Este Lado do Paraíso
O blog de Paulo Sales
terça-feira, 7 de março de 2017
terça-feira, 13 de dezembro de 2016
That’s all, folks!
Este blog está morto. Viveu uma agonia lenta nos últimos dois anos, sofrendo de inanição criativa. No primeiro trimestre deste ano ainda tentei reanimá-lo, em vão. Agora, oito anos e nove dias depois do nascimento, ele chega ao último suspiro. Dito isso, não queria abandoná-lo sem uma despedida digna.
Afinal, foi neste lado do paraíso que eu pude desaguar minhas angústias, desvelar meus sentimentos, dissecar minhas perdas e conquistas. Um lugar acolhedor, onde fiz novas amizades e fortaleci antigas, escrevendo textos dos quais me orgulho e que dizem um pouco - talvez muito - de quem sou. É um legado valoroso, que poderá encontrar outras paragens em breve.
Ao ler as memórias do jornalista inglês Christopher Hitchens (Hitch-22), me deparei com a lista de perguntas relacionadas abaixo, conhecida como Questionário Proust, em homenagem ao autor de Em Busca do Tempo Perdido, que o respondeu duas vezes. As respostas de Hitchens são ótimas, e podem ser lidas neste link da revista Vanity Fair, que tinha como marca registrada aplicar o mesmo questionário aos seus entrevistados.
Não tenho a estatura intelectual de Hitchens, muito menos a de Proust. Mas mesmo assim ouso encerrar em definitivo as atividades de Este Lado do Paraíso com o inventário de princípios abaixo. Uns um tanto prosaicos, outros um tanto bobos, e duas ou três coisas de algum valor. Vamos a eles:
P - O que você considera a mais profunda miséria?
A incapacidade do ser humano - eu incluído - de compreender o quanto a vida é efêmera e que deve aproveitá-la de maneira plena.
P - Onde você gostaria de viver?
A maior parte do ano em Paris. Um ou dois meses em Lisboa, uma ou duas semanas em Veneza e o verão em Salvador, para repor o estoque de dendê, brejeirice e malemolência.
P - Qual a sua ideia de felicidade terrena?
Uma conversa regada a bom vinho e boa comida ao lado de quem amo, inclusive quem está longe ou só na memória.
P - Diante de quais erros você se mostra mais indulgente?
Aqueles motivados por desespero.
P - Quais são seus heróis favoritos na ficção?
Na verdade estão mais para anti-heróis: Sal Paradise, Mathieu Delarue, Santiago Zavalita, Jake Barnes, Thomas Hudson, Florentino Ariza, Henry Chinaski.
P - Quais são seus personagens históricos favoritos?
Salvador Allende, Nelson Mandela, Rosa Parks, Chico Mendes, John Maynard Keynes, Anne Frank, Martin Luther King, Darcy Ribeiro, José Mujica, Dom Paulo Evaristo Arns e sua irmã, dona Zilda Arns. Provavelmente faltam alguns, vivos ou mortos.
P - Quais são suas heroínas na vida real?
Minha mãe. As mães pobres que perdem filhos para a violência policial ou o banditismo. Malala Yousafzai e as mulheres que vivem sob a opressão dos regimes radicais islâmicos. As avós da Plaza de Mayo. As putas do baixo meretrício. As vítimas de estupro e violência doméstica.
P - Quais são suas heroínas na ficção?
A Maga, Úrsula Iguarán, Fermina Daza, Teresa e Sabina, Diadorim.
P - Qual é o seu pintor favorito?
Dalí, Van Gogh, Da Vinci, Goya. Provavelmente faltam alguns.
P - E o seu músico favorito?
Miles, Coltrane, Monk, Dylan, Henri Salvador, Caetano, Renato Russo. Em outra ocasião, provavelmente faria uma lista diferente.
P - Qual a qualidade que você mais admira em um homem?
Altruísmo.
E numa mulher?
Altruísmo.
P - Sua virtude favorita?
Sensibilidade.
P - Suas virtudes que você menos aprecia?
