segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
O som de um povo
Você já ouviu falar na rumba congolesa? Eu também não conhecia até me deparar, num desses sites de downloads, com um disco chamado The Very Best of Congolese Rumba - The Kinshasa-Abidjan Sessions. Pensei dois segundos e resolvi baixar. Decisão sábia, como comprovei ao ouvir as canções do disco. A rumba produzida no Congo (país pobre e imenso da região central da África que até os anos 50 era colônia belga) é habitualmente comparada a ritmos como o son cubano, a bossa nova brasileira e a morna de Cabo Verde. Há algo desses três gêneros no som elegante e refinado produzido pelos artistas africanos. Uma riqueza instrumental (guitarras, sopros, calimbas e uma percussão discreta), vocal e rítmica que surpreende pela complexidade e envolvimento emocional, lembrando o jazz latino. Mais do que isso, é uma prova inequívoca da opulência sonora do continente, do qual apenas alguns expoentes saem para ganhar o mundo, casos de Cesária Evora, Miriam Makeba e Youssou N'dour. Pena que aqui em Salvador herdamos apenas o lado mais pobre dessa cultura: o batuque. O pessoal do Kinshasa-Abidjan é formado por Antoine Moundanda, a Rumbanella Band e o veterano octagenário Wendo Kolosoy. Eles produzem uma melodia cálida e dançante, com uma leve pitada de melancolia (pois é impossível esquecer a realidade em redor). Toda vez que ouço o disco, fico me perguntando o que seria da música do século 20 sem a contribuição dos negros. Imagine o mundo sem o jazz, o blues, o soul, o samba e tudo mais que eles produziram, mesmo em condições extremamente adversas. Quem quiser pode tentar baixar através dos links: http://lix.in/-2eab5f , http://lix.in/-303200, http://lix.in/-227661 ou http://lix.in/-23fd02.
A inocuidade do sagrado
“Na cidade de El Fasher, capital de Darfur do Norte, rebeldes de uma das facções do Exército de Libertação do Sudão (SLA, na sigla em inglês) aproveitam a sombra para conversar sentados em cadeiras de plástico ou apoiados em seus Kalashnikov, com os quais dão sua contribuição às atrocidades da guerra. Cinco vezes ao dia, eles estendem seus tapetes e rezam voltados para Meca, enquanto o fuzil automático repousa ao lado.”
Revista Veja, 24/12/2008
O trecho acima, que faz parte da excelente reportagem de Diogo Schelp sobre o genocídio silencioso em Darfur, no Sudão, é sintomático: qual o real sentido das orações feitas cinco vezes ao dia por esses soldados assassinos? O que pretendem alcançar quando se dirigem a Alá nos intervalos das matanças? Perdão? Redenção? Agradecimento pela alta porcentagem de tiros certeiros?
Os rebeldes fanáticos de Darfur representam a face mais dolorosa de um mal que, passado tanto tempo do início da era cristã, permanece íntegro e (cada vez mais) sólido: a influência nociva das religiões – todas elas ou quase, em maior ou menor medida – sobre a maior parte da humanidade. Pior do que fazer o mal conscientemente é fazer o mal acreditando que ele é parte integrante de uma estratégia formulada por Alá ou qualquer outro nome que represente o ser supremo. Claro que nem todas as religiões chegam aos extremos do fundamentalismo islâmico, essa praga que voltou a assolar a civilização numa era em que, eliminado o nazismo, tinha-se a impressão de que estaríamos livres da idiotia coletiva rendendo loas a um líder insano. Não dá para comparar o que a leitura obtusa do Alcorão vem causando ao mundo (particularmente o Oriente Médio e países muçulmanos na África, caso do Sudão, mas também nos países ocidentais ricos) com as mazelas menores provocadas pelo catolicismo e outros credos. Mas é verdade que estes também vêm dando contribuição inestimável ao retrocesso que insiste em se sobrepor a cada avanço. Semana passada o Papa Bento 16 afirmou que o mundo precisa se livrar do homossexualismo. O mundo talvez precise se livrar da influência de pessoas como ele. É por declarações como essas – e também pela condenação ao uso de preservativos para controlar a aids e outras doenças sexualmente transmissíveis – que o catolicismo vem perdendo terreno para as seitas neopentecostais, mais tolerantes, embora no geral mais corruptas. E o que dizer das Testemunhas de Jeová, que proíbem a transfusão de sangue e o aborto de fetos anencéfalos, mesmo que isso custe a vida do fiel? É uma forma velada de pena de morte – e o pior: de um inocente. Mesmo pondo na balança os valores morais propagados pelas diversas religiões, qual o efeito prático delas para a humanidade? Dostoievski disse que se Deus não existe, tudo é permitido. Mas tudo não está sendo permitido, de uma forma ou de outra? O genocídio no Sudão é só mais um exemplo da morte sistemática de civis ao longo do século 20 e começo do 21.
A pergunta que fica de tudo isso é: se Deus existe, qual é mesmo o seu objetivo ou que função desempenha na ordem das coisas? Seria uma figura decorativa, uma rainha da Inglaterra na monarquia celestial? Acreditar em Deus é achar que somos algo mais do que a insignificância absoluta a que estamos relegados. Não somos. O grande papel das religiões – e nisso elas ainda são imbatíveis e necessárias – é tentar mitigar o malogro que é a vida humana. Toda a imensidão da Terra é um limite exíguo, um quase nada. Estamos todos condenados a não ultrapassar o limite de nossas vidas, o limite, não geográfico, se é que dá para entender. O limite biológico, as três letrinhas, F, I, M.
domingo, 28 de dezembro de 2008
Estorvos
Não existem santos na guerra santa entre judeus e palestinos, que em seu mais recente capítulo, nos últimos dias, acaba de tirar a vida de 200 civis. Sim, 200 civis. Está claro que a vida humana vale menos que um computador obsoleto neste início de século, mas cada nação é dona do seu próprio estorvo. Os mesmos judeus que hoje assassinam palestinos há 60 anos morriam nas mãos dos alemães, por sua vez dizimados em Dresden pelas tropas aliadas (num bombardeio descrito como “tempestade de fogo” por quem o presenciou). Os espanhóis que promoveram a extinção dos incas, maias, astecas e de si próprios (durante a Guerra Civil Espanhola) tornaram-se, na nova geopolítica da barbárie, vítimas de árabes insanos, que por sua vez sofreram aniquilamento sistemático dos norte-americanos, por sua vez atacados sem qualquer justificativa pelos mesmos árabes insanos. E por aí vai. A trajetória do homem na Terra é, basicamente, uma trajetória de extermínio, e todos os povos têm sua parcela de responsabilidade sobre o sangue derramado no decorrer dos milênios. Infelizmente, nem nossa geração nem as próximas vão assistir à estiagem desse sangue.
Eu quero viver de brisa
Decidi que não moraria mais em São Paulo numa tarde muito quente de Outono. Me sentia deprimido e oprimido por aquela fornalha sem brisa (no Nordeste faz calor também, mas lá tem brisa, já dizia o velho Bandeira) e saí de casa torcendo para encontrar água – não água para beber: água para contemplar. Então caminhei atônito, descendo a Brigadeiro e chegando até a Sé, depois o Anhangabaú e por fim a São João. É claro que fiz o caminho errado (devia ter descido a Brigadeiro no sentido inverso, onde acabaria encontrando o Parque do Ibirapuera), já que não me deparei com água nenhuma, muito menos a que queria encontrar: a água do mar. São Paulo me deu muitas coisas, a maioria delas boa, mas não podia me dar o oceano, que aprendi a amar desde criança e que ficou mais forte quando o reencontrei em Jericoacoara, Torres, Trindade, Guaibim, Cabo Frio, Ponta Negra, Florianópolis, Boipeba, Bombinhas e muitos outros cantos. É um amor que não cessa, principalmente quando passo alguns dias junto a ele, como os últimos, caminhando pela areia no final de tarde, recebendo o vento forte no rosto e contemplando a vastidão de água revolta e verde se encontrar com o céu e os coqueiros. São Paulo é quase inabitável, mas aprendi a gostar dela, principalmente porque vivi lá meus anos de formação, cursando uma boa faculdade e conhecendo pessoas com interesses e talentos comuns. Alguns de meus melhores amigos estão lá, e gosto de revê-los no nosso templo sagrado: o Puppy, boteco na Paulista onde se encontram ótimas cervejas, ótimos provolones à milanesa e ótimas conversas. Tinha mais: adorava ir até a banca no domingo de manhã e comprar o Estadão, pesado, leitura para um dia inteiro, e depois comer um pastel com caldo de cana no feirão da Ceagesp. Ou me deliciar no Consulado Mineiro (na pracinha Benedito Calixto), no Mester (uma picanha esplêndida, que nem sei se ainda existe), no Bargaço (o do Arouche, que já acabou) e na Speranza (que continua ótima e lotada). Adorava ir até a livraria Cultura do Conjunto Nacional, hoje ainda maior e mais moderna, e depois descer a Augusta para pegar um cineminha no Espaço Unibanco. Mais tarde beber num boteco do Bixiga (já nos estertores, mas não tão decadente quanto hoje). O roteiro que listei acima não tem nada de original, e faz parte de um período muito específico: os anos de 1994 a 1998. É, obviamente, um roteiro afetivo, e o olhar retrospectivo carrega em nostalgia e ameniza a solidão muitas vezes sufocante que senti lá, longe dos meus pais. Foi em São Paulo que alcancei a maturidade (é esse o termo?) literária, passando a conhecer novos autores que hoje me são fundamentais. E, claro, a maturidade propriamente dita, já que não é fácil viver sozinho por tanto tempo mesmo com a ajuda do uísque amigo e das farras de faculdade. Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas faltava o mar. E nada como a imagem de minha filha catando conchas na areia, sob o céu já quase escuro, para ter certeza de que tomei a decisão correta.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
Meu mundo é ontem
A sensação de viver no lugar e na época errados me acompanha desde a infância, se intensificou na adolescência e atingiu o ápice na idade adulta. Claro que existe um elo muito estreito com a Salvador dos últimos 38 anos, fundamentado na sólida raiz familiar e também nos prazeres proporcionados pelos derivados gastronômicos do dendê e pela visão de um mar que até hoje me inebria. Mas é impossível refrear o sentimento de inadequação, de que sou um fruto temporão de um passado não muito remoto e – principalmente – produto de um meio que não é o meu. O que concretamente me liga a uma cidade na qual as relações sociais são tecidas pela estupidez? Uma cidade na qual o conceito oficial de cultura é diretamente atrelado ao conceito de mercado? Na qual a mediocridade é a regra e a violência virou rotina? E, ainda mais grave: o que concretamente me liga a uma época em que os valores culturais, sociais e morais cultivados por mim ao longo de quase quatro décadas se tornaram obsoletos e sem sentido?
