sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
Arquivo - Uma literatura de silêncio e sombras
Uma literatura de silêncio e sombras
Genialidade de Juan Rulfo pode ser conferida em edição caprichada de seus dois únicos livros
Paulo Sales
É certo que uma lista dos grandes autores latino-americanos de todos os tempos não poderia deixar de fora nomes como o argentino Julio Cortázar, o paraguaio Augusto Roa Bastos, os mexicanos Carlos Fuentes e Octavio Paz, o uruguaio Juan Carlos Onetti e, obviamente, o colombiano Gabriel García Márquez. E é certo, também, que se fosse possível encomendar uma lista semelhante a cada um deles, pelo menos um nome estaria presente em todas as relações: Juan Rulfo.
Sim, Juan Rulfo, um mexicano de obra escassa, que durante toda a vida (1917-1986) escreveu apenas um volume de contos, Chão em chamas, de 1953, e um pequeno romance, Pedro Páramo, de 1955 (houve ainda um terceiro trabalho, El gallo de oro, com textos para cinema, mas o próprio autor não o considerava parte de sua obra literária). Parece pouco, mas as cerca de 370 páginas que constituem a obra completa do escritor serviram de alicerce para a construção de praticamente toda a literatura latina em língua espanhola do século XX, daí a paixão confessa de todos os grandes autores citados acima.
E é essa obra - tão pequena, porém tão sólida, bela e nebulosa - que a Record recolocou no mercado, com tradução e prefácio a cargo de Eric Nepomuceno, especialista e admirador de Juan Rulfo. Pedro Páramo e Chão em chamas merece toda a veneração que o rodeia. É uma obra fechada, que dialoga apenas com si mesma, sem influências ou heranças. Rulfo construiu um universo que não tem paralelo em qualquer outra literatura.
Comala, a cidade fictícia onde ambienta seus personagens, já foi comparada à Macondo de García Márquez, e em ambos o realismo fantástico alcança os vôos mais plenos das letras latinas. Mas param por aí as semelhanças. Márquez é caudaloso, Rulfo é adepto do talho, da narrativa concisa e sem arestas.
O próprio autor de Cem anos de solidão seria o primeiro a evitar comparações, até porque coloca o mexicano em um patamar mais alto, o que pode ser comprovado no seguinte depoimento: “A leitura a fundo da obra de Juan Rulfo me deu, enfim, o caminho que buscava para continuar meus livros. Não consegui dormir enquanto não terminei a segunda leitura; nunca, desde a noite tremenda em que li A metamorfose, de Franz Kafka, havia sofrido uma comoção semelhante”.
Quem, como Márquez, já teve o prazer de ler Pedro Páramo, sabe bem do que ele está falando. Imergir nas páginas do livro é trafegar por um universo sem fronteiras de realidade, onde vivos e mortos convivem com naturalidade em tempos distintos, sem delimitações precisas. É como se um nevoeiro se colocasse entre o leitor e as frases, reduzindo a nitidez do cenário imaginário que se forma em sua mente. Existem, basicamente, duas tramas distintas no romance, que tem como pano de fundo um painel do miserável e atrasado México rural.
Na primeira, o jovem Juan Preciado vai até Comala procurar o pai, Pedro Páramo, que nunca conheceu, para atender ao último pedido da mãe moribunda. Na outra, narra-se a juventude do próprio Páramo, arrogante e assassino, espalhando sua brutalidade por uma Comala em tudo diferente da cidade fantasma habitada por entes fugidios encontrada por Preciado. E há ainda Susanna San Juan, Doloritas, Damiana e muitas outras mulheres contaminadas pela chaga do homem que dá título ao livro e povoa como um espectro as divagações dos demais personagens.
Pedro Páramo é um romance feito de sombras, no qual Rulfo nos brinda com a mais sedutora característica do realismo fantástico, que é tratar o absurdo com indiferente naturalidade. Há uma busca perene dos personagens por suas próprias histórias, por seus passados que permanecem na areia e nas ruínas de Comala. No aspecto formal, o livro é sublime. A despretensão das frases esconde uma busca intermitente pela palavra ideal, pela história exata, sem redundância.
Em depoimento a Nepomuceno, Rulfo descreveu dessa forma o seu processo criativo: “No começo, você deve escrever levado pelo vento, até sentir que está voando. A partir daí, o ritmo e a atmosfera se desenham sozinhos. É só seguir o vôo. Quando você achar que chegou aonde queria chegar é que começa o verdadeiro trabalho: cortar, cortar muito”. Ele também costumava dizer que em literatura “pode-se mentir, mas nunca falsificar”.
Os contos de Chão em chamas complementam o universo concebido em Pedro Páramo, embora acrescentem uma conotação social que no romance é apenas esboçada. São petardos construídos com rigor extremo, como A noite em que deixaram ele sozinho, E nos deram a terra e Luvina, todos eles belos e agrestes, com um sabor acre de deserto. Falam de gente sem norte, abarrotados de miséria, embrutecidos pelo calor.
Depois de Chão em chamas e Pedro Páramo, Juan Rulfo dedicou-se com afinco a cultivar o silêncio. O que se julgava na época o prenúncio de uma obra poderosa, que ficaria para sempre cravada na literatura do século XX, acabou se convertendo na totalidade dessa obra. E nem por isso deixou de ficar cravada no patamar mais alto das letras mundiais. Rulfo é, hoje, um dos autores mais estudados do mundo. São centenas de teses e estudos críticos que se dedicam anualmente a dissecar sua genialidade.
Assim como Ernesto Sabato e J.D. Salinger, que puseram em vida um ponto final à própria obra (pelo menos até agora), esse mexicano diminuto e tímido também silenciou definitivamente. Em depoimento a Eric Nepomuceno, ele jamais conseguiu explicar a abrupta interrupção da carreira literária. Falava e falava, mudava de assunto, mas sempre voltava à mesma frase enigmática, que oculta mais do que esclarece: “Eu tinha o vôo, mas cortaram minhas asas. Perdi”.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia
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