segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Meu mundo é ontem


A sensação de viver no lugar e na época errados me acompanha desde a infância, se intensificou na adolescência e atingiu o ápice na idade adulta. Claro que existe um elo muito estreito com a Salvador dos últimos 38 anos, fundamentado na sólida raiz familiar e também nos prazeres proporcionados pelos derivados gastronômicos do dendê e pela visão de um mar que até hoje me inebria. Mas é impossível refrear o sentimento de inadequação, de que sou um fruto temporão de um passado não muito remoto e – principalmente – produto de um meio que não é o meu. O que concretamente me liga a uma cidade na qual as relações sociais são tecidas pela estupidez? Uma cidade na qual o conceito oficial de cultura é diretamente atrelado ao conceito de mercado? Na qual a mediocridade é a regra e a violência virou rotina? E, ainda mais grave: o que concretamente me liga a uma época em que os valores culturais, sociais e morais cultivados por mim ao longo de quase quatro décadas se tornaram obsoletos e sem sentido?

Vivemos numa era em que a tecnologia virou um fim, e não um meio. De que adianta ter uma televisão gigante de última geração e um home theater de 20 mil watts se eles são usados para assistir a um DVD pirata do Calcinha Preta ou de Ivete Sangalo? Eu me sinto um estrangeiro numa cidade onde as pessoas levam seus carros tunados para lojas de conveniência de postos de gasolina, abrem o porta-malas e ligam o som no volume máximo, invariavelmente ouvindo alguma raspa de tacho do cancioneiro baiano pós-axé music. Lá se embriagam, brigam e matam, já que hoje encontrar uma arma dentro de um carro é tão fácil quanto encontrar uma flanela. Pode parecer birra de um sujeito ranzinza de saco cheio do mundo, mas a verdade é que gostaria de morar numa cidade menos agressiva, em todos os sentidos. Mas onde encontraria essa cidade neste início de século 21? Meu mundo é outro, e ele já acabou.

Quando adolescente, achava que estaria em casa na São Francisco dos anos 60, atulhada de hippies, porraloucas e desvairados, onde floresceram a contracultura, os alucinógenos e o rock de Jimi Hendrix, Janis Joplin e The Doors. Mas não, definitivamente não. Seria, sim, a Paris dos anos 20, aquela Paris permissiva do pós-Primeira Guerra, onde floresceu a geração perdida de Hemingway, Fitzgerald, Joyce e Gertrude Stein e onde se bebia gim e vinho de primeira linha com parcos trocados. Ou a Nova York dos anos 40, com seus bares de jazz onde floresceu o bebop de Parker e Gillespie. Ou o Rio dos anos 50, com suas redações enfumaçadas e sua noite boêmia, onde floresceu a bossa nova de Jobim, Vinicius e João. Até mesmo a Salvador dos anos 60 seria um bom lugar para viver os anos de juventude, desde que você a abandonasse logo depois. Há um certo pedantismo nessas escolhas, reconheço, mas a verdade é que sempre fui um hedonista, e nesses lugares o prazer de viver seria desfrutado de maneira muito mais intensa. Essa nostalgia do que não vivi sempre vai me acompanhar, como uma nódoa que não sai da mente, por mais que a gente enxágüe.

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