Vivemos numa era em que a tecnologia virou um fim, e não um meio. De que adianta ter uma televisão gigante de última geração e um home theater de 20 mil watts se eles são usados para assistir a um DVD pirata do Calcinha Preta ou de Ivete Sangalo? Eu me sinto um estrangeiro numa cidade onde as pessoas levam seus carros tunados para lojas de conveniência de postos de gasolina, abrem o porta-malas e ligam o som no volume máximo, invariavelmente ouvindo alguma raspa de tacho do cancioneiro baiano pós-axé music. Lá se embriagam, brigam e matam, já que hoje encontrar uma arma dentro de um carro é tão fácil quanto encontrar uma flanela. Pode parecer birra de um sujeito ranzinza de saco cheio do mundo, mas a verdade é que gostaria de morar numa cidade menos agressiva, em todos os sentidos. Mas onde encontraria essa cidade neste início de século 21? Meu mundo é outro, e ele já acabou.
Quando adolescente, achava que estaria em casa na São Francisco dos anos 60, atulhada de hippies, porraloucas e desvairados, onde floresceram a contracultura, os alucinógenos e o rock de Jimi Hendrix, Janis Joplin e The Doors. Mas não, definitivamente não. Seria, sim, a Paris dos anos 20, aquela Paris permissiva do pós-Primeira Guerra, onde floresceu a geração perdida de Hemingway, Fitzgerald, Joyce e Gertrude Stein e onde se bebia gim e vinho de primeira linha com parcos trocados. Ou a Nova York dos anos 40, com seus bares de jazz onde floresceu o bebop de Parker e Gillespie. Ou o Rio dos anos 50, com suas redações enfumaçadas e sua noite boêmia, onde floresceu a bossa nova de Jobim, Vinicius e João. Até mesmo a Salvador dos anos 60 seria um bom lugar para viver os anos de juventude, desde que você a abandonasse logo depois. Há um certo pedantismo nessas escolhas, reconheço, mas a verdade é que sempre fui um hedonista, e nesses lugares o prazer de viver seria desfrutado de maneira muito mais intensa. Essa nostalgia do que não vivi sempre vai me acompanhar, como uma nódoa que não sai da mente, por mais que a gente enxágüe.
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
– Siga o dinheiro!
– Siga o dinheiro!
O autor dessa frase, que entrou para o imaginário político norte-americano, morreu anteontem nos EUA. Mark Felt – cuja identidade só foi revelada em 2005 – entrou para a história com o codinome Garganta Profunda (homenagem ao clássico pornô, à época um sucesso nos cinemas), na lendária série de reportagens escritas pela dupla Carl Bernstein e Bob Woodward para o The Washington Post. Felt foi o pavio que detonou o escândalo de Watergate, culminando na renúncia de Richard Nixon em 1972. É uma história empolgante, e para trazê-la de volta à tona vale a pena visitar a locadora e assistir a Todos os homens do presidente, de Alan J. Pakula. Além de apreciar as atuações magistrais de Dustin Hoffman e Robert Redford, vivendo a dupla de jornalistas, o filme é ótimo para lembrar de um tempo em que a imprensa norte-americana conhecia o valor da independência e da credibilidade - muito diferente do ufanismo boboca que endossou o embarque dos EUA no barco à deriva que matou milhares de inocentes no Iraque por conta de uma mentira deslavada.
Nós e eles
É difícil descrever o que sinto pelos animais. Sobretudo aqueles que perambulam sozinhos nas calçadas e se deparam com a indiferença e a estupidez humanas. Por que tanta raiva? Vejo pessoas assustando e tentando chutar gatos e cachorros, e outras que não se preocupam em frear o carro quando um deles atravessa a rua. Cada resto de bicho no asfalto me causa um sofrimento íntimo que não consigo entender. De onde vem isso? Não faço idéia. Quando era criança, pensava que me tornaria um veterinário, embora gostasse mais dos animais selvagens que dos domésticos. Nunca tive bichos em casa, à exceção dos passarinhos engaiolados, o que hoje deploro. Quando voltei de São Paulo, há uns10 anos, fiz amizade com um gatinho vira-lata chamado Téo, que vivia lá em casa e fazia a maior festa quando eu chegava. Ele e sua família. Foi uma das criaturas mais complexas que conheci, sem dúvida mais complexa que a maioria das pessoas com quem sou obrigado a dividir a cidade. Acabei deixando Téo quando me mudei (ele ficava num condomínio com outros gatos e os vizinhos o alimentavam), mas depois soube que ele foi morto pelo pitbull de um paspalho que morava lá. Lembro bem que durante todo o tempo em que fiquei arrumando as coisas no carro para ir embora ele não tirou os olhos de mim. Me olhava como se implorasse para ir junto. Isso já tem muito tempo, mas ainda lembro com nitidez aquele olhar e me arrependo muito de não ter levado Téo comigo. No ano passado, comprei uma cachorrinha para minha filha, Lile, que eu chamava de Caçula. Tivemos que dá-la para que não acabasse com a casa. Mas foram 10 meses de uma convivência maravilhosa com um animal que emanava afeição sem pedir nada em troca. Não dava para ficar com a Caçulinha, mas sinto falta da agitação que ela provocava, da alegria com que me recebia quando eu chegava em casa. Só sosseguei quando visitei a nova dona e vi que ela estava bem. Hoje, eu e minha filha ficamos vendo os dois vira-latas que vivem no módulo policial em frente ao nosso prédio. Estão sempre brincando e recebem carinho e alimento dos policiais e das pessoas que moram ali em frente. É preciso tão pouco para que se sintam bem. Amar um animal é uma forma de sabedoria.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
Sobre Machados e Rosas
Numa entrevista publicada na última edição da revista Bravo!, Millôr Fernandes expressa uma opinião interessante, porque navega na contramão do consenso, coisa escassa num país onde encontrar alguém com opinião própria e fundamentada (não derivativa, portanto) é tão difícil quanto achar um chope bem tirado em Salvador. Millôr afirma que, se comparado a Proust (“é toda uma dimensão literária”), Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, Machado de Assis seria um autor menor: “Ele não me diz nada”.
Considerar o Bruxo do Cosme Velho o nosso melhor escritor virou um dogma blindado no Brasil, sobretudo agora que se comemora o centenário de sua morte. Qualquer crítica a esse preceito ricocheteia e volta como desprezo e incompreensão dos amantes do lugar-comum. Li seus três principais romances (Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba) e em nenhum deles encontrei a centelha do gênio, ou me deparei com aquela epifania reveladora de que estamos diante de algo sobre-humano. Machado é, sim, um cronista arguto, capaz de observações incisivas e originais sobre o seu meio e o seu tempo. Mas quase tudo que escreveu se tornou datado e me passa uma sensação de enfado. Ao contrário de Rosa, que criou sua mitologia própria e alcançou o eterno em Grande sertão: veredas, romance que, se fartamente consumido lá fora, faria dele um segundo García Márquez. Millôr dedica a ele uma observação impagável: “Guimarães Rosa eu li com certa dificuldade, mas insisti e vi que a dificuldade era minha, não dele”. A cena em que Riobaldo descobre no Diadorim morto e desnudo uma mulher, a mulher que não pôde amar por entender que era um homem, está entre os parágrafos mais pungentes já escritos no idioma português. Pretendo voltar a ele um dia.
“Eu ouvi o som de um trovão, e seu estrondo era um alerta
Ouvi o ronco de uma onda que poderia afogar o mundo inteiro
Ouvi cem tocadores com as mãos em brasa
Ouvi dez mil sussurrando e ninguém ouvindo
Ouvi uma pessoa morrer de fome, ouvi muitas pessoas rindo
Ouvi a canção de um poeta que morreu na sarjeta
Ouvi o som de um palhaço que chorava no beco
E é uma forte chuva que vai cair.”
Bob Dylan, A hard rain's a-gonna fall (1963)
Ouvi o ronco de uma onda que poderia afogar o mundo inteiro
Ouvi cem tocadores com as mãos em brasa
Ouvi dez mil sussurrando e ninguém ouvindo
Ouvi uma pessoa morrer de fome, ouvi muitas pessoas rindo
Ouvi a canção de um poeta que morreu na sarjeta
Ouvi o som de um palhaço que chorava no beco
E é uma forte chuva que vai cair.”
Bob Dylan, A hard rain's a-gonna fall (1963)
O declínio?
