segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
Os novos dilemas do velho Clint
Li que o New York Times já está apontando Clint Eastwood como potencial favorito ao Oscar 2009, não só pela dupla direção em A Troca e Gran Torino, mas também pelo trabalho como ator no último. As escolhas da Academia pouco me interessam, mas gosto de ver o velho Clint roubando a cena naquela cerimônia cafona e modorrenta a cada dois anos, quando seus pequenos diamantes ganham discretamente as telas e aos poucos arrebatam críticos e espectadores. É o melhor cineasta americano vivo, não tenho dúvida (ok, Scorsese e Coppola ainda estão sobre a Terra e isso rende uma boa discussão). Ao longo dos anos, ele vem dissecando suas obsessões e refletindo com extrema delicadeza sobre as perdas, dilemas morais e inquietações que movem o ser humano em situações-limite. Adoro Menina de ouro, As pontes de Madison, Os imperdoáveis, Cartas de Iwo-Jima e Bird. Mas o que mais me fascina em Eastwood é a sua metamorfose, do cara durão de Dirty Harry no sujeito sábio e sensível da maturidade. Vê-lo caminhando com o andar alquebrado e um sorriso charmoso e irônico, aos 78 anos, é como apreciar uma sequóia de mais de 100 metros com mais de mil anos. Ou seja: estamos diante de algo que desafia permanentemente a finitude.
Seguem abaixo críticas de Cartas de Iwo-Jima, A conquista da honra e menina de ouro:
O canto dos derrotados
Obra-prima anti-belicista, ‘Cartas de Iwo Jima’ desvela o humanismo de Clint Eastwood
Paulo Sales
Há uma ternura latente na forma como Clint Eastwood se embrenha nas inquietações silenciosas de vidas anônimas. É como se ele revolvesse a areia para reaver algum elo com o passado e poder recontá-lo, trazendo-o de volta do esquecimento. Assim como os exploradores japoneses que, no início e no final de Cartas de Iwo Jima, buscam vestígios de batalha nos túneis construídos 60 anos antes por seus antecessores, já nos estertores da Segunda Guerra Mundial. E acabam encontrando as reminiscências de dias terríveis, abrigadas em correspondências que nunca chegaram aos destinatários.
Clint realizou mais uma obra-prima, que guarda nítidas semelhanças com As pontes de Madison pela forma como um drama antigo vem à tona e se projeta de maneira imperiosa sobre o espectador. O amor secreto entre uma mulher casada e um fotógrafo impetuoso tem como paralelo o desejo desesperado de um jovem combatente de voltar para casa e conhecer sua filha recém-nascida. Ele é Saigo (Kazunari Ninomiya), personagem principal de Cartas de Iwo Jima, que dá prosseguimento à reconstituição de uma mesma tragédia narrada sob pontos de vista opostos, iniciada com A conquista da honra.
Como no primeiro filme, o cineasta volta a subverter os conceitos de bravura, sacrifício e, no outro extremo, covardia que estigmatizam o comportamento de soldados e comandantes no front. É uma subversão que remete a Os imperdoáveis, o poderoso anti-western com o qual foi alçado à condição de mestre maior da Hollywood contemporânea. Mas, se A conquista da honra refletia sobre a glória e a fama personificadas nos três combatentes norte-americanos alçados à condição de celebridades por terem hasteado a bandeira no alto do monte Suribachi, Cartas de Iwo Jima centra foco no anonimato dos derrotados. O Japão perdeu a batalha e logo depois a guerra, e os 20 mil soldados que morreram por lá tornaram-se heróis nacionais. Mas heróis de quê?