Nenhuma. Não são muitas, na verdade.
P - Qual a sua realização de que você mais se orgulha?
Nínive.
P - Sua ocupação favorita?
Ler, viajar, ouvir música, beber vinho, ver o Flamengo jogar e conversar com quem gosto, não necessariamente nessa ordem.
P - Que outra pessoa você gostaria de ter sido?
Hemingway. Mas faria o possível para não estourar os miolos.
P - Qual a sua característica mais marcante?
Insegurança. Timidez. Ansiedade.
P - O que você mais valoriza em seus amigos?
A amizade.
P - Qual o seu principal defeito?
O comodismo.
P - Qual é o pior dos infortúnios?
Morrer com a sensação de que poderia ter feito mais.
P - O que você gostaria de ser?
Um músico, um surfista, um falcão.
P - Qual a sua cor favorita?
Todas, cada uma a seu modo.
P - Qual a sua flor favorita?
Cravo.
P - Qual o seu pássaro favorito?
Os que voam mais alto e mais longe.
P - Que palavra ou expressão você mais utiliza?
Vamos ver.
P - Quais são seus poetas favoritos?
Ferreira Gullar, Bertolt Brecht, Fernando Pessoa. Na verdade encontro mais poesia na prosa que nos versos.
P - Quais são seus nomes favoritos?
Nínive, Marcela, Heloísa, Álamo. Paulo também é um bom nome.
P - O que você mais detesta?
Ignorância e violência dividem o pódio.
P - Que personalidades históricas você mais despreza?
Hitler. Stálin. Pinochet. Nessa ordem.
P - Que personalidades contemporâneas você mais despreza?
Vladimir Putin, Bashar Al-Assad, o bando de líderes imbecis do Estado Islâmico, o bando de políticos de extrema direita da Europa, o bando de pastores vigaristas das igrejas evangélicas e, provavelmente pelos próximos quatro anos, Donald Trump.
P - Que eventos na história militar você mais admira?
A história militar me envergonha, me revolta e me entedia.
P - Que dom natural você gostaria de possuir?
Voar.
P - Como você gostaria de morrer?
Não gostaria.
P - O que você mais detesta na sua aparência?
O cabelo.
P - Qual o seu lema?
A vida vale a pena.
quinta-feira, 31 de março de 2016
Aventura sensorial
Voltar a Hemingway é como voltar a um lugar onde fomos muito felizes. Conhecemos cada palmo do terreno: os diálogos soam familiares, aconchegantes, a narrativa provoca um prazer mais sensorial do que intelectual. É como se estivéssemos ali ao lado dos personagens, acompanhando seus conflitos silenciosos, seus ditos por não ditos, seus imensos icebergs submersos.
Do Outro do Lado do Rio, Entre as Árvores não é um dos melhores livros do Papa, e sofreu muitas críticas quando foi lançado. Azar dos críticos. Reler as suas páginas é ainda mais prazeroso do que desbravá-las pela primeira vez. Saboreando os pratos suculentos, as bebidas que confortam os corações machucados, as paisagens arrebatadoras, hoje mais próximas de nós por conta da maturidade.
Creio que devemos nos conceder esse tipo de prazer de vez em quando: voltar a certos livros como se volta a certas cidades.
"Meu pai e minha mãe viveram sob uma guerra. Meu avô e minha avó também. E também meu bisavô e minha bisavó. E assim por diante. Mas eu não. Sempre se diz que o esporte europeu por excelência é o futebol, mas isso é mentira. O esporte europeu por excelência é a guerra. Durante mil anos, na Europa, não fizemos outra coisa além de matar uns aos outros. E aí chego eu, e sou o primeiro, a primeira geração de europeus que não vive sob guerra. Não consigo acreditar. Há quem diga que tudo isso já passou, que uma guerra é agora impossível de acontecer entre nós, mas eu não acredito nisso... Veja este lugar aqui... eram pessoas como você e eu, morrendo aos milhares, feito cães, da forma mais asquerosa e mais indigna possível."
