler um poema e lembrar de um amor antigo. Enfim, vemos o homem e o escritor como ele foi, com todas as suas idiossincrasias e contradições, mas também com toda a sua ternura.
Bukowski foi, ao lado de Jack Kerouac, meu grande ídolo de juventude. Deixei de ler seus textos com o passar do tempo, mas lembro nitidamente de algumas passagens, dos diálogos ferinos, da força arrebatadora de Misto Quente, Factótum, Crônica do Amor Louco e muitos outros romances, contos e poemas. Ao vê-lo ali, desnudo, tão perto de mim, senti saudade da minha adolescência, e do clarão que se seguiu à descoberta de uma obra tão sincera e poderosa. Mas também senti uma forte pontada de compaixão, ao perceber que essa obra só existiu porque, numa casa modesta em Los Angeles, nos anos 20, um garoto tímido e sensível era surrado sistematicamente por um sujeito abjeto, sob o olhar complacente de uma mãe ausente.
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
Um momento de eternidade
Ontem pela manhã, logo depois de acordar, minha filha me pediu que colocasse um disco do Madredeus. Então ficamos ali, juntos, observando quase em silêncio a voz de Teresa Salgueiro se derramar pela sala. Foram apenas 15 ou 20 minutos sentados no sofá, mas foi como se esse momento se cristalizasse em algum canto do universo, nos alçando à eternidade. Enquanto ela comentava comigo que a cantora era uma soprano e eu respondia dizendo que poucas vezes ouvira um registro tão agudo (e tão lindo), nós permanecemos lado a lado, eventualmente abraçando distraídos um ao outro, como que envoltos numa bolha imune à vertigem do tempo.
Senti uma espécie de epifania, e uma reconfortante sensação de plenitude me invadiu. É provável que, naquele momento, os minutos tenham pairado no vácuo, como uma pedalada no vazio, enquanto uma voz celestial cantava: “Haja o que houver, eu estou aqui. Haja o que houver, espero por ti”. Assim, simples e puro. Ao lado da pessoa que mais amo, eu me senti invulnerável, como se fosse capaz de estancar a sangria das horas. Depois passou, e voltamos ao chão.
Sei que minha filha vai crescer, e que passará por mudanças físicas e comportamentais que mudarão quase por completo aquela criança que estava ali comigo. Sei também que, tal qual um exército inimigo, os fios brancos vão continuar avançando impiedosamente sobre meus cabelos e meu corpo um dia penderá, como um galho seco. Não importa. Momentos como esse justificam a aventura de existir.
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
O princípio do prazer
Alguns vinhos envelhecem bem. Alguns filmes também. Queria assistir algo interessante, indisponível na tevê naquele momento, e ao olhar para a minha prateleira de DVDs encontrei Sideways, que não via desde a época em que foi lançado nos cinemas, acho que em 2005. Revê-lo foi uma experiência hedonística, semelhante à queima do charuto dominicano que fumo agora, aos fraseados de Phil Woods que escuto neste momento e ao chardonnay chileno que me acompanha, já na última taça, enquanto escrevo. Estou me referindo, claro, a prazeres sensoriais, mas que trazem embutido um prazer intelectual, feito uma ligeira epifania. Os quatro ou cinco anos que me separam da primeira vez que assisti ao filme de Alexander Payne se fazem nitidamente presentes. Hoje conheço – pelo menos de nome – alguns dos vinhos citados por Miles, o personagem principal, e entendo algumas referências a aromas e sabores que ele elenca no decorrer da história. São motivos a mais para apreciá-la.
O registro humorístico de Sideways é seu grande trunfo, porque confere leveza a temas áridos, como depressão, carência afetiva, alcoolismo e um lancinante sentimento de inadequação. Miles é um grande personagem, assim como Jack, o amigo tosco que o acompanha para viver uma inusitada despedida de solteiro em meio aos vinhedos da Califórnia. Ambos fogem, nessa jornada, da mediocridade de suas vidas: o primeiro, de um casamento desfeito. O segundo, de um casamento sem futuro, para além do conforto financeiro que irá proporcionar. Um busca alento nos grandes vinhos, outro, no sexo descompromissado. O filme contempla a primeira semana do resto dessas vidas com ironia e leveza, mas também com lirismo e desalento. Há o fim de um ciclo, mas também um recomeço.