O verdadeiro herói, segundo Eastwood, é aquele capaz de tudo para permanecer vivo e voltar para a mulher e a filha que precisam dele, como Saigo tenta fazer todo o tempo. Entre família e pátria, o que deve ser priorizado: o individual ou o coletivo? Através desse questionamento, o cineasta discute os códigos de honra japoneses, sobretudo a prática do suicídio, uma abjeção tratada como ponto máximo da glória pela cultura nipônica. Cartas de Iwo Jima é mais subliminar do que A conquista da honra, e é isso que o torna superior. Ao invés de saltar diversas vezes no tempo e no espaço, como no longa anterior, Clint trabalha agora com uma narrativa linear. À exceção do início e do final e de alguns rápidos flash-backs (um tanto esquemáticos, é verdade), o filme centra foco nos preparativos para a batalha, comandados pelo tenente-coronel Tadamichi Kuribayashi (vivido por um Ken Watanabe em estado de graça).
Em seguida, é a vez da guerra propriamente dita, com a chegada dos norte-americanos à ilha do Pacífico, de extrema importância estratégica para EUA e Japão, que travaram uma batalha sangrenta entre 16 de fevereiro e 26 de março de 1945. São seqüências filmadas com apuro técnico invejável. A sensação de claustrofobia dentro dos túneis só é comparável ao desespero das corridas em campo aberto, atravessadas por saraivadas de balas. Inferiores em número de soldados e de armamentos, os japoneses se agarravam a uma hipotética superioridade étnica para crer na vitória. Sabiam, porém, que iriam morrer todos ali, nas passagens subterrâneas ou nas areias negras da ilha.
Além do timing preciso e da excelente reconstituição da batalha, Cartas de Iwo Jima tem como principais trunfos a concepção dos personagens e a direção de atores. Kuribayashi e Saigo são tipos absolutamente verossímeis em seu sofrimento, assim como o íntegro ex-campeão olímpico de hipismo Nishi (Tsuyoshi Ihara) e o tímido recruta Shimizu (Ryo Kase). Essencialmente antibelicista e humanista, o discurso de Eastwood sobrepõe o indivíduo ao coletivo (representado pela pátria), transformando estatísticas em vidas.
Por isso, são tão importantes as curtas cenas que mostram os exploradores encontrando as cartas perdidas. Voltando ao paralelo com As pontes de Madison, é possível identificar uma particularidade epistolar recorrente na obra do cineasta. Nos dois filmes - e também em Menina de ouro, conduzido pela narração em off de uma carta escrita pelo personagem de Morgan Freeman -, são correspondências antigas que trazem o passado de volta e permitem que um feixe de luz se projete sobre sentimentos há muito enterrados. No caso de Cartas de Iwo Jima, os sentimentos de 20 mil seres humanos que hoje são só poeira.
Receita para fazer um herói
Clint Eastwood mostra como a fronteira entre o bem e o mal é nebulosa em ‘A conquista da honra’
Paulo Sales
Existem guerras justas? Ao menos na Segunda Guerra Mundial, era possível vislumbrar uma polarização entre o bem (os aliados, comandados por Inglaterra, França, Rússia e EUA) e o mal (personificado nos nazistas alemães, nos fascistas italianos e nos camicases japoneses). Mas, em meio ao fogo cruzado de uma realidade que flerta permanentemente com o absurdo, até onde essa dualidade é legítima ou verdadeira? Até onde existem heróis e vilões, quando o que realmente importa é salvar a própria pele e voltar para casa o mais inteiro possível?
Não há heróis e vilões em A conquista da honra. Ou, pelo menos, não no sentido que nos acostumamos a encontrar em Hollywood. Clint Eastwood deixa claro que, mais do que uma demonstração de bravura, atirar no inimigo é um ato extremo de desespero. É você ou ele, e o medo acaba sendo o principal combustível da crueldade. O cineasta também subverte o conceito maniqueísta de guerra justa atrelado ao conflito ocorrido entre 1939 e 1945. Primeiro de dois longas-irmãos sobre um mesmo embate visto por óticas opostas (o outro é Cartas de Iwo Jima), A conquista da honra pertence a uma linhagem nobre de épicos de guerra com acento pacifista. Linhagem que tem como expoentes fundamentais Glória feita de sangue (Stanley Kubrick) e Além da linha vermelha (Terrence Malick). Na literatura, é herdeiro direto de Os nus e os mortos, de Norman Mailer.