terça-feira, 3 de novembro de 2015
A bruma do passado
Em Um Romance Russo, o escritor francês Emmanuel Carrére empreende uma busca obstinada pela memória perdida do avô. Uma procura que mexe não apenas com seus sentimentos, mas também com os de sua mãe, que prefere o silêncio mas deixa escapar um sofrido pesar ao falar do pai, desaparecido aos 45 anos depois de atuar como colaboracionista dos nazistas durante a invasão alemã na França na Segunda Guerra Mundial. Um traidor, portanto, mas muito mais complexo do que isso. Esse é só um dos pilares dramáticos que sustentam a narrativa autobiográfica de Carrére, mas foi provavelmente o que mais me comoveu. Ele vai atrás de correspondências e depoimentos que ajudam a elucidar em parte quem foi o avô, de origem russa e mente confusa, que se auto-depreciava nas cartas e viveu e criou os filhos de maneira instável, sempre com problemas financeiros e uma depressão crônica.
quinta-feira, 8 de outubro de 2015
Cicatrizes
À medida que envelhecemos, cicatrizes e outras marcas do tempo se colam ao nosso corpo. São restos de feridas profundas, tatuagens ou vestígios de antigas enfermidades que, aliados a rugas e cabelos brancos, dão forma a quem somos quando atingimos uma certa maturidade. Nosso rosto e principalmente nosso corpo mudam, deformando-se ou alcançando uma inesperada harmonia. De certa forma, somos como rochas desfiguradas pela erosão dos ventos e do sol, ou como rios assoreados pela falta de vegetação nas margens. Eu tenho cá minhas marcas do tempo: uma cicatriz quase imperceptível de uma queda de mobilete, que prendeu meu pé esquerdo ao pedal e ao motor fervendo; a marca de uma cirurgia nas costas para a retirada de um cisto no sacro-ilíaco; uma pequena deformação na pálpebra direita, causada por um terçol mal-curado; a coluna rígida que me tira a mobilidade, consequência mais evidente de uma doença reumática; e por fim um sulco entre as sobrancelhas fruto de uma herpes-zóster. Esses sinais - aliados aos cabelos grisalhos, às pequenas bolsas sob os olhos e aos quilos a mais - contam a minha história exterior.
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
Fronteiras
Houve um tempo em que não existiam fronteiras. Os homens vagavam por terrenos sem dono em busca de comida, água e abrigo. O mundo não pertencia a ninguém. Era um campo vasto e inóspito a ser desbravado e conquistado. Depois erigiram muralhas, criaram bandeiras, consolidaram idiomas e guerrearam (como ainda guerreiam) por territórios. No século 21, depois do tal fim da história apregoado por Francis Fukuyama, a guerra deveria soar anacrônica, uma enfermidade típica de tempos passados, como a peste negra ou a gripe espanhola. Mas, assim como o cólera ou a malária, ela insiste em se fazer presente. Para além das mortes de civis atingidos em suas casas, o que se vê é a fuga em desespero, a migração em massa através de desertos e oceanos, onde o caminho é também uma armadilha letal.
quarta-feira, 8 de abril de 2015
Variações em torno de uma taça
Amo os vinhos com um ardor silencioso. Amo as cores, o sabor, os aromas que evocam tempos remotos, como a imagem de meu pai bebendo seus vinhos portugueses baratos em canecas simples, enquanto assistia à tevê. Amo meu ritual particular de escolhê-los, comprá-los, guardá-los e por fim bebê-los, de preferência ao lado das mulheres que amo ou de amigos que admiro.
Daí me entristecer com o esnobismo que rodeia esse universo, sobretudo nas altas rodas, nos meios abarrotados de gente com dinheiro de mais e sabedoria de menos; a falsa reverência com que os vendedores me tratam quando retiro uma garrafa mais cara da prateleira, mesmo que não vá levá-la (e quase sempre não levo); as bobagens que leio quando quero saber mais sobre um vinho.
