quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
Arquivo - O mundo precioso de Monk & Trane
O mundo precioso de Monk & Trane
Gravação recém-descoberta de um show antológico dos dois deuses do jazz é lançada no Brasil
Paulo Sales
Quando se juntou ao grupo do pianista Thelonious Monk, em 1957, para uma série de concertos na célebre casa novaiorquina Five Spot, John Coltrane vivia um momento contraditório na carreira. Já era um nome consagrado na cena jazzística, embora ainda não tivesse concebido as obras que iriam eternizá-lo como o maior saxofonista da história do jazz, ao lado de Sonny Rollins e Charlie Parker. Mas, depois de fazer parte do célebre primeiro quinteto de Miles Davis, que gravou uma série de discos antológicos, incluindo Round about midnight, lançado meses antes, ele havia sido demitido pelo líder. Motivo: Coltrane estava se matando pelo consumo excessivo de álcool e heroína. Era um homem em frangalhos.
O instrumentista, porém, permanecia intacto, como se pode perceber no disco Thelonious Monk Quartet with John Coltrane at Carnegie Hall, preciosidade recém-descoberta lançada no Brasil pela Blue Note/EMI. O achado é fruto da dedicação obsessiva do arqueólogo musical Larry Appelbaum, que se debruçou sobre os arquivos do programa radiofônico Voice of America, amontoados numa sala da biblioteca do Congresso norte-americano, e encontrou os tapes do show realizado na grande casa de espetáculos em 29 de novembro de 1957.
Além do CD, existem poucos registros ao vivo de gravações de Monk e Trane, e nenhuma delas é tão completa nem tem uma qualidade tão límpida. São cerca de 50 minutos com a dupla - mais o baixista Ahmed Abdul-Malik e o baterista Shadow Wilson - destilando virtuosismo em interpretações viscerais de oito temas originais de Monk (Monk’s mood, Evidence, Crepuscule with Nellie, Nutty, Bye-ya, Blue Monk e duas versões de Epistrophy, uma delas incompleta), além do standard Sweet and lovely (Arnheim/Daniels/Tobias).
John Coltrane talvez tenha sido - junto com Charlie Rouse - o saxofonista que melhor compreendeu as mensagens subliminares contidas nas criações de Thelonious, caracterizadas basicamente por introduções repetitivas com variações melódicas quase imperceptíveis, seguidas de desconstruções harmônicas pontuadas por notas soltas, ideais para improvisações sem freios. O disco evidencia a impressionante capacidade do velho Trane de preencher os vácuos intencionalmente deixados por Monk, como se pode conferir em Evidence, na qual rende um tributo ao bebop voando em frases intrincadas sobre a consistente base de piano, baixo e bateria. E também em Nutty, quando sax e piano dialogam numa sucessão de solos assimétricos.
Monk e Trane também se dedicam a momentos meditativos, como nas intimistas Monk’s mood, faixa que abre o disco, e Crepuscule with Nellie. Em ambas, o pianista inicia o tema sem acompanhamento, para em seguida ganhar a companhia de um Coltrane dócil e romântico. Já em Bye-ya, outro tema clássico do “contorcionista da música” (uma das muitas alcunhas que Thelonious ganhou ao longo das décadas), o saxofonista desfere solos impiedosos, beneficiados pela cozinha vibrante de Malik e Wilson. E Sweet and lovely, standard recriado e explorado à exaustão por Dizzy Gillespie, tem sua melodia quase totalmente subvertida pelas improvisações de Coltrane.
O show no Carnegie Hall – na verdade um acontecimento jazzístico de grandes proporções, que teve ainda apresentações de Billie Holiday, Ray Charles e Chet Baker, entre outros – foi o ponto culminante da união entre John e Thelonious, já amaciados por meses tocando juntos no Five Spot. Coltrane amadureceu, passando a repensar a vida, a carreira e o efeito devastador provocado pelas drogas sobre ambas.
Numa entrevista para a revista Down Beat, em 1960, ele afirmou ter encontrado em Monk um verdadeiro pensador musical. “Aprendi com ele em vários aspectos: sensoriais, teóricos e técnicos. Eu expunha meus problemas musicais, minhas dúvidas, e ele sentava ao piano e dava respostas a esses problemas apenas tocando-os”. Já Thelonious conseguiu um parceiro capaz de reconhecer a sofisticação intelectual de sua obra e de dialogar com ela.
Thelonious Monk Quartet with John Coltrane at Carnegie Hall é o mais importante lançamento póstumo dos últimos anos, junto com outro tesouro: a descoberta dos registros de um show de Charlie Parker e Dizzy Gillespie, os pais do bebop, no Town Hall (Nova York), realizado em junho de 1945 e descoberto também em 2005. Monk (1917-1982) já era, em 1957, ao lado de Duke Ellington, o mais importante inventor de temas do jazz, embora ainda sofresse um certo preconceito pela forma percussiva e aparentemente desleixada com que se debruçava ao piano.
O introvertido e ligeiramente insano instrumentista, que iniciou a carreira tocando no quarteto de Coleman Hawkins, precisou esperar a própria morte – após longos e melancólicos anos de demência - para ser saudado de forma unânime. Antes de ir embora, porém, Monk deixou discos que ajudaram a sedimentar o hard bop, como Brilliant corners, Monk’s dream, At the Blackhawk e o mais reluzente de todos: Straight, no chaser, de 1967. Seus temas se tornaram standards, sobretudo Round midnight, executado por nomes como Miles Davis, Chet Baker, Bill Evans, Lee Konitz e os brasileiros Baden Powell e Helio Delmiro.
Coltrane ainda teria um bom caminho pela frente. Voltou a trabalhar com Miles Davis, tocando no célebre sexteto que legaria ao mundo Kind of blue, provavelmente o melhor disco da história do jazz, e se dedicou a trabalhos solo marcados por uma forte religiosidade e por sonoridades que, com o passar dos anos, se tornaram mais torturadas e experimentais, chegando ao limite da cacofonia em Ascension e no segundo Live at Villlage Vanguard, trabalhos mais próximos do free jazz e lançados pouco antes da sua morte, em 1967.
O melhor Coltrane é o anterior a esse período, mais precisamente entre os anos de 1957 e 1964, quando ele lançou grandes discos como Blue train, Giant steps, Lush life, Crescent, Stardust, Soultrane e My favorite things. Além, claro, de A love supreme, sua obra maior, uma suíte em quatro movimentos que ajudaria a mudar o curso do jazz. Caudaloso, viril e explosivo, o som de Coltrane é reflexo de uma personalidade atormentada, séria e introspectiva.
Por outro lado, poucos saxofonistas atingiram um grau tão alto de sentimento e suavidade quanto ele na interpretação de baladas – como se pode conferir no hoje clássico Ballads e em alguns temas do disco gravado junto com Duke Ellington. Pena que um câncer no fígado o tenha arrancado do mundo dos vivos tão cedo, com apenas 40 anos. Sua arte, como a de Thelonious, permanece. Afinal, os deuses ainda cultivam o saudável hábito da imortalidade.
* publicado originalmente no Correio da Bahia
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