No Iraque, George W. Bush é alvo de sapatos voadores, dos quais desvia a cabeça entre incrédulo e assustado. Em Costa do Sauípe, a tribo heterogênea de caudilhos anacrônicos e líderes democráticos com alguma relevância se reúne para discordar de tudo, exceto fechar questão sobre um único quesito: os efeitos corrosivos da política externa dos Estados Unidos da América. O anti-americanismo na América Latina não é novidade. Mas não estaríamos assistindo ao tão esperado declínio do império americano? A potência até então inabalável não começa a decair, como no início, meio e fim do século passado ruíram os otomanos, britânicos e soviéticos? Difícil imaginar a derrocada, mesmo após a chegada de uma crise ainda não devidamente mensurada e controlada, fruto dos oito anos de desacertos promovidos por um dos presidentes mais incompetentes, estultos e belicistas da história do país. A verdade é que os EUA, neste início de século no qual civilização e barbárie se contrapõem o tempo todo (e você não sabe qual nação representa o quê), se mostram muito mais fragilizados que em outros tempos. O mundo mudou, e hoje o inimigo não tem fronteiras definidas como nos anos de Guerra Fria, quando a ameaça vinha das planícies geladas tingidas de vermelho que ligam o leste europeu ao extremo oriente. Não, o inimigo – maltrapilho e aparentemente frágil – pode estar escondido numa montanha pedregosa num arremedo de nação nos confins da Ásia. Ou – elegantemente vestido com ternos Armani – no seio da própria América, corroendo seu sistema financeiro com operações levianas que mais cedo ou mais tarde tinham que estourar em algum lugar. E nada melhor para representar essa nação ainda atônita com a fraqueza inesperada que o olhar parvo do homem mais poderoso do mundo ao receber as sapatadas do repórter iraquiano. Enquanto isso, os chineses crescem como erva daninha à base de uma brutal desigualdade social, manufaturando quase tudo que o mundo consome. Será o fim inexorável de um ciclo? Um império dando lugar a outro? Pode ser. Mas quem sabe um super-homem negro e sensato venha restituir a glória, mudando como um deus o curso dessa história. Lirismo e ingenuidade à parte, cabe a Barack Obama reverter esse processo, ou veremos por linhas tortas a profecia marxista – o comunismo fatalmente substituindo o capitalismo – se concretizar. Linhas tortas mesmo: de comunistas os chineses só têm a propensão ao autoritarismo.
terça-feira, 16 de dezembro de 2008
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
O chamado da estrada
Uma preciosidade literária está chegando ao Brasil. Estou me referindo ao novo (ou velho?) On the road, a bíblia estradeira de Jack Kerouac, que acaba de ser lançado pela L&PM do jeito que veio ao mundo (ou quase, já que o original é um rolo contínuo de 36 metros escrito em três semanas a base de mescalina e otras cositas). Sem os cortes e a copidescagem que mutilaram em parte o furor da sua escrita, On the road – O manuscrito original não é apenas um documento sagrado. É um convite para retornar (ou se debruçar pela primeira vez) ao universo do mais talentoso integrante da Geração Beat (movimento que convulsionou as letras e o comportamento juvenil da América nos anos 50) e um dos mais representativos da literatura norte-americana da segunda metade do século passado.
Como já disse em outro texto aqui no blog, Kerouac foi minha maior influência literária e comportamental na juventude, embora hoje grande parte do seu discurso não faça mais tanto sentido ou me cale fundo como antes. Mas sua importância ainda é avassaladora para mim. E também para milhares de pessoas nascidas nos últimos 50 anos. Publicado em 1957, On the road significou o grito primevo de uma nova geração literária, surgida em meio ao vazio do pós-guerra, e virou um sucesso imediato, alçando o tímido autor à condição de celebridade. Todos queriam ler ou imitar sua prosa espontânea, recheada de fluxos de consciência que se assemelhavam a fraseados do bebop, a intrincada subversão do idioma jazzístico protagonizada por Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Todos queriam viajar de carona pela vastidão do território americano como faziam Sal Paradise (alter ego de Kerouac) e Dean Moriarty (pseudônimo do genial vagabundo Neal Cassady).
Involuntariamente, Jack se tornou um modelo de comportamento a ser seguido por adolescentes rebeldes. Logo ele, que queria ser reconhecido como um grande romancista, da mesma linhagem de Wolfe e Melville, e que num trecho do seu diário implorava a Deus: "Atinja-me, e vou soar como um sino". É uma imagem muito distante da que a posteridade guardou dele: a do escritor impetuoso, que borrifou vida por todos os poros e lançou-se na estrada para sorver experiências únicas, legando ao mundo obras lendárias e impregnadas de reminiscências pessoais (merecem registro Big Sur, Os subterrâneos, Viajante solitário e Os vagabundos do Dharma). Bem, se a imagem não chega a ser equivocada, é de certa forma reducionista: Kerouac não foi um precursor do movimento hippie ou um entusiasta das drogas e do amor sem fronteiras, ao contrário de Allen Ginsberg e William Burroughs, os outros dois vértices do movimento beat, que se entrosaram bem com a alegoria flower-power. Ele foi na verdade um conservador, admirador da obra de Jack London e Walt Whitman, que se recolheu em casa para morrer lentamente, consumindo vinhos baratos e escrevendo poemas inspirados na tradição oriental. Sua ascendência literária é a da época da depressão dos anos 30, com seus vagabundos sem norte viajando pelo país em busca de empregos inexistentes.
Quem quiser conhecer melhor o velho Jack pode se aventurar para além do On the road (original ou editado). Tanto a alentada biografia escrita por Ann Charters, Kerouac (mais do que seus romances, foi o livro que mais me influenciou), quanto os Diários de Jack Kerouac são essenciais para se compreender por que o escritor não conseguiu deglutir a própria imagem de ícone rebelde, e acabou digerido por ela. Morto em 1969, vítima de hemorragia abdominal, aos 47 anos, ele jamais se sentiu à vontade na condição de artífice da geração beat. Sua obra era marcada por um otimismo essencialmente cristão em relação à humanidade. A maioria dos leitores que se debruçaram em massa nas páginas de On the road não percebeu que, com suas aventuras mundanas, Kerouac queria atingir o sagrado.
Os novos dilemas do velho Clint
Li que o New York Times já está apontando Clint Eastwood como potencial favorito ao Oscar 2009, não só pela dupla direção em A Troca e Gran Torino, mas também pelo trabalho como ator no último. As escolhas da Academia pouco me interessam, mas gosto de ver o velho Clint roubando a cena naquela cerimônia cafona e modorrenta a cada dois anos, quando seus pequenos diamantes ganham discretamente as telas e aos poucos arrebatam críticos e espectadores. É o melhor cineasta americano vivo, não tenho dúvida (ok, Scorsese e Coppola ainda estão sobre a Terra e isso rende uma boa discussão). Ao longo dos anos, ele vem dissecando suas obsessões e refletindo com extrema delicadeza sobre as perdas, dilemas morais e inquietações que movem o ser humano em situações-limite. Adoro Menina de ouro, As pontes de Madison, Os imperdoáveis, Cartas de Iwo-Jima e Bird. Mas o que mais me fascina em Eastwood é a sua metamorfose, do cara durão de Dirty Harry no sujeito sábio e sensível da maturidade. Vê-lo caminhando com o andar alquebrado e um sorriso charmoso e irônico, aos 78 anos, é como apreciar uma sequóia de mais de 100 metros com mais de mil anos. Ou seja: estamos diante de algo que desafia permanentemente a finitude.
Seguem abaixo críticas de Cartas de Iwo-Jima, A conquista da honra e menina de ouro:
O canto dos derrotados
Obra-prima anti-belicista, ‘Cartas de Iwo Jima’ desvela o humanismo de Clint Eastwood
Paulo Sales
Há uma ternura latente na forma como Clint Eastwood se embrenha nas inquietações silenciosas de vidas anônimas. É como se ele revolvesse a areia para reaver algum elo com o passado e poder recontá-lo, trazendo-o de volta do esquecimento. Assim como os exploradores japoneses que, no início e no final de Cartas de Iwo Jima, buscam vestígios de batalha nos túneis construídos 60 anos antes por seus antecessores, já nos estertores da Segunda Guerra Mundial. E acabam encontrando as reminiscências de dias terríveis, abrigadas em correspondências que nunca chegaram aos destinatários.
Clint realizou mais uma obra-prima, que guarda nítidas semelhanças com As pontes de Madison pela forma como um drama antigo vem à tona e se projeta de maneira imperiosa sobre o espectador. O amor secreto entre uma mulher casada e um fotógrafo impetuoso tem como paralelo o desejo desesperado de um jovem combatente de voltar para casa e conhecer sua filha recém-nascida. Ele é Saigo (Kazunari Ninomiya), personagem principal de Cartas de Iwo Jima, que dá prosseguimento à reconstituição de uma mesma tragédia narrada sob pontos de vista opostos, iniciada com A conquista da honra.
Como no primeiro filme, o cineasta volta a subverter os conceitos de bravura, sacrifício e, no outro extremo, covardia que estigmatizam o comportamento de soldados e comandantes no front. É uma subversão que remete a Os imperdoáveis, o poderoso anti-western com o qual foi alçado à condição de mestre maior da Hollywood contemporânea. Mas, se A conquista da honra refletia sobre a glória e a fama personificadas nos três combatentes norte-americanos alçados à condição de celebridades por terem hasteado a bandeira no alto do monte Suribachi, Cartas de Iwo Jima centra foco no anonimato dos derrotados. O Japão perdeu a batalha e logo depois a guerra, e os 20 mil soldados que morreram por lá tornaram-se heróis nacionais. Mas heróis de quê?
O verdadeiro herói, segundo Eastwood, é aquele capaz de tudo para permanecer vivo e voltar para a mulher e a filha que precisam dele, como Saigo tenta fazer todo o tempo. Entre família e pátria, o que deve ser priorizado: o individual ou o coletivo? Através desse questionamento, o cineasta discute os códigos de honra japoneses, sobretudo a prática do suicídio, uma abjeção tratada como ponto máximo da glória pela cultura nipônica. Cartas de Iwo Jima é mais subliminar do que A conquista da honra, e é isso que o torna superior. Ao invés de saltar diversas vezes no tempo e no espaço, como no longa anterior, Clint trabalha agora com uma narrativa linear. À exceção do início e do final e de alguns rápidos flash-backs (um tanto esquemáticos, é verdade), o filme centra foco nos preparativos para a batalha, comandados pelo tenente-coronel Tadamichi Kuribayashi (vivido por um Ken Watanabe em estado de graça).
Em seguida, é a vez da guerra propriamente dita, com a chegada dos norte-americanos à ilha do Pacífico, de extrema importância estratégica para EUA e Japão, que travaram uma batalha sangrenta entre 16 de fevereiro e 26 de março de 1945. São seqüências filmadas com apuro técnico invejável. A sensação de claustrofobia dentro dos túneis só é comparável ao desespero das corridas em campo aberto, atravessadas por saraivadas de balas. Inferiores em número de soldados e de armamentos, os japoneses se agarravam a uma hipotética superioridade étnica para crer na vitória. Sabiam, porém, que iriam morrer todos ali, nas passagens subterrâneas ou nas areias negras da ilha.