Por mais pernóstica que possa soar essa afirmação, me
aproximo dos franceses na forma como encaram o vinho, com sua simplicidade
espartana. Filmes como Amor, de Michael Haneke, e Azul é a Cor Mais Quente, de Abdellatif
Kechiche, mostram a relação dos franceses com o vinho. Uma relação de
cumplicidade silenciosa, prosaica como beber um copo de água. O vinho é aquilo:
um companheiro da refeição e de eventuais conversas que nascem desse momento.
Ouço Henri Salvador cantar Dans Mon Ile enquanto termino de beber um ótimo tinto do Douro, que acompanhou um delicioso ensopado de carne com macarrão. Prato que me fez lembrar de um boef bourguignon simples e gostoso que comi um dia no Quartier Latin. Não esqueço dessa tarde, do vinho simples que bebemos em um copo também simples, da sisudez do proprietário, um homem velho e calado, que nos serviu com frieza, mas de forma impecável, e no final me deu uma dica preciosa, me indicando como chegar à livraria Shakespeare & Co, que tanto havia procurado sem sucesso pelas ruelas do bairro.
Amo os vinhos com um ardor silencioso. De quem sabe da passagem do tempo, e de como ela age sobre nossos corpos frágeis e profundamente vulneráveis. Amo os vinhos porque eles alimentam minha alma, muitas vezes tão maltratada, outras tão exausta. E por saber que um dia a taça vai permanecer vazia, sem alguém para enchê-la.
Ouço Henri Salvador cantar Dans Mon Ile enquanto termino de beber um ótimo tinto do Douro, que acompanhou um delicioso ensopado de carne com macarrão. Prato que me fez lembrar de um boef bourguignon simples e gostoso que comi um dia no Quartier Latin. Não esqueço dessa tarde, do vinho simples que bebemos em um copo também simples, da sisudez do proprietário, um homem velho e calado, que nos serviu com frieza, mas de forma impecável, e no final me deu uma dica preciosa, me indicando como chegar à livraria Shakespeare & Co, que tanto havia procurado sem sucesso pelas ruelas do bairro.
Amo os vinhos com um ardor silencioso. De quem sabe da passagem do tempo, e de como ela age sobre nossos corpos frágeis e profundamente vulneráveis. Amo os vinhos porque eles alimentam minha alma, muitas vezes tão maltratada, outras tão exausta. E por saber que um dia a taça vai permanecer vazia, sem alguém para enchê-la.
quinta-feira, 29 de maio de 2014
Compositor de destinos
Em uma das cenas finais de Cinema Paradiso, que revi recentemente ao lado de minha filha, o personagem principal, Totó, retorna à cidadezinha natal na Sicília depois de 30 anos. Está lá para o enterro de um velho amigo, o projecionista Alfredo, que inoculou nele o amor pelo cinema. É um reencontro comovente com um passado no qual Totó foi muito feliz, mas que julgava sepultado. Após rever as filmagens antigas de um grande amor perdido, ele diz à mãe: “Sempre tive medo de voltar. Agora, após tantos anos, achei que estava mais forte, que tinha esquecido muita coisa. No entanto, está tudo diante de mim, como se eu tivesse ficado sempre aqui”. Enquanto minhas lágrimas escorriam, em meio aos beijos proibidos que se sucediam ao final da pequena obra-prima de Giuseppe Tornatore, me dei conta da capacidade que a memória tem de conservar a nossa essência, mesmo com a erosão causada pelas dores e intempéries de décadas etéreas e fugidias.
Assistir novamente a Cinema Paradiso depois de tanto tempo fez o meu próprio passado emergir, como se visitasse a casa onde morei na infância ou viajasse num Fusca para a cidadezinha onde minha mãe nasceu. Lembrei de momentos bons com meus pais e irmãos, do início complicado da adolescência, das primeiras namoradas (onde estarão?) e dos amigos que até hoje estão firmes e fortes ao meu lado. Lembrei das minhas aspirações literárias, dos poemas insossos que considerava sublimes, dos escritores, músicos e cineastas que contribuíram para a minha formação. Enfim, fui invadido por essa massa espessa da qual somos feitos e que nos impulsiona, junto com nossos sonhos cada vez mais escassos, rumo ao epílogo. Vinte, trinta, quarenta anos são na verdade pouco mais do que horas, e de tempos em tempos, quando acionamos algum gatilho na memória, eles voltam a nos assombrar.