Mas foi o pano de fundo que mais me encantou desta vez. Aqueles vinhedos ensolarados despertaram em mim um desejo imediato de viajar até o Vale de Napa. De, como fizeram Miles e Jack, ir parando em pequenos bares e vinícolas para beber vinhos de produção limitada, feitos com afinco por gente de origem rural, meio bronca, como é o norte-americano típico: conservador, protestante, generoso e empreendedor. Nesse sentido, Sideways diz muito mais sobre o espírito da produção do vinho na região do que um filme meio tolo que vi recentemente, chamado Bottle Shock, sobre os bastidores do Julgamento de Paris, quando os rótulos locais superaram os franceses numa histórica degustação às cegas em 1976. Talvez porque, no trabalho de Payne, a bebida seja apenas uma companhia ilustre para as dores e delícias experimentadas pelos personagens, e não um fim em si para a narrativa.
Para mim, também, os vinhos são uma companhia ilustre. Um aprendizado ininterrupto, que passa ao largo do pedantismo e do exibicionismo tão comuns no consumo da bebida entre novos-ricos esnobes. Aprecio seus aromas, sua textura, o prazer singular que proporcionam e a trajetória que fazem desde quando são apenas o sumo dentro das uvas ainda não colhidas até o longo e complexo caminho que enfrentam antes de serem engarrafados, e mesmo lá dentro, quando evoluem lentamente como seres vivos – para usar a expressão de Maya, o par romântico de Miles –, passando pelo auge e decaindo inexoravelmente rumo ao fim. Em muitos finais de noite, como neste, há sempre um deles comigo, proporcionando um prazer solitário herdado de meu pai, perfeito para quem preza o ensimesmamento, a introspecção e as luas minguantes que nascem de madrugada.
***
Segue abaixo a crítica de Sideways, escrita na época do seu lançamento:
A comédia humana*
`Sideways - Entre umas e outras´ empreende uma peregrinação pelas dores e delícias da existência
Não seria exagero afirmar que Sideways - Entre umas e outras é, na essência, um filme sobre prazeres. Alguns essencialmente masculinos e viscerais, como o sexo e o fascínio desmedido pela sedução, outros delicados e universais, como a primeva atração do homem pelo álcool e o delírio silencioso que só os livros são capazes de provocar. Mais do que isso, porém, a comédia sensível e humana assinada por Alexander Payne fala também da inadequação de certos homens ao universo que habitam.
Miles (Paul Giamatti) é um desses homens. Professor do ensino secundário, escritor fracassado, separado há dois anos de uma mulher que não consegue esquecer, ele vê a vida como algo em que se perde muito para se ganhar migalhas. Miles chegou a um ponto da existência em que até os pequenos prazeres que ela proporciona não conseguem mitigar o incômodo de um vácuo gigantesco. É esse homem que parte com o amigo Jack (Thomas Haden Church) numa viagem até o Vale de Santa Inez, conhecido por abrigar os melhores vinhedos da Califórnia.
Lá, eles vão se dedicar à degustação de algumas dezenas de vinhos das melhores cepas, jogar golfe e refletir sobre o bom da vida no meio das plantações de uva. Bem, pelo menos esses são os planos de Miles, enófilo obcecado, que nutre uma devoção exacerbada pelas uvas Pinot, e também um desprezo extremado pelas Merlot. Mas esses não são os planos de Jack, ator de seriados e comerciais de tevê, que tenta reter ao máximo os derradeiros fiapos de juventude fazendo sexo com o maior número possível de mulheres. Na viagem, que é também a sua despedida de solteiro, ele não anseia mais do que sexo rápido e intenso.
Miles e Jack são radicalmente diferentes entre si, e isso de certa forma os complementa. É o amigo que faz Miles permanecer de pé quando as crises de depressão o levam a uma inércia perigosa. E é também quem o protege dos arroubos de violência e da tendência à queda. Miles, por sua vez, serve de reserva moral para a ausência de escrúpulos e o excesso de imaturidade de Jack. Quando eles encontram e se relacionam com Maya (Virginia Madsen) e Stephanie (Sandra Oh), essa amizade se torna vital.