Além do timing preciso e da excelente reconstituição da batalha, Cartas de Iwo Jima tem como principais trunfos a concepção dos personagens e a direção de atores. Kuribayashi e Saigo são tipos absolutamente verossímeis em seu sofrimento, assim como o íntegro ex-campeão olímpico de hipismo Nishi (Tsuyoshi Ihara) e o tímido recruta Shimizu (Ryo Kase). Essencialmente antibelicista e humanista, o discurso de Eastwood sobrepõe o indivíduo ao coletivo (representado pela pátria), transformando estatísticas em vidas.
Por isso, são tão importantes as curtas cenas que mostram os exploradores encontrando as cartas perdidas. Voltando ao paralelo com As pontes de Madison, é possível identificar uma particularidade epistolar recorrente na obra do cineasta. Nos dois filmes - e também em Menina de ouro, conduzido pela narração em off de uma carta escrita pelo personagem de Morgan Freeman -, são correspondências antigas que trazem o passado de volta e permitem que um feixe de luz se projete sobre sentimentos há muito enterrados. No caso de Cartas de Iwo Jima, os sentimentos de 20 mil seres humanos que hoje são só poeira.
Receita para fazer um herói
Clint Eastwood mostra como a fronteira entre o bem e o mal é nebulosa em ‘A conquista da honra’
Paulo Sales
Existem guerras justas? Ao menos na Segunda Guerra Mundial, era possível vislumbrar uma polarização entre o bem (os aliados, comandados por Inglaterra, França, Rússia e EUA) e o mal (personificado nos nazistas alemães, nos fascistas italianos e nos camicases japoneses). Mas, em meio ao fogo cruzado de uma realidade que flerta permanentemente com o absurdo, até onde essa dualidade é legítima ou verdadeira? Até onde existem heróis e vilões, quando o que realmente importa é salvar a própria pele e voltar para casa o mais inteiro possível?
Não há heróis e vilões em A conquista da honra. Ou, pelo menos, não no sentido que nos acostumamos a encontrar em Hollywood. Clint Eastwood deixa claro que, mais do que uma demonstração de bravura, atirar no inimigo é um ato extremo de desespero. É você ou ele, e o medo acaba sendo o principal combustível da crueldade. O cineasta também subverte o conceito maniqueísta de guerra justa atrelado ao conflito ocorrido entre 1939 e 1945. Primeiro de dois longas-irmãos sobre um mesmo embate visto por óticas opostas (o outro é Cartas de Iwo Jima), A conquista da honra pertence a uma linhagem nobre de épicos de guerra com acento pacifista. Linhagem que tem como expoentes fundamentais Glória feita de sangue (Stanley Kubrick) e Além da linha vermelha (Terrence Malick). Na literatura, é herdeiro direto de Os nus e os mortos, de Norman Mailer.
Como eles, o longa de Eastwood parte de um episódio específico para refletir sobre a onipresença de mentiras e manipulações nas trincheiras e nos bastidores, onde se constroem as grandes batalhas e se forjam os heróis de brilho falso. No caso, a clássica foto tirada por Joe Rosenthal, da Associated Press, de soldados dos EUA erguendo a bandeira do país no alto do Monte Suribachi, ponto culminante da ilha de Iwo Jima.
Situada nos confins do Oceano Pacífico, a ilha era um local de extrema importância estratégica para norte-americanos e japoneses, que travaram uma batalha sangrenta já nos estertores da Segunda Guerra, entre 16 de fevereiro e 26 de março de 1945. A vitória norte-americana praticamente selou o destino do conflito a favor dos aliados.
Mas aquela foto, vendida mundo afora como uma demonstração de bravura dos fuzileiros ianques, foi assentada numa mentira deslavada. Além de ter sido tirada logo no primeiro dia da invasão (muito antes, portanto, da vitória norte-americana), a foto eternizou na verdade o içamento de uma segunda bandeira, apenas para marcar terreno e sem qualquer valor bélico. Mas nada disso importava naqueles dias em que a propaganda de guerra precisava de heróis capazes de convencer a população a apoiar financeiramente a participação dos EUA no conflito. Esses heróis foram personificados nos cinco fuzileiros e um enfermeiro da marinha que levantaram a bandeira.
Três deles morreram no front nos dias seguintes. Os outros, levados de volta à América, receberam as devidas condecorações. John “Doc” Bradley (Ryan Phillippe, de Crash - No limite), Ira Hayes (Adam Beach) e René Gagnon (Jesse Bradford) enfrentaram uma exaustiva excursão pelo país patrocinada pelo governo para arrecadar bônus de guerra junto a empresários e à sociedade norte-americana. Mas não conseguiram esquecer as desditas do campo de batalha. Se Gagnon ansiava pela fama e se sentia à vontade naquele circo, Bradley e Hayes choravam silenciosamente por seus mortos, companheiros perdidos de forma brutal, com pernas arrancadas e vísceras expostas (retratados aqui sem meio-termo).
Eastwood acompanha de perto essas três vidas, tentando entender suas motivações e mostrar como elas esbarraram na história e depois se desvencilharam dela, intencionalmente ou não. Bradley procurou esquecer seu passado e ocultá-lo da família. Gagnon levou uma vida medíocre após a extinção da fama e Hayes, descendente de índios (e personagem de uma belíssima canção do mestre Johnny Cash), se entregou ao alcoolismo - o filme deixa clara a irremediável propensão do norte-americano ao racismo contra os indígenas. A trama se desloca no tempo, alternando entre a batalha propriamente dita, os momentos que a antecederam e a excursão festiva dos personagens. Todos esses acontecimentos são rememorados nos dias atuais pelo filho de Bradley (vivido no filme por Tom McCarthy), autor, junto com o jornalista Ron Powers, do livro no qual o longa se baseia (recém-lançado no Brasil pela Ediouro).
Aos 76 anos, Eastwood mantém uma forma invejável para dirigir cenas de guerra complexas, incluindo seqüências em trincheiras e batalhas aéreas e navais, que ficam ainda mais realistas com o auxílio da fotografia lavada, transitando entre o sépia e o acinzentado. Composta pelo diretor, a trilha sonora remete à delicadeza de seus filmes anteriores, sobretudo Menina de ouro. Por outro lado, a narrativa às vezes patina, perde o timing e se torna enfadonha. Em outros momentos, é possível perceber um certo desleixo na condução dos atores e a ausência de um afinco maior na feitura do roteiro (assinado por Paul Haggis, diretor de Crash, e William Broyles Jr.).
Essas imperfeições não chegam a minar a força do discurso de Eastwood. Com a A conquista da honra, ele mostra como a distância entre bem e mal é fugidia e nebulosa, principalmente quando os envolvidos passam por sucessivas e dolorosas situações-limite. E, assim como em Os imperdoáveis e Sobre meninos e lobos, procura compreender a natureza da maldade, de onde ela vem e como e por que se manifesta. É uma forma muito peculiar de o antigo tough guy de filmes como Doido para brigar, louco para amar e da série Dirty Harry refletir sobre temas mais vastos e imperiosos, como perda, culpa e dilemas morais.
Um golpe na consciência
Clint Eastwood reflete sobre perda, culpa e dilemas morais no sublime ‘Menina de ouro’
Paulo Sales
Até a metade da narrativa, Menina de ouro resume-se a pouco mais que uma história clássica de superação através do esporte, contada com sensibilidade e pontuada por pequenas sutilezas. É quando vem o golpe, quase uma incisão no córtex cerebral do espectador. A partir daí, Clint Eastwood passa a investigar os sentimentos nobres ou perversos que se escondem nos desvãos da alma humana. E volta dessa escavação com uma obra que beira o sublime. Menina de ouro consolida Eastwood como um cineasta diferenciado, assolado por obsessões muito específicas.
Essas obsessões podiam ser vislumbradas em filmes como Os imperdoáveis, o belíssimo anti-western que concebeu em 1992 e com o qual arrebatou quatro Oscars, e no sombrio Sobre meninos e lobos (2003). Neles, como em Menina de ouro, o antigo durão reflete sobre a culpa e tenta descobrir como ela se processa nos que ficam. Há um constante sentimento de perda minando de seus personagens, que pode ser fruto de uma infância tempestuosa ou de uma lacuna moral.
O treinador e dono de academia de boxe Frankie Dunn (vivido pelo próprio Eastwood) é um homem amargurado pela solidão. Longe da filha que o despreza e assombrado pelo remorso – deixou, no passado, seu lutador Eddie Scrap (Morgan Freeman) lutar até perder a visão de um dos olhos -, ele exorciza seus fantasmas em visitas quase diárias à igreja e imergindo na poesia de Yeats (que lê no original, em gaélico). Sua rotina se resume a treinar potenciais vencedores e em seguida perdê-los para outros treinadores, que os transformam em campeões.
O único amigo de Frankie (ou algo próximo do que se poderia definir como amizade, já que os diálogos entre ambos são marcados pelo silêncio ou por monossílabos) é o próprio Scrap, que trabalha no ginásio como um misto de gerente, servente e vigia. É Scrap quem contextualiza a história, narrando em off a chegada à academia da impetuosa Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), vinda da escória, sem mais perspectivas que não a de ser uma lutadora de boxe. A obstinação de Maggie acaba demolindo a resistência de Frankie em treinar uma mulher. E o que de início era só uma relação profissional se transforma num amor inabalável entre um pai sem filha e uma filha sem pai.
Após alguns meses de treinamento, Maggie se torna uma vencedora. É capaz de nocautear logo no primeiro assalto todas as suas oponentes, até chegar à disputa pelo título mundial, numa luta complicada contra uma vencedora desleal. Essa luta representa a fratura dramática de que se falou no início. Maggie sofre uma queda que a deixa totalmente paralisada do pescoço para baixo, e Frankie se torna seu protetor. A trajetória de uma vencedora se transforma no drama de uma derrotada pelo destino.