É mais ou menos o que imagina o velho Eguchi em A Casa das Belas Adormecidas, de Yasunari Kawabata, que estou lendo agora: “Pensando melhor sobre o assunto, mesmo que se falasse de passado muito distante, talvez, no ser humano, memória e reminiscências não pudessem ser definidas como próximas ou distantes unicamente por ser sua data antiga ou recente. Pode acontecer que, mais do que o dia de ontem, os acontecimentos da infância, sessenta anos atrás, tenham ficado guardados na memória e fossem recordados de uma forma mais nítida e mais viva. Isso não acontece com mais frequência na velhice? Além disso, não haveria casos em que os acontecimentos da infância contribuiriam para formar o caráter e dar direcionamento à vida de uma pessoa?".
Outro dia, uma amiga escreveu sobre o sentimento de inadequação que teve ao assistir recentemente a um show da Blitz, banda que fez um sucesso avassalador no início dos anos 80, mas que hoje sobrevive do saudosismo que esse período ainda provoca em muita gente. Ela não se reconhecia no plateia ao redor, formada em sua maioria por pessoas com mais de 40 anos. E concluiu: “O tempo passa, mas você não passa junto com ele. O seu corpo já tem 45 anos, mas você tem certeza que ainda não passou dos 30. Não é nenhum tipo de síndrome, nem é nenhuma não-aceitação da idade. É só uma sensação ruim de não estar em ‘casa’. Deu vontade de sair correndo dali, entrar no Circo Relâmpago e abraçar minha gente”. Como ela, eu também estava lá no Circo Relâmpago. Um garoto de 14 anos, que andava tranquilo pelas ruas da Pituba e idolatrava aquela gente bronzeada mostrando seu valor nos palcos, como hoje minha filha idolatra Demi Lovato ou os rapazes de um tal One Direction.
quarta-feira, 30 de abril de 2014
“Na maturidade da vida, você espera um certo descanso, não
é? Você acha que merece isso. Eu, pelo menos, achava. Mas aí você começa a
entender que premiar a virtude não compete à vida. Também, quando você é jovem,
acha que pode prever as prováveis dores e tristezas que a velhice poderá
trazer. Você imagina a si mesmo solitário, divorciado, viúvo, imagina os filhos
crescendo e indo embora, os amigos morrendo. Você imagina a perda de status, a
perda do desejo – e de ser desejado. Você pode até pensar na sua própria morte,
que, por mais que esteja acompanhado, só poderá enfrentar sozinho. Mas tudo
isso é olhando à frente. O que você não consegue fazer é olhar à frente e
depois imaginar a si mesmo olhando para trás daquele ponto no futuro.
Aprendendo as novas emoções que o tempo traz. Descobrindo, por exemplo, que à
medida que as testemunhas da sua vida vão diminuindo, existe menos confirmação,
e portanto menos certeza, a respeito do que você é ou foi. Mesmo que você tenha
registrado tudo assiduamente – em palavras, sons, imagens – você pode descobrir
que se dedicou à forma errada de registro.”
Julian Barnes, em O Sentido de um Fim.
quinta-feira, 17 de abril de 2014
Cem anos de fascínio
Macondo está órfã. José Arcádio, Úrsula, Rebeca, Remédios,
Melquíades e todos os Aurelianos Buendía, incluindo aquele primeiro, que o pai
levou para conhecer o gelo numa tarde remota, também estão órfãos. Florentino
Ariza e Fermina Daza estão órfãos. O senhor muito velho com umas asas enormes
está órfão, assim como Estevão, o afogado mais bonito do mundo. Assim como a
moça que deixou um rastro de sangue na neve antes de morrer. Ou como Erendira e
sua avó desalmada, ou como o general em seu labirinto, o patriarca em seu
outono, o coronel a quem ninguém escreve. Assim como o sábio triste que desejou
uma noite de amor com uma adolescente virgem no dia dos seus 90 anos. Assim
como eu.