Baseado em livro de Rex Pickett, Sideways - Entre umas e outras se alicerça num roteiro consistente, a cargo de Jim Taylor e do próprio Payne. Há divagações arrebatadoras sobre vinhos e uvas. Numa delas, ao justificar para Maya a sua paixão pela Pinot - uva frágil, que só sobrevive em poucas e remotas regiões do planeta -, Miles está na verdade definindo a si mesmo. É uma seqüência belíssima, na qual a casca da timidez que envolve o personagem finalmente deixa entrever o ser humano valioso que se oculta por trás dela.
Giamatti oscila com a mesma desenvoltura entre o humor desbragado e o drama intimista. Sua atuação é um achado, assim como a de Church, com suas feições schwarzeneguianas e seu olhar bronco. Diretor de As confissões de Schmidt, Payne fez de Sideways uma comédia dramática que jamais cede ao óbvio. Miles e Jack são tipos que a princípio poderiam soar esquemáticos, mas ganham vigor e autenticidade ao longo da projeção. Ao final dela, temos à nossa frente seres humanos que poderiam ser nós mesmos. Ou nossos amigos, ou alguém que conhecemos em determinado momento da vida. E a aflição com o grau de insignificância e efemeridade da existência humana, que os atinge em maior (caso de Miles) ou menor (caso de Jack) medida, também nos acompanha ou acompanhará em algum momento do nosso percurso pela Terra.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia
O som e a fúria
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Bravatas, apatia e desolação
Tenho acompanhado com algum desinteresse a guerra deflagrada entre Lula e os principais meios de comunicação brasileiros. Li a declaração do presidente e alguns editoriais, além de ter passado um olho na matéria de capa da Veja. A princípio, todo esse estardalhaço soa como bravatas de parte a parte, embora seja inaceitável que o líder máximo do poder público brasileiro se exponha a papel tão degradante. Afinal, qualquer espécie de cerceamento à liberdade de expressão é deplorável, e vejo em alguns quadros do PT um certo pendor por um mundo perfeito, sem oposição ou mídia independente. Sabemos aonde isso pode levar, embora alguns ainda acreditem que o exemplo cubano é um caminho a ser seguido.
O mais curioso é que essa briga tenha acontecido num período em que a grande mídia me parece particularmente fragilizada. Jornais como Folha e Estadão, os dois melhores do país, optaram por reformas gráficas e editoriais infelizes, sobretudo o primeiro, o que limou em grande parte a possibilidade de análises mais acuradas, com a supressão do espaço para textos mais longos e a opção por chamadas apelativas e recursos gráficos gratuitos. Já O Globo, após longo período se consolidando como uma gloriosa terceira via na imprensa diária brasileira, tem decaído de forma lamentável. E o JB...
No campo das revistas, a situação é bem mais dramática. A Veja há muito deixou de ser uma publicação séria, contentando-se em atacar irresponsavelmente pelo flanco direito, entrincheirando-se em posições eticamente duvidosas. No centro, com uma postura bem menos combativa, está a Época, revista moderna e bem-feita, mas meio modorrenta, que não provoca entusiasmo. E no flanco esquerdo, como herdeiros tardios de Mao ou Fidel, estão a Carta Capital e a Caros Amigos, que lançaram por terra a imparcialidade para abraçar sem meias medidas a causa petista e o neoesquerdismo latino-americano. É uma tomada de posição, sem dúvida, mas – assim como a Veja no extremo oposto – uma posição dura de engolir.
O que se percebe, enfim, é uma imensa dificuldade do jornalismo brasileiro em lidar, de forma lúcida e isenta, com o momento histórico inédito em que vivemos. Um cenário no qual a apatia do eleitorado é diretamente proporcional ao clima de guerrilha declarada entre militância, imprensa e partidos políticos. Tanto a apatia de uns quanto o extremismo de outros se justificam pelo desencanto generalizado com os postulantes à Presidência, governos estaduais e poder legislativo. Um desencanto que se estende, feito uma hemorragia, até a própria noção de estado, cidadania e moral. O que se vê, portanto, é um território de aspecto lunar, desolado e sem brilho próprio, habitado por ideologias caducas e personagens nanicos. Um vasto cemitério de idéias, cheirando a limo e passado.
