quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
Arquivo - Anatomia de uma obra-prima
Anatomia de uma obra-prima
Livro reconstitui com maestria o ímpeto criativo que gerou o genial ‘Kind of blue’, de Miles Davis
Paulo Sales
A analogia é do pianista Bill Evans: “Existe uma arte visual japonesa na qual o artista é obrigado a ser espontâneo. Com um pincel especial e tinta preta, ele deve pintar sobre um fino pergaminho esticado, de forma que uma pincelada não natural ou interrompida virá a destruir a linha ou romper o pergaminho. Tais artistas devem praticar um tipo especial de disciplina, que permite que a idéia se expresse na comunicação com as mãos de modo tão direto que o pensamento não interfira. Essa mesma convicção impulsionou a evolução das disciplinas extremamente severas e únicas do jazzista ou do músico improvisador”.
As reflexões acima fazem parte do texto Improvisação no jazz, escrito sob encomenda para a contracapa do disco Kind of blue, e são fundamentais para se compreender a essência do álbum, lançado por Miles Davis em 1959 e alçado nos anos seguintes à condição de obra-prima do gênero, provavelmente a maior delas. Evans sabia do que estava falando. Ele foi um dos integrantes do antológico sexteto (acrescido de outro pianista, Wynton Kelly, presente em uma faixa) que deu forma ao disco, complementado pelo próprio Miles (trumpete), John Coltrane (sax tenor), Julian “Cannonball” Adderley (sax alto), Paul Chambers (baixo) e Jimmy Cobb (bateria, único remanescente vivo do grupo).
O trabalho desses músicos magistrais, liderados por um artista em estado de plenitude, é dissecado no livro Kind of blue – A história da obra-prima de Miles Davis, do jornalista e crítico de jazz norte-americano Ashley Kahn, recém-lançado no Brasil pela editora Barracuda. É um item indispensável na biblioteca de qualquer aficcionado por jazz e pelo mais radical, genial e controvertido de seus expoentes. Basta lembrar que num período de 20 anos – 1949 a 1969 – Miles levou o gênero a caminhos insuspeitados, criando sublevações de longo poder de alcance. Coadjuvante na era do bebop, ele estabeleceu as bases do cool (The birth of the cool, 1949) e do fusion (Bitches brew, 1969), além de ter sido peça fundamental na difusão do hard bop.
Mas foi com o jazz modal de Kind of blue que Miles atingiu o cume, e isso num idioma musical no qual não faltam pedras fundamentais: tanto clássicos como A love supreme (John Coltrane), Night train (Oscar Peterson), Straight, no chaser (Thelonious Monk) e Study in Brown (Clifford Brown), quanto trabalhos que, por seu radicalismo e inventividade, abriram novas fronteiras para a expansão do gênero, como The shape of jazz to come (Ornette Coleman), Pithecanthropus Erectus (Charles Mingus) e Time out (Dave Brubeck).
Nada, porém, que supere a lendária seqüência de temas iniciada com So what e complementada com Freddie Freeloader, Blue in Green, All blues e Flamenco sketches (único com dois takes, incluídos nos lançamentos posteriores em CD). Impossível não atingir o delírio silencioso com o aquele trumpete com surdina, os solos de sax introspectivos, o piano minimalista, a seção rítmica suave e participativa, as frases saídas direto de algum recanto escondido da alma.
Kahn se debruça detalhadamente sobre os bastidores da histórica gravação, reconstituída em detalhes, já que ele teve acesso à fita master, guardada a sete chaves na Columbia, na qual é possível ouvir diálogos e takes interrompidos. Mas, até chegar lá, recupera a carreira de Miles desde os primeiros tempos, mostrando como sua curiosidade musical e sua personalidade introspectiva ajudaram a moldar uma obra em permanente estado de desassossego. Isso é fundamental para o leitor/ouvinte acompanhar o amadurecimento do artista, suas limitações técnicas (ele nunca conseguiu tocar com a velocidade de um Dizzy Gillespie, daí seus fraseados longos, lentos e atulhados de lirismo) e sua capacidade de descobrir, reunir e tirar o máximo de músicos brilhantes. Mais do que apenas liderar um grupo, Miles era capaz de criar com ele sonoridades até então nunca desbravadas.
Fartamente ilustrado (inclusive com fotos das sessões de gravação do disco), Kind of blue revela ainda informações importantes, como a influência de Ahmad Jamal (adepto de um estilo minimalista ao piano) sobre o jovem Miles. Ou que o “Colosso do Saxofone” Sonny Rollins era a primeira opção do trumpetista para ocupar a vaga que acabou ficando com Coltrane no primeiro grande quinteto. Hoje, passado tanto tempo, é impossível imaginar outro sideman capaz de dialogar com o mestre com a mesma desenvoltura. O laconismo e a economia de notas de Miles tinha seu contraponto perfeito no virtuosismo e na profusão de refrões desferida aos borbotões pelo velho e bom Trane.
E ainda tinha a exuberância efusiva de Cannonball. A expansividade dos saxofonistas motivou um desabafo hilário de Miles, reproduzido por Kahn. Voltando de uma apresentação, ele se encontrou com o arranjador Gil Evans, que perguntou como foram os shows: “Bem, Coltrane tocou 50 chorus. Cannonball tocou 46 e eu toquei dois”. Essa prolixidade foi de certa forma podada em Kind of blue. Talvez porque Miles estivesse experimentando uma nova forma de se expressar musicalmente. Despojado das amarras dos 32 ou 12 compassos que caracterizava a estrutura harmônica até então praticada pelos jazzistas, o jazz modal permitia ao solista transformar o improviso na própria melodia da música.
Ou seja, criava-se na hora, seguindo à risca a espontaneidade da arte japonesa a que Bill Evans se referiu em seu texto. De volta ao conjunto em 1958, após uma temporada com Thelonious Monk, Coltrane definiu assim o som que Davis começava a explorar: “Encontrei Miles em outro estágio do seu desenvolvimento musical. Houve um tempo em que ele se dedicava às estruturas de múltiplos acordes. Ele se interessava pelos acordes por seu valor intrínseco. Mas agora parecia seguir o caminho inverso, usando cada vez menos alteração de acordes na música. Ele usava temas com linhas melódicas de livre fluência e uma direção tonal. Isso permitia ao solista escolher entre tocar seguindo o encadeamento de acordes (verticalmente) ou a melodia (horizontalmente)”.
Autor de livros importantes, como A love supreme: the story of John Coltrane’s signature album e de The house that Trane built, Ashley Kahn possui a louvável capacidade de transformar todos esses termos técnicos em linguagem facilmente digerível pelo leitor. O único senão do seu livro talvez seja o tom um tanto oficialesco ao falar da Columbia, gravadora a que Miles esteve ligado pela maior parte da vida profissional. Kahn não deixa, por exemplo, de abordar um tema delicado: a provável co-autoria de Bill Evans em dois dos cinco temas (Blue in green e Flamenco sketches). A recusa renitente em reconhecer a contribuição do pianista mancha em parte a trajetória de Miles. Até porque ele não precisava dela para ser reconhecido como um mestre maior da música do século XX.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia
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2 comentários:
ler todo o blog, muito bom
Obrigado.
abs
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