Gabo nos deixou a todos órfãos porque foi um pai que nos
mostrou como ninguém o caminho a ser seguido. Um pai que aprendemos a amar à
medida que o conhecíamos, à medida que desbravávamos lentamente (ou melhor: avidamente)
o seu infinito particular. O que dizer do fascínio que senti aos 15 anos,
quando tomei um livro seu pelas mãos e me embrenhei nos
amores contrariados de O Amor nos Tempos do Cólera? E o que dizer quando, logo
em seguida, ainda impregnado pelo fascínio daquela história eterna, ele me
levou pela mão e me mostrou o universo de desencanto e fantasia em estado bruto
que encontrei em Cem Anos de Solidão? Quantos alumbramentos, quantas
descobertas, quanto delírio silencioso.
Li muitos livros seus ao longo dos meus primeiros vinte anos.
Depois, por já ter lido quase tudo, demorei a voltar a ele. Não importa. Seu
lugar está garantido aqui, no monstro que se debate no lado esquerdo do meu
peito. Há duas semanas, reli Memória de Minhas Putas Tristes, seu pequeno, singelo e derradeiro romance. E senti uma pontinha daquele sentimento avassalador
que seus romances provocavam no jovem que fui. No homem que sou. Era um
velhinho querido, amado, como são os velhos por quem devotamos doses maciças de
afeto. Fique em paz, Gabo. Meu querido Gabo. Nós, que pertencemos às estirpes
condenadas a cem anos de fascínio, teremos muitas outras oportunidades sobre a
Terra de reencontrar você.
terça-feira, 1 de abril de 2014
Depois do pesadelo
Para quem nasceu em 1970, as recordações mais nítidas da ditadura militar, iniciada há exatos 50 anos, se concentram no seu fim. Sou testemunha dos estertores da barbárie institucionalizada, que foi embora mais ou menos como começou: meio como farsa e como prenúncio de tempos difíceis. Volto aos meus 14 anos, numa manhã de 1984, e vejo meu pai entrando no quarto em que eu e meus irmãos dormíamos, o rosto contrariado e um jornal nas mãos, que jogou no meio das nossas camas, dizendo: “Diretas já era”. Começávamos mal, algo que se estendeu por muito tempo com consequências desastrosas.
Um ano antes, creio, escrevi uma redação para o colégio intitulada “Uma medalha para o presidente”, que de forma meio irônica enaltecia a capacidade do general Figueiredo em conduzir o país à Abertura. Lembro que a redação terminava de maneira patética com a frase “Ok, Figueiredo, você venceu”, obviamente inspirada na canção da Blitz que era sucesso naquele tempo: “Ok, você venceu, batata frita”. Minha mãe adorou a redação e saiu mostrando a todos os parentes que iam lá em casa, me deixando ainda mais ensimesmado. Fui alçado às incertezas da adolescência nesse ambiente de fim de festa, depois de passar as tardes da infância vendo filmes e seriados importados e notícias distantes sobre o governo Geisel. Lá em casa não havia milagre econômico. Meus pais batalhavam em seus trabalhos e nós crescíamos de certa forma alheios aos anos de chumbo, protegidos por uma redoma de afeto.
A ditadura acabou e aos 15 anos eu descortinei o mundo real. Enquanto as histórias de García Márquez me fascinavam, numa espécie de escapismo involuntário, passei a me debruçar (na maioria dos casos sem entender nada) sobre temas como capitalismo, comunismo, totalitarismo, fascismo, imperialismo e outros ismos menos notórios. E, principalmente, me dei conta da devastação que os 21 anos de ditadura provocaram. Lembro do sentimento de asco que o livro-relatório Brasil: Nunca Mais provocou em mim, do horror à tortura como método sistemático de trabalho, daquelas coisas horríveis feitas com insetos, choques elétricos e paus-de-arara.