Os momentos finais de Menina de ouro, quando Frankie se vê diante de um dilema moral doloroso, são tratados com delicadeza extrema pelo diretor. E, como ator, Eastwood é soberbo. Cada sulco em seu rosto envelhecido parece um corte que desvela um sofrimento profundo. Com uma atuação poderosa, Hilary Swank reveste sua Maggy de uma imensa carência afetiva, que contrabalança com o humor dos perseverantes. Freeman reedita com a maestria habitual a parceria com Eastwood, eternizada em Os imperdoáveis.
Com seus filmes sombrios e silenciosos, o velho Clint alcança o íntimo da natureza humana. A dor de Frankie e sua dissipação final denotam uma grandeza de que só os verdadeiros homens são capazes. E Eastwood está se tornando um deles.
* publicados originalmente no Correio da Bahia
domingo, 14 de dezembro de 2008
O mundo num vagão
Para quem gosta de livros que nos fazem viajar, vale a pena ler O grande bazar ferroviário, de Paul Theroux, um clássico do gênero escrito e publicado nos anos 70 e que só há poucos anos ganhou tradução no Brasil. Foi um dos melhores livros que li recentemente. Norte-americano fascinado por trens, Theroux parte da Inglaterra e vai até o Extremo Oriente enfrentando todo tipo de vagões e conhecendo a essência do ser humano em lugares como Turquia, Irã, Vietnã (quando ele esteve lá o país ainda estava destroçado pela guerra com os EUA e mesmo assim o achou lindo), Índia, Paquistão, Nepal e muitos outros países exóticos aos nossos olhos ocidentais. Humanista e aberto ao novo, Theroux descortina essas nações para nós com uma prosa vigorosa, atulhada de ironia, compaixão e humor. Com exceção da parte final, na qual a volta ao velho mundo, pelas estepes desoladas da Rússia no Expresso Transiberiano, é descrita com um torpor e um cansaço que só quem já passou muito tempo longe de casa sabe como podem ser dolorosos. Depois do Grande Bazar, aumentou meu desejo de um dia me aventurar pela Ásia remota. Mesmo sabendo que viajar, nos dias de hoje, se tornou excessivamente dispendioso, e que os países asiáticos andam cada vez mais insanos e propensos ao belicismo gratuito.
As estrelas são as lâmpadas da minha casa
Viajar sempre me foi uma necessidade, embora a essência do que seja viajar tenha mudado com o passar do tempo. A ânsia por desbravar o desconhecido e se embriagar de tudo que ele oferece foi substituída por uma curiosidade sensorial pela cultura alheia: sua culinária, seus cheiros, suas sonoridades, seu colorido ou a ausência dele. Já vai longe o tempo em que, influenciado por Kerouac, escrevia coisas como “As estrelas são as lâmpadas da minha casa” ou “A felicidade está contida no vento frio das auto-estradas”. Mas esse tempo, posso dizer, foi fundamental para a minha formação. Durante um período, adorei passar horas infindáveis dentro de ônibus sujos e lentos, vendo o sol indo embora na estrada, os velhos andando pela margem em meio ao nada, os casebres sem cor com crianças brincando ao longe.
Conheci parte do Rio Grande do Sul de carona com uma mulher que até hoje é minha melhor amiga. Travei conhecimento com caminhoneiros bem-humorados e bondosos, dotados de uma febre de vida difícil de encontrar no meu cotidiano. E tinha o vento gelado, que de certa forma me levava. Conheci pessoas interessantes, li muito enquanto as horas escorriam numa lentidão impressionante e, principalmente, me confrontei com meus medos, saindo invariavelmente mais forte e maduro dessas viagens. A solidão da estrada encerra uma melancolia que pode ser nociva, sobretudo se você estiver fragilizado emocionalmente ou fisicamente, como eu estava numa dessas peregrinações rumo ao sul. Completamente sozinho em cidades como Cabo Frio, Curitiba ou São Mateus em noites de inverno rigoroso (ao menos para mim), eu me vi falando comigo mesmo e retrucando o que acabara de dizer. Quando cheguei a Florianópolis o dinheiro estava quase acabando. Mesmo assim comprei um livro de Salinger e me vi só com umas migalhas para a viagem de ônibus até Porto Alegre. Senti fome no caminho e não tinha dinheiro para comer um pastel que, da vitrine, me parecia delicioso. Foi deprimente.
Mas o saldo disso tudo é positivo. Ainda hoje cultivo o desejo de conhecer pessoas e lugares distantes, embora saiba que dificilmente irei ao Tibet, ou ao Quênia, ou a alguma cidadezinha perdida em alguma parte do globo onde encontraria o sentido da existência. Ou não? Desistir antecipadamente dos nossos sonhos é a pior alternativa. Às vezes, na noite alta, sinto um vento frio batendo no rosto, mesmo com a janela fechada. É o velho desejo me chamando para dar uma volta.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
Arquivo - O mundo precioso de Monk & Trane
O mundo precioso de Monk & Trane
Gravação recém-descoberta de um show antológico dos dois deuses do jazz é lançada no Brasil
Paulo Sales
Quando se juntou ao grupo do pianista Thelonious Monk, em 1957, para uma série de concertos na célebre casa novaiorquina Five Spot, John Coltrane vivia um momento contraditório na carreira. Já era um nome consagrado na cena jazzística, embora ainda não tivesse concebido as obras que iriam eternizá-lo como o maior saxofonista da história do jazz, ao lado de Sonny Rollins e Charlie Parker. Mas, depois de fazer parte do célebre primeiro quinteto de Miles Davis, que gravou uma série de discos antológicos, incluindo Round about midnight, lançado meses antes, ele havia sido demitido pelo líder. Motivo: Coltrane estava se matando pelo consumo excessivo de álcool e heroína. Era um homem em frangalhos.
O instrumentista, porém, permanecia intacto, como se pode perceber no disco Thelonious Monk Quartet with John Coltrane at Carnegie Hall, preciosidade recém-descoberta lançada no Brasil pela Blue Note/EMI. O achado é fruto da dedicação obsessiva do arqueólogo musical Larry Appelbaum, que se debruçou sobre os arquivos do programa radiofônico Voice of America, amontoados numa sala da biblioteca do Congresso norte-americano, e encontrou os tapes do show realizado na grande casa de espetáculos em 29 de novembro de 1957.
Além do CD, existem poucos registros ao vivo de gravações de Monk e Trane, e nenhuma delas é tão completa nem tem uma qualidade tão límpida. São cerca de 50 minutos com a dupla - mais o baixista Ahmed Abdul-Malik e o baterista Shadow Wilson - destilando virtuosismo em interpretações viscerais de oito temas originais de Monk (Monk’s mood, Evidence, Crepuscule with Nellie, Nutty, Bye-ya, Blue Monk e duas versões de Epistrophy, uma delas incompleta), além do standard Sweet and lovely (Arnheim/Daniels/Tobias).
John Coltrane talvez tenha sido - junto com Charlie Rouse - o saxofonista que melhor compreendeu as mensagens subliminares contidas nas criações de Thelonious, caracterizadas basicamente por introduções repetitivas com variações melódicas quase imperceptíveis, seguidas de desconstruções harmônicas pontuadas por notas soltas, ideais para improvisações sem freios. O disco evidencia a impressionante capacidade do velho Trane de preencher os vácuos intencionalmente deixados por Monk, como se pode conferir em Evidence, na qual rende um tributo ao bebop voando em frases intrincadas sobre a consistente base de piano, baixo e bateria. E também em Nutty, quando sax e piano dialogam numa sucessão de solos assimétricos.
Monk e Trane também se dedicam a momentos meditativos, como nas intimistas Monk’s mood, faixa que abre o disco, e Crepuscule with Nellie. Em ambas, o pianista inicia o tema sem acompanhamento, para em seguida ganhar a companhia de um Coltrane dócil e romântico. Já em Bye-ya, outro tema clássico do “contorcionista da música” (uma das muitas alcunhas que Thelonious ganhou ao longo das décadas), o saxofonista desfere solos impiedosos, beneficiados pela cozinha vibrante de Malik e Wilson. E Sweet and lovely, standard recriado e explorado à exaustão por Dizzy Gillespie, tem sua melodia quase totalmente subvertida pelas improvisações de Coltrane.
O show no Carnegie Hall – na verdade um acontecimento jazzístico de grandes proporções, que teve ainda apresentações de Billie Holiday, Ray Charles e Chet Baker, entre outros – foi o ponto culminante da união entre John e Thelonious, já amaciados por meses tocando juntos no Five Spot. Coltrane amadureceu, passando a repensar a vida, a carreira e o efeito devastador provocado pelas drogas sobre ambas.
Numa entrevista para a revista Down Beat, em 1960, ele afirmou ter encontrado em Monk um verdadeiro pensador musical. “Aprendi com ele em vários aspectos: sensoriais, teóricos e técnicos. Eu expunha meus problemas musicais, minhas dúvidas, e ele sentava ao piano e dava respostas a esses problemas apenas tocando-os”. Já Thelonious conseguiu um parceiro capaz de reconhecer a sofisticação intelectual de sua obra e de dialogar com ela.
Thelonious Monk Quartet with John Coltrane at Carnegie Hall é o mais importante lançamento póstumo dos últimos anos, junto com outro tesouro: a descoberta dos registros de um show de Charlie Parker e Dizzy Gillespie, os pais do bebop, no Town Hall (Nova York), realizado em junho de 1945 e descoberto também em 2005. Monk (1917-1982) já era, em 1957, ao lado de Duke Ellington, o mais importante inventor de temas do jazz, embora ainda sofresse um certo preconceito pela forma percussiva e aparentemente desleixada com que se debruçava ao piano.
O introvertido e ligeiramente insano instrumentista, que iniciou a carreira tocando no quarteto de Coleman Hawkins, precisou esperar a própria morte – após longos e melancólicos anos de demência - para ser saudado de forma unânime. Antes de ir embora, porém, Monk deixou discos que ajudaram a sedimentar o hard bop, como Brilliant corners, Monk’s dream, At the Blackhawk e o mais reluzente de todos: Straight, no chaser, de 1967. Seus temas se tornaram standards, sobretudo Round midnight, executado por nomes como Miles Davis, Chet Baker, Bill Evans, Lee Konitz e os brasileiros Baden Powell e Helio Delmiro.