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
No ombro de um gigante
O fato é que, enquanto empobrecíamos irremediavelmente nos anos da ditadura, os Estados Unidos consolidavam as conquistas do welfare state iniciadas nos anos 50 e se beneficiavam do enriquecimento – lícito, embora moralmente questionável – dos anos de guerra, dos quais emergiram como potência máxima. De vez em quando protagonizam tolices, como as aventuras expansionistas e a propensão ao belicismo gratuito, traduzidas à perfeição no amargo legado da era Bush. Mas a verdade é que, ao contrário de nós, eles acertaram muito mais do que erraram.
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Entre aliens e predadores
Trabalhar como crítico de cinema me permitiu assistir a filmes que, em situações normais, jamais teria a “oportunidade” de conferir. Uma dessas pepitas, que lembro de ter visto numa cabine quase vazia numa manhã sonolenta, foi Alien vs Predador, um improvável embate entre dois dos mais sórdidos e repugnantes caçadores de seres humanos que Hollywood já produziu. Se me recordo bem, o filme tinha início com uma expedição de astronautas a um planeta distante, no qual as duas espécies alienígenas digladiavam entre si desde tempos imemoriais. Em determinado momento, a única sobrevivente humana da carnificina tinha que escolher entre se aliar ao Alien ou ao Predador: ela estava entre um e outro, acabou se aproximando do segundo e lutou ao seu lado para derrotar o primeiro (engraçado que, escrevendo agora este texto, lembrei de uma cena idêntica em King Kong, quando Naomi Watts toma partido do gorila após se ver entre ele e um tiranossauro – num claro exemplo da Lei de Lavoisier aplicada à sétima arte).
O fato é que nas poucas vezes em que assisto ao horário eleitoral gratuito ou nas muitas em que leio sobre os candidatos às eleições presidenciais e estaduais, me sinto como aquela moça do filme: tendo que escolher entre aliens e predadores. Num cenário inóspito como esse, que caminho seguir? Quem escolher? Nunca votei nulo para presidente, nem vou votar nesta eleição. Mas poucas vezes me vi com tão poucas opções. No cenário local, a situação é ainda mais grave. A quem recorrer para nos tirar deste atoleiro em que vivemos desde tempos imemoriais, se o que vemos é apenas abjeção, obtusidade e desprezo pela miséria alheia? Alien, Predador ou um terceiro vilão à sua escolha? Só o que sei é que – ao contrário da heroína do thriller trash que me vi obrigado a assistir naquela manhã, hoje remota – eu me manterei longe de todos eles, apertando a tecla branca da urna eletrônica e tentando a todo custo escapar ileso dessa carnificina sem sentido e sem futuro.
terça-feira, 7 de setembro de 2010
Caminho dos cavalos
Até dois anos atrás, eu morava num apartamento de localização singular. Ficava no alto de uma ladeira, em frente à mata fechada do Parque da Cidade. Se virasse à esquerda e descesse a ladeira, chegaria a uma das principais avenidas de Salvador. Se prosseguisse pela direita, entraria num dos bairros mais miseráveis e – por conseqüência – violentos da cidade: a Santa Cruz. Eu gostava de circular por esse bairro. Na época em que ainda fumava, ia comprar cigarros nos mercadinhos da avenida principal, que tem um comércio fértil e movimentado. E costumava pegar um atalho por uma ruela que margeava o parque (cercado por um muro de concreto) e também a parte mais pobre do bairro. Um lugar desolador, onde a coleta de lixo não chega e homens em idade ativa circulam sem ter o que fazer, em meio a crianças maltrapilhas, velhos, carcaças de carros, cavalos, galinhas e muitos cachorros. De tanto passar por lá, já conhecia os animais de vista e dava nomes a eles. Eu e minha filha chamávamos essa passagem de “caminho dos cavalos”, e ela adorava um cavalo malhado, marrom e branco, que sempre víamos pelo caminho.