Com Feliz Ano Velho, conheci, a partir da tragédia individual de Marcelo Paiva, a tragédia coletiva que levou a reboque o seu pai, Rubens, um caso que até hoje me dilacera. Já Feliz Ano Novo me mostrou que essa mesma tragédia coletiva podia produzir boa literatura. Passei a ouvir Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso. A usar camisas com estampa de Che Guevara. A escrever poemas engajados horrorosos. A descobrir ecos do nosso sofrimento no Chile, na Argentina, no Uruguai. Era apenas um filho da revolução, um tímido e sonhador integrante da geração Coca-Cola, menino demais para tomar atitudes que se assemelhassem a uma rebelião juvenil. Cheguei tarde às dores do mundo. E, com os hormônios em ebulição e a vida inteira pela frente, só queria desfrutar dos prazeres e tentações que ele me oferecia.
segunda-feira, 3 de março de 2014
“Penso nos gestos esquecidos, nos muitos salamaleques e
palavras dos nossos avós, pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um atrás
do outro da árvore do tempo. Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa e, para
brincar, acendi-a e andei com ela pelo corredor. O ar causado pelo movimento ia
apagá-la e, então, vi levantar-se sozinha a minha mão esquerda, abrigando e
protegendo a chama como uma cortina viva que afastava o ar. Enquanto o fogo se
endireitava, outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto de todos nós
durante milhares de anos, durante a Idade do Fogo, até que a trocaram pela luz
elétrica. (...) Como as palavras perdidas da infância, escutadas pela última
vez na boca dos velhos que iam morrendo. (...) Como as músicas do momento, as
valsas dos anos vinte, as polcas que enterneciam nossos avós. Penso nesses
objetos, nessas caixas, nesses utensílios que aparecem às vezes em galpões, em
cozinhas ou esconderijos, e cujo uso já ninguém é capaz de explicar. Vaidade de
crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda
as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo – acender uma vela, andar com
ela pelo corredor –, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que
ninguém sabe se somos.”
Julio Cortázar, em O Jogo da Amarelinha
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
Terceira classe
Dos 17 aos 28 anos, viajei muito de ônibus. Era a maneira que encontrava para desafiar distâncias enormes, como o trecho da BR-116 que liga Salvador a São Paulo e que percorri inúmeras vezes quando vivi na capital paulista. Ou mesmo para conhecer outros cantos do Brasil, como Fortaleza, Porto Alegre, Brasília ou Belo Horizonte. Avião nem pensar. Como hoje, pertencia à classe média. A mesma classe média beneficiada pelo bolsa-avião involuntário que nos permitiu lotar aeroportos e atrasar voos, para desespero dos quatrocentões do ar. Agora também posso dar meu rolezinho nos saguões de embarque internacional, pagando em não tão suaves prestações a minha viagem.
A inclusão aérea, proporcionada pela inclusão social dos últimos 15 anos, deveria ser vista sob qualquer aspecto como algo positivo. Na Europa, vemos pessoas de várias classes, cores e crenças reunidas pacificamente nos salões de embarque, com voos saindo praticamente sem atraso. Assim como vemos por lá essas mesmas pessoas no metrô e nas ruas. Mas parece que não queremos ser como a Europa. Queremos manter o segregacionismo social dos velhos tempos, para evitar que aeroportos virem rodoviárias e exponham a chaga da nossa falta de educação, do nosso atraso, da postura jeca dos nossos meio-pobres. Queremos evitar pessoas como o advogado fotografado de bermuda e camiseta em um aeroporto do Rio por uma professora, ela também - provavelmente - de classe média como ele, mas que imaginava estar tirando sarro de um alien social perdido num lugar que não lhe cabe.