Coltrane ainda teria um bom caminho pela frente. Voltou a trabalhar com Miles Davis, tocando no célebre sexteto que legaria ao mundo Kind of blue, provavelmente o melhor disco da história do jazz, e se dedicou a trabalhos solo marcados por uma forte religiosidade e por sonoridades que, com o passar dos anos, se tornaram mais torturadas e experimentais, chegando ao limite da cacofonia em Ascension e no segundo Live at Villlage Vanguard, trabalhos mais próximos do free jazz e lançados pouco antes da sua morte, em 1967.
O melhor Coltrane é o anterior a esse período, mais precisamente entre os anos de 1957 e 1964, quando ele lançou grandes discos como Blue train, Giant steps, Lush life, Crescent, Stardust, Soultrane e My favorite things. Além, claro, de A love supreme, sua obra maior, uma suíte em quatro movimentos que ajudaria a mudar o curso do jazz. Caudaloso, viril e explosivo, o som de Coltrane é reflexo de uma personalidade atormentada, séria e introspectiva.
Por outro lado, poucos saxofonistas atingiram um grau tão alto de sentimento e suavidade quanto ele na interpretação de baladas – como se pode conferir no hoje clássico Ballads e em alguns temas do disco gravado junto com Duke Ellington. Pena que um câncer no fígado o tenha arrancado do mundo dos vivos tão cedo, com apenas 40 anos. Sua arte, como a de Thelonious, permanece. Afinal, os deuses ainda cultivam o saudável hábito da imortalidade.
* publicado originalmente no Correio da Bahia
O que restou do país cordial
“Não podemos aceitar o que aconteceu hoje. É um absurdo dizer que a pessoa estava no cumprimento do dever. Matar uma criança de 3 anos, quase matar minha mulher e meu outro filho e sair daqui impune, estar nas ruas de novo, isso não pode acontecer. Acredito até o final na Justiça. Essas pessoas vão ter que pagar pelo homicídio do meu filho. Isso não vai ficar assim. Ainda não acabou.”
Paulo Roberto, pai do menino João Roberto, fuzilado por policiais militares em julho, no Rio.
Quando até um homicídio comprovado - visto por dezenas de pessoas e praticado por uma força diretamente subordinada ao estado - não resulta em nada, é porque o Brasil virou definitivamente um arremedo de nação. Já fomos um país cordial, para o bem e para o mal. Hoje é a torpeza que toma conta, a ausência absoluta de premissas morais. Ou arrastar crianças pelo asfalto e queimar ônibus e carros com pessoas dentro não são flagrantes de uma realidade macabra? Estamos nos tornando cretinos amorais, indiferentes à escória em que estamos enfiados? A realidade, nesse Brasil quase insuportável que habitamos, supera qualquer filme de terror.
Paulo Roberto, pai do menino João Roberto, fuzilado por policiais militares em julho, no Rio.
Quando até um homicídio comprovado - visto por dezenas de pessoas e praticado por uma força diretamente subordinada ao estado - não resulta em nada, é porque o Brasil virou definitivamente um arremedo de nação. Já fomos um país cordial, para o bem e para o mal. Hoje é a torpeza que toma conta, a ausência absoluta de premissas morais. Ou arrastar crianças pelo asfalto e queimar ônibus e carros com pessoas dentro não são flagrantes de uma realidade macabra? Estamos nos tornando cretinos amorais, indiferentes à escória em que estamos enfiados? A realidade, nesse Brasil quase insuportável que habitamos, supera qualquer filme de terror.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
Um sopro de insignificância
Você não vai encontrar o melhor de Philip Roth nos ambiciosos e intelectualmente prolíficos painéis da América pós-Segunda Guerra, reunidos em obras portentosas como Pastoral americana e A marca humana (muito embora esses sejam livros inesquecíveis, com sua narrativa caudalosa e seu acento fatalista). O estigma do gênio também está longe da verborragia escandalosa do superestimado O complexo de Portnoy, livro que o projetou como um enfant terrible da literatura norte-americana de origem judaica. Roth é, acima de tudo, um exímio criador de pequenas novelas que, em cento e poucas páginas, abrigam o que a humanidade tem de mais singular: a capacidade de refletir sobre a própria efemeridade. São livros como Homem comum, Fantasma sai de cena e, em menor medida, Animal agonizante. Além da obra-prima Patrimônio, na qual narra os últimos dias do pai, vítima de uma dessas enfermidades que levam um longo e penoso tempo do diagnóstico à pá de cal. Roth não se embrenha apenas nos desvãos da extinção propriamente dita. Seu tema mais caro é o que vem antes dela. É a decadência física que a mente não acompanha, o sentir-se menino numa carapaça decrépita. A exaustão com as doenças em cascata, cada vez mais graves e agressivas, que minam o que resta de prazer na existência. Aos 75 anos, no auge da maturidade intelectual, Roth sabe perfeitamente que nosso tempo sobre este planeta inculto e belo é exíguo demais, por mais que desafiemos o fim, como o fazem Niemeyer, Mindlin e Levi-Strauss. É doloroso acompanhar a deterioração do protagonista sem nome de Homem comum, seu dilaceramento silencioso, sua inveja irracional do irmão perfeitamente saudável e, por fim (embora o fim seja o início da narrativa), a morte repentina, estúpida, quase um sopro de insignificância. Há muito desse desespero mudo nas outras novelas, e em personagens como o safado Sabbath, de O teatro de Sabbath, e o culto professor destronado Coleman Silk, de A marca humana. No último ano, li ao todo seis livros de Roth, e reli Patrimônio. Cada centavo investido neles voltou devidamente para mim, só que para o cérebro em vez do bolso. Posso dizer que minha tentativa de compreender o mundo (que ainda continua irrisória) ganhou um forte alento nas suas reflexões e devaneios. Chorei algumas vezes, sorri em outras. Mas é o sentimento de vazio que permanece. A constatação de que quando a gente começa a entender o mundo, mesmo que de forma vaga, já é hora de dar adeus a ele.
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
Arquivo - O fascínio da queda
O fascínio da queda
‘24 contos de Scott Fitzgerald’ é uma ótima introdução à voz maior dos “anos loucos”
Paulo Sales
Ninguém cantou a Era do Jazz, a deliciosa permissividade e o hedonismo irrefreável da juventude dos loucos anos 20 como Francis Scott Fitzgerald. Em seus romances e contos, o escritor norte-americano se dedicou compulsivamente a retratar um tempo no qual a prosperidade econômica e a paz mundial do entreguerras produziram um período deliciosamente frívolo, que acabou sucumbindo ao crack da bolsa de Nova York, em 1929, seguido da ascensão do nazifascismo. Restaram as páginas de Scott, testemunhos desnudos e sinceros de uma geração perdida.
Lançado pela Companhia das Letras com impecável tradução de Ruy Castro, 24 contos de F. Scott Fitzgerald é uma ótima iniciação à obra do criador de O grande Gatsby. Trata-se de uma reunião de textos publicados originalmente em revistas prestigiadas como Esquire e Saturday Evening Post. Eles abarcam um longo período que vai de 1920, ano da publicação de Este lado do paraíso (seu livro de estréia e maior sucesso da carreira), até 1940, ano da morte do escritor, aos 44 anos, vítima de ataque cardíaco em decorrência do alcoolismo (ele amava o gim mais do que qualquer outra substância em estado líquido disponível no planeta).
Foram os contos que sustentaram o escritor e sua vida desregrada quando seus romances começaram a encalhar nas livrarias e o trabalho como roteirista em Hollywood fracassou. Fitzgerald dedica um olhar entre afetuoso e mordaz aos ricos e bem-nascidos. Aquela gente que estudou em Yale ou Harvard e pertence a famílias com mais de duas décadas de tradição, bons modos e alguns milhões de dólares na conta bancária. O afeto faz sentido: seus personagens são invariavelmente jovens que têm o mundo solidamente instalado sob os pés e mesmo assim desabam em desilusões irremediáveis.
Não há finais felizes nos contos de Fitzgerald. Do mesmo modo que o próprio criador na vida real, o destino de suas criaturas é sempre a queda. Os contos são longos, caudalosos e atulhados de desencanto, lirismo e precisão estilística. Há obras-primas inquestionáveis, como O menino rico (o mais belo entre todos), “A coisa sensata”, O amor à noite e A escada de Jacob. Eles são o veículo ideal para Fitzgerald destilar frases definitivas. Aqui vão duas, para deleite do leitor: “Aos 18 anos, nossas convicções são colinas de onde contemplamos o horizonte; aos 45, são cavernas em que nos escondemos”. “Há todas as espécies de amor neste mundo, exceto o mesmo amor duas vezes”.
É por aforismos como esses que Fitzgerald permanece aceso em nossas mentes, passados mais de 60 anos da sua morte. E eles se sucedem ao longo das narrativas, ambientadas em locais como Nova York, Antibes, Paris e outros locais que também foram palco das aventuras do autor e de sua mulher, a insana Zelda Sayre. Se alguns contos estão longe de ser irretocáveis – caso, principalmente, de O diamante do tamanho do Ritz, que tem um pé no realismo fantástico – o conjunto da obra revela um autor seguro do próprio talento e com pleno domínio da narrativa curta.
Os 24 contos de F. Scott Fitzgerald são um aperitivo para o leitor se encontrar posteriormente com a essência da sua obra. É importante passar pela vida levando na bagagem o fascínio de livros como Suave é a noite e Belos e malditos. Eles ajudam a compreender algumas nuances da humanidade que só os grandes artistas são capazes de perceber. Junto com Ernest Hemingway, William Faulkner e Gertrude Stein, o simpático beberrão Scott ajudou a transformar a literatura norte-americana na mais poderosa do século XX. Pena que o declínio o tenha levado tão cedo.