Mas, como já disse, é um lugar violento. Um dia, quando passei por lá, vi que alguns adolescentes cercaram discretamente o carro, como se vigiassem quem estava dentro dele. Quando passei e olhei pelo retrovisor, um deles portava um revólver enorme, que não fazia questão de esconder. Eram umas 7 da manhã, e várias pessoas caminhavam pelo local, indo para o trabalho. O cara poderia ter me matado, se quisesse. A partir daí, me dei conta do que já sabia em teoria: como uma metástase, o tráfico de drogas lançou seus tentáculos por toda a região, recrutando um pequeno exército de adolescentes sem camisa e muito bem armados. Adolescentes que morrem feito moscas em confrontos com a polícia ou entre grupos rivais. Atualmente, nessa mesma rua, há tiroteios terríveis a qualquer hora, provocando invariavelmente vítimas entre a população impotente. Voltei apenas uma vez ao caminho dos cavalos, fugindo de um congestionamento monstruoso que parou Salvador num dia de tempestade. Nesse dia, não prestei atenção aos cavalos e cães, apenas me fixei nas pessoas que circulavam por ali, temendo levar um tiro. A inocência tinha acabado.
Quando penso num lugar como a Santa Cruz, percebo como o percurso que falta para Salvador (e por conseqüência a Bahia e o Brasil) se tornar uma cidade digna é praticamente intransponível. Naquelas ruelas sem calçamento e naqueles casebres sem reboco, a herança da escravidão ainda é vívida como uma chibatada. Os mais de cem anos que separam este 7 de setembro de 2010 da abolição da escravatura são apenas um sopro, um pequeno hiato no qual o país evoluiu muito menos do que o mínimo necessário, e no qual a leva de miseráveis só fez se multiplicar, reproduzindo em escala industrial a senzala de outros tempos. A miscigenação racial não representou uma transferência de renda racial, e hoje brancos e negros permanecem em compartimentos estanques, como passageiros da primeira classe e da classe econômica, que quase nunca se esbarram. No meio ficamos nós, encantados com as benesses da classe executiva, mas loucos por um upgrade. Resta saber aonde esse vôo vai nos levar. Provavelmente à Suíça, mas com uma escala no Haiti, para o pessoal da rabeira poder desembarcar.
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
O mundo sem palavras
terça-feira, 31 de agosto de 2010
A solidez do compensado
Hoje acordei com vontade de ouvir Adoniran Barbosa. De sorrir ao escutar suas tiradas hilárias e me comover com a ingenuidade dos seus personagens. Pus um CD enquanto me arrumava para o trabalho e fiquei ouvindo canções como Apaga o fogo, Mané, Uma Simples Margarida e Despejo na Favela. O centenário de Adoniran foi comemorado com pompa em São Paulo, onde ele se eternizou como o cronista dos humildes. Um reconhecimento merecido. Afinal, há muito mais do que bom humor e irreverência na sua obra. Com um pouco de atenção, é possível identificar bolsões de ternura e melancolia circundando aqueles pequenos sonhos desarrumados pelo cotidiano, aqueles dramas envolvendo barracos derrubados e romances irrealizados pela precariedade financeira de quem os protagoniza. Impossível, por exemplo, não se emocionar com a dramaticidade de Saudosa Maloca (pinçada de forma precisa por Elis Regina numa interpretação inesquecível): “Peguemos todas nossas coisa e fumos pro meio da rua apreciar a demolição. Que tristeza que nós sentia, cada tauba que caía doía no coração”. É um sentimento genuíno, sólido como um compensado vagabundo que protege do frio.
Adoniran é a prova inconteste de que a música brasileira conseguiu falar com as classes populares de igual para igual, e não de cima para baixo, com aquele incômodo olhar sociológico tão freqüente no cinema e na literatura do país. Nesse sentido, o autor de Trem das Onze é muito mais autêntico que um José Lins do Rego ou um Glauber Rocha, para ficar em duas figuras emblemáticas. Não era um intelectual, não discursava para as massas nem pretendia doutriná-las. Apenas reproduzia em forma de canção o que ouvia nas ruas do Bixiga, do Brás e do centro velho. Adoniran fazia parte daquelas vielas, cortiços e botecos, tão caros à memória de quem, como eu, morou naquela região. Alimentava-se daquilo. Seu fio de voz, marinado em cigarro e cachaça, testemunhou uma cidade em feroz transformação, mas ainda provinciana e amigável. Ele foi embora, essa cidade também. Resta sua obra, o que não é pouco.