Como eles, o longa de Eastwood parte de um episódio específico para refletir sobre a onipresença de mentiras e manipulações nas trincheiras e nos bastidores, onde se constroem as grandes batalhas e se forjam os heróis de brilho falso. No caso, a clássica foto tirada por Joe Rosenthal, da Associated Press, de soldados dos EUA erguendo a bandeira do país no alto do Monte Suribachi, ponto culminante da ilha de Iwo Jima.
Situada nos confins do Oceano Pacífico, a ilha era um local de extrema importância estratégica para norte-americanos e japoneses, que travaram uma batalha sangrenta já nos estertores da Segunda Guerra, entre 16 de fevereiro e 26 de março de 1945. A vitória norte-americana praticamente selou o destino do conflito a favor dos aliados.
Mas aquela foto, vendida mundo afora como uma demonstração de bravura dos fuzileiros ianques, foi assentada numa mentira deslavada. Além de ter sido tirada logo no primeiro dia da invasão (muito antes, portanto, da vitória norte-americana), a foto eternizou na verdade o içamento de uma segunda bandeira, apenas para marcar terreno e sem qualquer valor bélico. Mas nada disso importava naqueles dias em que a propaganda de guerra precisava de heróis capazes de convencer a população a apoiar financeiramente a participação dos EUA no conflito. Esses heróis foram personificados nos cinco fuzileiros e um enfermeiro da marinha que levantaram a bandeira.
Três deles morreram no front nos dias seguintes. Os outros, levados de volta à América, receberam as devidas condecorações. John “Doc” Bradley (Ryan Phillippe, de Crash - No limite), Ira Hayes (Adam Beach) e René Gagnon (Jesse Bradford) enfrentaram uma exaustiva excursão pelo país patrocinada pelo governo para arrecadar bônus de guerra junto a empresários e à sociedade norte-americana. Mas não conseguiram esquecer as desditas do campo de batalha. Se Gagnon ansiava pela fama e se sentia à vontade naquele circo, Bradley e Hayes choravam silenciosamente por seus mortos, companheiros perdidos de forma brutal, com pernas arrancadas e vísceras expostas (retratados aqui sem meio-termo).
Eastwood acompanha de perto essas três vidas, tentando entender suas motivações e mostrar como elas esbarraram na história e depois se desvencilharam dela, intencionalmente ou não. Bradley procurou esquecer seu passado e ocultá-lo da família. Gagnon levou uma vida medíocre após a extinção da fama e Hayes, descendente de índios (e personagem de uma belíssima canção do mestre Johnny Cash), se entregou ao alcoolismo - o filme deixa clara a irremediável propensão do norte-americano ao racismo contra os indígenas. A trama se desloca no tempo, alternando entre a batalha propriamente dita, os momentos que a antecederam e a excursão festiva dos personagens. Todos esses acontecimentos são rememorados nos dias atuais pelo filho de Bradley (vivido no filme por Tom McCarthy), autor, junto com o jornalista Ron Powers, do livro no qual o longa se baseia (recém-lançado no Brasil pela Ediouro).
Aos 76 anos, Eastwood mantém uma forma invejável para dirigir cenas de guerra complexas, incluindo seqüências em trincheiras e batalhas aéreas e navais, que ficam ainda mais realistas com o auxílio da fotografia lavada, transitando entre o sépia e o acinzentado. Composta pelo diretor, a trilha sonora remete à delicadeza de seus filmes anteriores, sobretudo Menina de ouro. Por outro lado, a narrativa às vezes patina, perde o timing e se torna enfadonha. Em outros momentos, é possível perceber um certo desleixo na condução dos atores e a ausência de um afinco maior na feitura do roteiro (assinado por Paul Haggis, diretor de Crash, e William Broyles Jr.).