* publicado originalmente no Correio da Bahia
segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
A bela da tarde
Chove sobre a cidade. Minha filha brinca se escondendo sob caixas de papelão e nós dois ouvimos – com níveis distintos de atenção – um Baden Powell solitário dedilhar canções eternas. Adoro dias de chuva. Adoro minha filha. Adoro ouvir Baden. Às vezes é preciso muito pouco para roçar a felicidade, mesmo que incompleta. Daqui a alguns anos o ser humano que mais amo, a quem contemplo neste instante, vai se aventurar no labirinto da adolescência, e sei que com ela virão frustrações, cobranças e doses maciças de insegurança, mas também as descobertas essenciais da idade adulta. Como eu mesmo provei: o sentimento de inadequação, o amor pelas mulheres e livros, o desespero com a própria finitude, o olhar sem medo para o futuro. Curioso: à exceção do olhar sem medo, tudo permanece. Ainda há muito do garoto de 16 no homem de 38. Continua chovendo. Vejo as perninhas torneadas de minha pequena saindo da profusão de caixas e me deixo levar pela beleza avassaladora do Rio das Valsas. O mar está tranqüilo. A dor do mundo inteiro é não saber que o mar está tranqüilo, e podemos navegá-lo.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
Quando a gente se chama saudade
Outro dia li uma matéria que falava dos 40 anos da morte de um dramaturgo – ou foi de um escritor? - e fiquei matutando: daqui a 40 anos, quem se lembrará de meu pai? Se estiver vivo, terei mais de 78 anos. Minha filha, hoje com 8, terá na memória apenas um borrão do avô que gostava tanto dela, se é que esse borrão permanecerá pelas próximas décadas. Então só eu vou lembrar devidamente do homem com quem conversava entusiasmado sobre os gols de Romário, vibrava com o Mengão, bebia vinho, ouvia música clássica e comia fatias de copa maturada. Aquele homem ao lado de quem adorava ficar em silêncio, de preferência em frente a uma paisagem bonita. Ele permanece aqui, como se não tivesse sido aniquilado antes da hora por um câncer no cérebro. Penso nele todos os dias. Vou pensar todos os dias. Até a hora em que eu parar de pensar, e alguém começar a pensar em mim.
Arquivo - Uma literatura de silêncio e sombras
Uma literatura de silêncio e sombras
Genialidade de Juan Rulfo pode ser conferida em edição caprichada de seus dois únicos livros
Paulo Sales
É certo que uma lista dos grandes autores latino-americanos de todos os tempos não poderia deixar de fora nomes como o argentino Julio Cortázar, o paraguaio Augusto Roa Bastos, os mexicanos Carlos Fuentes e Octavio Paz, o uruguaio Juan Carlos Onetti e, obviamente, o colombiano Gabriel García Márquez. E é certo, também, que se fosse possível encomendar uma lista semelhante a cada um deles, pelo menos um nome estaria presente em todas as relações: Juan Rulfo.
Sim, Juan Rulfo, um mexicano de obra escassa, que durante toda a vida (1917-1986) escreveu apenas um volume de contos, Chão em chamas, de 1953, e um pequeno romance, Pedro Páramo, de 1955 (houve ainda um terceiro trabalho, El gallo de oro, com textos para cinema, mas o próprio autor não o considerava parte de sua obra literária). Parece pouco, mas as cerca de 370 páginas que constituem a obra completa do escritor serviram de alicerce para a construção de praticamente toda a literatura latina em língua espanhola do século XX, daí a paixão confessa de todos os grandes autores citados acima.
E é essa obra - tão pequena, porém tão sólida, bela e nebulosa - que a Record recolocou no mercado, com tradução e prefácio a cargo de Eric Nepomuceno, especialista e admirador de Juan Rulfo. Pedro Páramo e Chão em chamas merece toda a veneração que o rodeia. É uma obra fechada, que dialoga apenas com si mesma, sem influências ou heranças. Rulfo construiu um universo que não tem paralelo em qualquer outra literatura.
Comala, a cidade fictícia onde ambienta seus personagens, já foi comparada à Macondo de García Márquez, e em ambos o realismo fantástico alcança os vôos mais plenos das letras latinas. Mas param por aí as semelhanças. Márquez é caudaloso, Rulfo é adepto do talho, da narrativa concisa e sem arestas.
O próprio autor de Cem anos de solidão seria o primeiro a evitar comparações, até porque coloca o mexicano em um patamar mais alto, o que pode ser comprovado no seguinte depoimento: “A leitura a fundo da obra de Juan Rulfo me deu, enfim, o caminho que buscava para continuar meus livros. Não consegui dormir enquanto não terminei a segunda leitura; nunca, desde a noite tremenda em que li A metamorfose, de Franz Kafka, havia sofrido uma comoção semelhante”.
Quem, como Márquez, já teve o prazer de ler Pedro Páramo, sabe bem do que ele está falando. Imergir nas páginas do livro é trafegar por um universo sem fronteiras de realidade, onde vivos e mortos convivem com naturalidade em tempos distintos, sem delimitações precisas. É como se um nevoeiro se colocasse entre o leitor e as frases, reduzindo a nitidez do cenário imaginário que se forma em sua mente. Existem, basicamente, duas tramas distintas no romance, que tem como pano de fundo um painel do miserável e atrasado México rural.
Na primeira, o jovem Juan Preciado vai até Comala procurar o pai, Pedro Páramo, que nunca conheceu, para atender ao último pedido da mãe moribunda. Na outra, narra-se a juventude do próprio Páramo, arrogante e assassino, espalhando sua brutalidade por uma Comala em tudo diferente da cidade fantasma habitada por entes fugidios encontrada por Preciado. E há ainda Susanna San Juan, Doloritas, Damiana e muitas outras mulheres contaminadas pela chaga do homem que dá título ao livro e povoa como um espectro as divagações dos demais personagens.
Pedro Páramo é um romance feito de sombras, no qual Rulfo nos brinda com a mais sedutora característica do realismo fantástico, que é tratar o absurdo com indiferente naturalidade. Há uma busca perene dos personagens por suas próprias histórias, por seus passados que permanecem na areia e nas ruínas de Comala. No aspecto formal, o livro é sublime. A despretensão das frases esconde uma busca intermitente pela palavra ideal, pela história exata, sem redundância.
Em depoimento a Nepomuceno, Rulfo descreveu dessa forma o seu processo criativo: “No começo, você deve escrever levado pelo vento, até sentir que está voando. A partir daí, o ritmo e a atmosfera se desenham sozinhos. É só seguir o vôo. Quando você achar que chegou aonde queria chegar é que começa o verdadeiro trabalho: cortar, cortar muito”. Ele também costumava dizer que em literatura “pode-se mentir, mas nunca falsificar”.
Os contos de Chão em chamas complementam o universo concebido em Pedro Páramo, embora acrescentem uma conotação social que no romance é apenas esboçada. São petardos construídos com rigor extremo, como A noite em que deixaram ele sozinho, E nos deram a terra e Luvina, todos eles belos e agrestes, com um sabor acre de deserto. Falam de gente sem norte, abarrotados de miséria, embrutecidos pelo calor.
Depois de Chão em chamas e Pedro Páramo, Juan Rulfo dedicou-se com afinco a cultivar o silêncio. O que se julgava na época o prenúncio de uma obra poderosa, que ficaria para sempre cravada na literatura do século XX, acabou se convertendo na totalidade dessa obra. E nem por isso deixou de ficar cravada no patamar mais alto das letras mundiais. Rulfo é, hoje, um dos autores mais estudados do mundo. São centenas de teses e estudos críticos que se dedicam anualmente a dissecar sua genialidade.
Assim como Ernesto Sabato e J.D. Salinger, que puseram em vida um ponto final à própria obra (pelo menos até agora), esse mexicano diminuto e tímido também silenciou definitivamente. Em depoimento a Eric Nepomuceno, ele jamais conseguiu explicar a abrupta interrupção da carreira literária. Falava e falava, mudava de assunto, mas sempre voltava à mesma frase enigmática, que oculta mais do que esclarece: “Eu tinha o vôo, mas cortaram minhas asas. Perdi”.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia
O princípio do mundo
Você pode passar pela infância, pela adolescência e chegar à idade adulta ouvindo as canções praieiras de Dorival Caymmi sem nunca se dar conta do que elas encerram. Descobrir Caymmi é diferente de ouvir Caymmi. É como se deparar com algo que parece existir desde o princípio do mundo. É se confrontar com o medo primordial diante de uma coisa muito maior do que nós. No caso de Caymmi, essa coisa é o mar. Trágico, capaz de oprimir e seduzir na mesma medida quem se alimenta dele.
Não existe algo mais terno e doloroso do que se deixar levar por aquele som gutural, saído do centro da terra, entoando "o bem do mar é o mar é o mar que carrega com a gente pra gente pescar", acompanhado por cordas graves que disparam notas econômicas maturadas por séculos de salitre e ócio e assobios que acalmam e assombram. Caymmi é eterno porque não existe nem antes nem depois dele. Sua música é uma ilha sem contato com o continente superpovoado da música popular brasileira. Uma ilha selvagem, mas que merece ser desbravada.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
Herói?
A vida dos outros (Florian Henckel von Donnersmarck, Alemanha, 2007) virou um cult nas locadoras. Sempre que procurava, estava locado. Semana passada consegui a minha cópia. Parecia a princípio um filme político, mas sua essência está nas relações humanas. Ou melhor: na capacidade que certos seres humanos possuem de escapar da própria mediocridade para atingir a grandeza. O soturno e solitário espião Wiesler, do serviço secreto na Alemanha comunista pré-Muro de Berlim, vivido com delicadeza por Ulrich Muhe, poderia terminar como começou: abjeto, intelectualmente tosco e com algumas posses. Terminou quase miserável justamente por ter ascendido como homem, suprimindo o medo e ajudando de forma decisiva um intelectual charmoso e só aparentemente colaboracionista a corroer as entranhas do regime. Enquanto espiona seu alvo, o personagem começa a vislumbrar algo além dos aparelhos de escuta, do ideário comunista e do muro que cinge sua cidade ao meio. Descobre-se no emaranhado de um sistema ineficaz, injusto e corrupto até a medula. (é curioso perceber como o comunismo acabou se tornando tão semelhante ao fascismo que ajudou a derrubar décadas antes). O final do filme é de nos deixar com o coração espremido pelo desassossego. O que Wiesler ganhou com seus atos, se terminou anônimo, na rabeira da pirâmide social? Numa época em que o arrivismo e a falência moral dão as cartas, seus atos podem soar ingênuos, marcados por um heroísmo inócuo, datado e sem sentido. Não interessa se chegamos até aqui, mal ou bem, com um certo grau de bem estar e liberdade individual, por causa de homens como ele.