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Efeitos colaterais
É bem provável que o desfecho seja diferente, mas o caso dos 33 trabalhadores soterrados a 700 metros da superfície, após o desabamento de uma mina no deserto do Chile, me fez lembrar de uma tragédia ainda mais grave: a dos marinheiros do Kursk. Para quem não recorda, o Kursk era um submarino nuclear russo que, no dia 12 de agosto de 2000, afundou no Mar de Barents, a 108 metros de profundidade. Sabe-se que 23 dos 118 marinheiros sobreviveram a uma explosão e esperaram por horas o resgate em meio ao breu e ao ar rarefeito. Mas o descaso das autoridades russas (comandadas por Vladimir Pútin, um homem de pouco apreço pela vida alheia) fez com que esse resgate nunca chegasse. Como deve ter ocorrido com os russos, acredito que em algum momento os chilenos devem ter imaginado que seriam enterrados vivos. Que aquele espaço exíguo onde se refugiaram acabaria se tornando um esquife coletivo, uma vala comum onde repousariam por toda a eternidade.
O fato é que tanto a tragédia russa quanto o acidente chileno são efeitos colaterais da busca humana pela superação dos limites físicos, empreendida nos pontos mais extremos do planeta, e até fora dele. A inquietação da espécie é o motor da civilização, e ela existe desde aquele momento primordial em que um hominídeo se armou de um osso para se proteger do inimigo. Vale lembrar que, mais de um século antes dos dois acontecimentos, Jules Verne já havia imaginado um veículo capaz de descer às profundezas da zona abissal (em 20 Mil Léguas Submarinas) e descrito uma peregrinação científica rumo ao umbigo do planeta (em Viagem ao Centro da Terra).
Protagonistas dos dois romances, Capitão Nemo e o Dr. Lidenbrock são fruto de uma era de utopias, o século 19, quando se imaginava que o surgimento e o domínio de novas tecnologias levaria a um mundo mais próspero e pacífico, com mais pessoas vivendo em condições dignas. O século 20 veio em seguida e tratou de sepultar essas utopias. Se por um lado nunca houve tantos avanços tecnológicos quanto nos últimos 100 anos, por outro nunca se matou tanto quanto no mesmo período, em muitos casos com o auxílio desses mesmos avanços. A culpa, em todo caso, não é da tecnologia, mas do uso que se faz dela. É a tecnologia que provavelmente vai retirar aqueles homens barbudos e extenuados lá de baixo, assim como foi a falta de disposição para usá-la que não deu aos marinheiros do Kursk a mesma oportunidade.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
O fim da política
Outro dia reproduzi aqui no blog a seguinte frase de Albert Camus: “A política e o destino da humanidade são moldados por homens sem ideais e sem grandeza”. Uma frase que, passados 50 anos da morte precoce do autor de O Estrangeiro, permanece vívida como um desarranjo nos intestinos da civilização. E nem estou me referindo aqui aos homens sem ideais e sem grandeza que movem o mundo e atravancam o nosso caminho: de George W. Bush a Vladimir Pútin, de Mahmoud Ahmadinejad a Kim Jong II. Falo da arraia-miúda (ou nem tanto) que habita os noticiários e o programa eleitoral gratuito cá por estas bandas ao sul do Suriname. Uma gente sem graça e sem vergonha que aparece para nós de dois em dois anos, com seus sorrisos postiços e seus discursos mal decorados.
A política, na prática, não me interessa. Já me interessou durante a juventude, sobretudo em 1989, naquela eleição histórica que terminou em catástrofe, com a vitória de um embuste sobre o suposto mensageiro da utopia. Agora não restam utopias, apenas o cinismo. Mesmo aquilo que em eleições passadas produzia um desafogo, hoje produz enfado. Impossível esboçar um sorriso, por exemplo, com as tiradas do cantor e humorista (?) Tiririca, que se lançou candidato a deputado federal em São Paulo com o slogan “pior que tá não fica”. Fica, sim. O fato de Tiririca ter chances reais de entrar para o Congresso Nacional é por si só uma constatação de que não dá para prosseguir com o velho chavão de que só nos resta “rir das nossas desgraças”.