Essas imperfeições não chegam a minar a força do discurso de Eastwood. Com a A conquista da honra, ele mostra como a distância entre bem e mal é fugidia e nebulosa, principalmente quando os envolvidos passam por sucessivas e dolorosas situações-limite. E, assim como em Os imperdoáveis e Sobre meninos e lobos, procura compreender a natureza da maldade, de onde ela vem e como e por que se manifesta. É uma forma muito peculiar de o antigo tough guy de filmes como Doido para brigar, louco para amar e da série Dirty Harry refletir sobre temas mais vastos e imperiosos, como perda, culpa e dilemas morais.
Um golpe na consciência
Clint Eastwood reflete sobre perda, culpa e dilemas morais no sublime ‘Menina de ouro’
Paulo Sales
Até a metade da narrativa, Menina de ouro resume-se a pouco mais que uma história clássica de superação através do esporte, contada com sensibilidade e pontuada por pequenas sutilezas. É quando vem o golpe, quase uma incisão no córtex cerebral do espectador. A partir daí, Clint Eastwood passa a investigar os sentimentos nobres ou perversos que se escondem nos desvãos da alma humana. E volta dessa escavação com uma obra que beira o sublime. Menina de ouro consolida Eastwood como um cineasta diferenciado, assolado por obsessões muito específicas.
Essas obsessões podiam ser vislumbradas em filmes como Os imperdoáveis, o belíssimo anti-western que concebeu em 1992 e com o qual arrebatou quatro Oscars, e no sombrio Sobre meninos e lobos (2003). Neles, como em Menina de ouro, o antigo durão reflete sobre a culpa e tenta descobrir como ela se processa nos que ficam. Há um constante sentimento de perda minando de seus personagens, que pode ser fruto de uma infância tempestuosa ou de uma lacuna moral.
O treinador e dono de academia de boxe Frankie Dunn (vivido pelo próprio Eastwood) é um homem amargurado pela solidão. Longe da filha que o despreza e assombrado pelo remorso – deixou, no passado, seu lutador Eddie Scrap (Morgan Freeman) lutar até perder a visão de um dos olhos -, ele exorciza seus fantasmas em visitas quase diárias à igreja e imergindo na poesia de Yeats (que lê no original, em gaélico). Sua rotina se resume a treinar potenciais vencedores e em seguida perdê-los para outros treinadores, que os transformam em campeões.
O único amigo de Frankie (ou algo próximo do que se poderia definir como amizade, já que os diálogos entre ambos são marcados pelo silêncio ou por monossílabos) é o próprio Scrap, que trabalha no ginásio como um misto de gerente, servente e vigia. É Scrap quem contextualiza a história, narrando em off a chegada à academia da impetuosa Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), vinda da escória, sem mais perspectivas que não a de ser uma lutadora de boxe. A obstinação de Maggie acaba demolindo a resistência de Frankie em treinar uma mulher. E o que de início era só uma relação profissional se transforma num amor inabalável entre um pai sem filha e uma filha sem pai.
Após alguns meses de treinamento, Maggie se torna uma vencedora. É capaz de nocautear logo no primeiro assalto todas as suas oponentes, até chegar à disputa pelo título mundial, numa luta complicada contra uma vencedora desleal. Essa luta representa a fratura dramática de que se falou no início. Maggie sofre uma queda que a deixa totalmente paralisada do pescoço para baixo, e Frankie se torna seu protetor. A trajetória de uma vencedora se transforma no drama de uma derrotada pelo destino.
Os momentos finais de Menina de ouro, quando Frankie se vê diante de um dilema moral doloroso, são tratados com delicadeza extrema pelo diretor. E, como ator, Eastwood é soberbo. Cada sulco em seu rosto envelhecido parece um corte que desvela um sofrimento profundo. Com uma atuação poderosa, Hilary Swank reveste sua Maggy de uma imensa carência afetiva, que contrabalança com o humor dos perseverantes. Freeman reedita com a maestria habitual a parceria com Eastwood, eternizada em Os imperdoáveis.
Com seus filmes sombrios e silenciosos, o velho Clint alcança o íntimo da natureza humana. A dor de Frankie e sua dissipação final denotam uma grandeza de que só os verdadeiros homens são capazes. E Eastwood está se tornando um deles.
* publicados originalmente no Correio da Bahia
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