Arquivo - Anatomia de uma obra-prima
Anatomia de uma obra-prima
Livro reconstitui com maestria o ímpeto criativo que gerou o genial ‘Kind of blue’, de Miles Davis
Paulo Sales
A analogia é do pianista Bill Evans: “Existe uma arte visual japonesa na qual o artista é obrigado a ser espontâneo. Com um pincel especial e tinta preta, ele deve pintar sobre um fino pergaminho esticado, de forma que uma pincelada não natural ou interrompida virá a destruir a linha ou romper o pergaminho. Tais artistas devem praticar um tipo especial de disciplina, que permite que a idéia se expresse na comunicação com as mãos de modo tão direto que o pensamento não interfira. Essa mesma convicção impulsionou a evolução das disciplinas extremamente severas e únicas do jazzista ou do músico improvisador”.
As reflexões acima fazem parte do texto Improvisação no jazz, escrito sob encomenda para a contracapa do disco Kind of blue, e são fundamentais para se compreender a essência do álbum, lançado por Miles Davis em 1959 e alçado nos anos seguintes à condição de obra-prima do gênero, provavelmente a maior delas. Evans sabia do que estava falando. Ele foi um dos integrantes do antológico sexteto (acrescido de outro pianista, Wynton Kelly, presente em uma faixa) que deu forma ao disco, complementado pelo próprio Miles (trumpete), John Coltrane (sax tenor), Julian “Cannonball” Adderley (sax alto), Paul Chambers (baixo) e Jimmy Cobb (bateria, único remanescente vivo do grupo).
O trabalho desses músicos magistrais, liderados por um artista em estado de plenitude, é dissecado no livro Kind of blue – A história da obra-prima de Miles Davis, do jornalista e crítico de jazz norte-americano Ashley Kahn, recém-lançado no Brasil pela editora Barracuda. É um item indispensável na biblioteca de qualquer aficcionado por jazz e pelo mais radical, genial e controvertido de seus expoentes. Basta lembrar que num período de 20 anos – 1949 a 1969 – Miles levou o gênero a caminhos insuspeitados, criando sublevações de longo poder de alcance. Coadjuvante na era do bebop, ele estabeleceu as bases do cool (The birth of the cool, 1949) e do fusion (Bitches brew, 1969), além de ter sido peça fundamental na difusão do hard bop.
Mas foi com o jazz modal de Kind of blue que Miles atingiu o cume, e isso num idioma musical no qual não faltam pedras fundamentais: tanto clássicos como A love supreme (John Coltrane), Night train (Oscar Peterson), Straight, no chaser (Thelonious Monk) e Study in Brown (Clifford Brown), quanto trabalhos que, por seu radicalismo e inventividade, abriram novas fronteiras para a expansão do gênero, como The shape of jazz to come (Ornette Coleman), Pithecanthropus Erectus (Charles Mingus) e Time out (Dave Brubeck).
Nada, porém, que supere a lendária seqüência de temas iniciada com So what e complementada com Freddie Freeloader, Blue in Green, All blues e Flamenco sketches (único com dois takes, incluídos nos lançamentos posteriores em CD). Impossível não atingir o delírio silencioso com o aquele trumpete com surdina, os solos de sax introspectivos, o piano minimalista, a seção rítmica suave e participativa, as frases saídas direto de algum recanto escondido da alma.
Kahn se debruça detalhadamente sobre os bastidores da histórica gravação, reconstituída em detalhes, já que ele teve acesso à fita master, guardada a sete chaves na Columbia, na qual é possível ouvir diálogos e takes interrompidos. Mas, até chegar lá, recupera a carreira de Miles desde os primeiros tempos, mostrando como sua curiosidade musical e sua personalidade introspectiva ajudaram a moldar uma obra em permanente estado de desassossego. Isso é fundamental para o leitor/ouvinte acompanhar o amadurecimento do artista, suas limitações técnicas (ele nunca conseguiu tocar com a velocidade de um Dizzy Gillespie, daí seus fraseados longos, lentos e atulhados de lirismo) e sua capacidade de descobrir, reunir e tirar o máximo de músicos brilhantes. Mais do que apenas liderar um grupo, Miles era capaz de criar com ele sonoridades até então nunca desbravadas.
Fartamente ilustrado (inclusive com fotos das sessões de gravação do disco), Kind of blue revela ainda informações importantes, como a influência de Ahmad Jamal (adepto de um estilo minimalista ao piano) sobre o jovem Miles. Ou que o “Colosso do Saxofone” Sonny Rollins era a primeira opção do trumpetista para ocupar a vaga que acabou ficando com Coltrane no primeiro grande quinteto. Hoje, passado tanto tempo, é impossível imaginar outro sideman capaz de dialogar com o mestre com a mesma desenvoltura. O laconismo e a economia de notas de Miles tinha seu contraponto perfeito no virtuosismo e na profusão de refrões desferida aos borbotões pelo velho e bom Trane.
E ainda tinha a exuberância efusiva de Cannonball. A expansividade dos saxofonistas motivou um desabafo hilário de Miles, reproduzido por Kahn. Voltando de uma apresentação, ele se encontrou com o arranjador Gil Evans, que perguntou como foram os shows: “Bem, Coltrane tocou 50 chorus. Cannonball tocou 46 e eu toquei dois”. Essa prolixidade foi de certa forma podada em Kind of blue. Talvez porque Miles estivesse experimentando uma nova forma de se expressar musicalmente. Despojado das amarras dos 32 ou 12 compassos que caracterizava a estrutura harmônica até então praticada pelos jazzistas, o jazz modal permitia ao solista transformar o improviso na própria melodia da música.
Ou seja, criava-se na hora, seguindo à risca a espontaneidade da arte japonesa a que Bill Evans se referiu em seu texto. De volta ao conjunto em 1958, após uma temporada com Thelonious Monk, Coltrane definiu assim o som que Davis começava a explorar: “Encontrei Miles em outro estágio do seu desenvolvimento musical. Houve um tempo em que ele se dedicava às estruturas de múltiplos acordes. Ele se interessava pelos acordes por seu valor intrínseco. Mas agora parecia seguir o caminho inverso, usando cada vez menos alteração de acordes na música. Ele usava temas com linhas melódicas de livre fluência e uma direção tonal. Isso permitia ao solista escolher entre tocar seguindo o encadeamento de acordes (verticalmente) ou a melodia (horizontalmente)”.
Autor de livros importantes, como A love supreme: the story of John Coltrane’s signature album e de The house that Trane built, Ashley Kahn possui a louvável capacidade de transformar todos esses termos técnicos em linguagem facilmente digerível pelo leitor. O único senão do seu livro talvez seja o tom um tanto oficialesco ao falar da Columbia, gravadora a que Miles esteve ligado pela maior parte da vida profissional. Kahn não deixa, por exemplo, de abordar um tema delicado: a provável co-autoria de Bill Evans em dois dos cinco temas (Blue in green e Flamenco sketches). A recusa renitente em reconhecer a contribuição do pianista mancha em parte a trajetória de Miles. Até porque ele não precisava dela para ser reconhecido como um mestre maior da música do século XX.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia
A derrocada de uma era
Já é uma discussão extemporânea e não quero entrar em querelas judiciais. Mas não consigo acreditar que a Casa do Rio Vermelho, onde Jorge Amado e Zélia Gattai viveram a maior parte da vida de casados, não foi tombada como patrimônio público e transformada num museu. Me deprime saber que a obtusidade do poder público, o desinteresse de grandes empresas e a indiferença de uma população cada vez mais estulta tenham feito com que os herdeiros do casal optassem por vender parte do acervo e se virassem sozinhos para manter vivo o legado dos pais. O problema se estende até a Fundação Casa de Jorge Amado, praticamente sem recursos para continuar funcionando. A gente não precisa sair da América do Sul para encontrar modelos louváveis de preservação de riquezas literárias: as casas de Neruda no Chile, incluindo a de Isla Negra; o Centro Cultural Borges em Buenos Aires; a Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre.
Jorge Amado merecia muito mais do que esse desprezo. Não foi o maior escritor brasileiro (é preciso percorrer as veredas dos grandes sertões de Minas para encontrar o titular do cargo), mas foi certamente o maior disseminador do que se conhece por Brasil fora das nossas fronteiras inóspitas, além de ter sido um cidadão do mundo, figura de proa nas relações com os mestres estrangeiros, com os quais dialogava ombro a ombro. Merecia muito mais do que a apatia dos idiotas.
Tudo isso sem falar na Casa propriamente dita: quem já foi lá reconhece na edificação um templo sagrado. O jardim a perder de vista, os móveis gastos, as esculturas, os sapos de cerâmica. Fui lá duas vezes para entrevistar Zélia. A primeira antes da morte de Jorge (ele já senil e resguardado no quarto) e a segunda, depois. Nessa última, ela me confessou, entre lágrimas, que contava os dias para reencontrar o homem que amou e registrou de todos os ângulos com sua câmera. Foi um dos momentos mais tocantes que presenciei em minha vida de repórter. Aquela mulher ainda bonita, de rosto sulcado, que viu e conviveu com alguns dos maiores escritores do século 20, devastada pelo mais primevo dos sentimentos, hoje já devidamente soterrado no jardim da casa.
É esse sentimento que desaparece junto com a Casa do Rio Vermelho. Enquanto isso, excrescências midiáticas – cuja maior contribuição à cultura baiana é a frase “sai do chão” – continuam arrebanhando milhares de devotos nessa cidade cada vez mais brutal e destroçada. Pois é: mais do que o oblívio de dois escritores, a dissolução da Casa representa a derrocada de uma era.
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