Enquanto isso, a eleição presidencial caminha para ser decidida no primeiro turno, vencida por uma candidata de currículo nebuloso e sotaque mais nebuloso ainda. Uma verdadeira personificação da palavra incógnita. Faz um certo sentido, já que se busca a continuidade, e não a ruptura – que talvez só viesse mesmo com a eleição de Marina Silva. Mas não me animo a discorrer sobre o assunto. Tanto na esfera nacional quanto na local, são flagrantes a repetição exaustiva de fórmulas publicitárias e a impressão de que aquelas pessoas que lhe sorriem estão na verdade se lixando para você. O que acaba provocando um efeito recíproco: passamos a nos lixar para elas, para o destino do país e para o nosso próprio futuro como cidadãos que vivem numa nação miserável. É um alheamento arriscado, e a história ensina onde ele pode chegar.
(ilustração retirada do blog http://turmacaribepi.blogspot.com)
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Estrangeiro
Hoje baixei o disco A Revolta dos Dândis, do Engenheiros do Hawaii, grupo que adorava na adolescência e cujas canções não escutava atentamente havia muito tempo. Coloquei para tocar no carro, ouvi os versos, de uma ingenuidade comovente, e tentei me lançar de volta ao passado. Retroceder até o rapaz de 17 anos que chegou com o vinil de capa amarela nas mãos, pôs o disco no som da sala do apartamento dos pais, apagou a luz e se deixou arrebatar por frases como “nós não precisamos saber para onde vamos, nós só precisamos ir”. Algo se descortinava ali, embora não soubesse exatamente o quê. Talvez uma ânsia por novas paragens, uma inclinação pelo existencialismo empírico contido naquelas canções ou quem sabe uma valorosa sensação de cumplicidade.
Em 1987 o mundo parecia em suspensão. Vivíamos uma espécie de fim da história, para usar a expressão de Francis Fukuyama. Um limbo sem sobressaltos geopolíticos: a Guerra Fria já deixara o auge e se encaminhava silenciosamente para a derrocada, e por aqui os anos de chumbo já haviam dado lugar a um arremedo de democracia. Impossível cultivar utopias ou partir para o desbunde – nossos pais e irmãos mais velhos já tinham passado na frente e vivido tudo isso. Enquanto Humberto Gessinger falava em “americanos e soviéticos”, nós (eu pelo menos) ainda acreditávamos no socialismo como a única via. Não sabíamos, obviamente, que o Muro de Berlim implodiria dali a dois anos e o império vermelho, dali a quatro. Enfim, havia uma convulsão silenciosa em curso, e não imaginávamos o quanto nossas escolhas ideológicas, ainda tão incipientes, já eram anacrônicas.
Tento lembrar em vão o que pensei ali no sofá, no escuro, enquanto meus pais assistiam TV no quarto da televisão. Recordo apenas que acalentava o desejo de me tornar um cantor de rock, embora me faltassem voz para cantar, ouvido para tocar e cara de pau para me apresentar em público sem esses requisitos. Era um garoto que como outros amava Legião, Engenheiros e RPM, seduzido por versos como os de Infinita Highway, recheados de referências ao universo beat, que já então se prefigurava como uma válvula de escape literária em meio ao marasmo e ao dilacerante sentimento de inadequação. A dúvida era o preço da pureza? Não faço idéia. Ingênuo até os ossos dos dedos dos pés, eu apenas me embebia de dúvidas enquanto buscava certezas, e evidentemente não me sentia preparado para a vida adulta.
O mais estranho de tudo isso é perceber como essas reminiscências são vívidas, frescas e próximas, como uma tela ainda por terminar. Como se o rapaz de 17 fosse vizinho de porta do homem de 40 e se vissem todo dia, quando o primeiro fosse para a escola e o segundo, para o trabalho. Nada como um velho clichê – no caso, o “parece que foi ontem” – para denotar a sensação de proximidade. E nada como um verso de Gessinger para deixar evidente que o tempo, afinal, praticamente não alterou o que eu sou na essência: “um estrangeiro, passageiro de algum trem que não passa por aqui, que não passa de ilusão”.