A inclusão aérea, proporcionada pela inclusão social dos últimos 15 anos, deveria ser vista sob qualquer aspecto como algo positivo. Na Europa, vemos pessoas de várias classes, cores e crenças reunidas pacificamente nos salões de embarque, com voos saindo praticamente sem atraso. Assim como vemos por lá essas mesmas pessoas no metrô e nas ruas. Mas parece que não queremos ser como a Europa. Queremos manter o segregacionismo social dos velhos tempos, para evitar que aeroportos virem rodoviárias e exponham a chaga da nossa falta de educação, do nosso atraso, da postura jeca dos nossos meio-pobres. Queremos evitar pessoas como o advogado fotografado de bermuda e camiseta em um aeroporto do Rio por uma professora, ela também - provavelmente - de classe média como ele, mas que imaginava estar tirando sarro de um alien social perdido num lugar que não lhe cabe.
Como consequência, estamos criando uma nova espécie de apartheid, gestando um ovo de serpente que pode ter consequências imprevisíveis. Cada vez mais nos odiamos, algo que pode ser mensurado facilmente nas brigas de trânsito e de torcida, nos espancamentos de negros e gays, na proliferação de quadrilhas da fé que perseguem religiões africanas. Tudo isso observado por um Estado ausente, que deixa os aeroportos lotarem, os imbecis se matarem e os inocentes se ferrarem. Não evoluímos como sociedade. Continuamos primitivos e mal-acompanhados por nações que se desenvolvem a qualquer custo, sem políticas de bem-estar social ou ambientais, como Rússia, China e Índia. É isso que queremos? Um ódio desmedido e sem sentido? No Brasil, ao contrário do que disse Sartre, o inferno somos nós.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
Uma foto em preto e branco
"Alguém
clamando por socorro
A
2000 km de distância
É
tão longe
É
como aquela velha foto
Esquecida
amarelada
De
teus pais andando à beira da estrada
Aquele
mato aquela cachoeira
As
crianças nuas
É
tão longe
É
como aquele tempo em que
A
bondade tinha sua recompensa
Uma
foto em preto e branco
De
um mundo tão remoto
Não
dá mais para lembrar
Aquela
juventude.
Um
bebê roubado sem carinho
Sem
mãe sem leite
É
tão longe
É
como aqueles dias nos
Nossos
corações
Em
que antes de tudo
Imperava
a felicidade.
O
mato cresce revolto
Desafiando
os céus."
Esse
poeminha foi escrito no dia 10 de fevereiro de 1991, aniversário de minha mãe,
durante uma viagem a Recife, por um rapaz que acabara de completar 21 anos e
dava vazão a uma inevitável propensão à nostalgia, algo inusitado para alguém
tão jovem. Talvez fosse um recado ao homem de 44 anos, fios brancos em profusão
dominando paulatinamente o cabelo e a barba, que agora bebe os últimos goles de
um vinho espanhol no aconchego de sua casa. Difícil crer que o “tão longe” a
que ele se refere no poema é um intervalo de pouco mais de dois anos, quase um
sopro de horas para quem já atravessou tantas outras, muitas delas
desperdiçadas. Há um idealismo enviesado, ou ao menos um esboço de um tempo
feliz que curiosamente pertence ao passado, e não ao futuro, como se ele de
certa forma já enxergasse o outrora, e não o porvir.
Mas
talvez o rapaz de 21 anos já antevisse naquela época a incômoda capacidade do
tempo de se converter em cinzas. Provavelmente sabia que o seu poema ficaria
esquecido num armário até ser lembrado por acaso pelo seu autor, ou pela pessoa em que o seu autor se transformou, eu, tão diferente e ao mesmo tempo tão íntimo
dele, como um irmão mais velho ou um velho amigo. Lembro que ficava intrigado quando
ouvia minha mãe relembrar da sua infância e arrematar com um “parece que foi
ontem”. Para mim, a sua aurora tinha a distância de uma eternidade, se é que
podemos medir dessa forma o tempo ao qual não pertencemos. Mas a minha aurora é
também medida em eternidades, embora alguns fatos permaneçam vívidos como um
tropeção.
Ouvi
há pouco um disco lançado em 1980, quando eu tinha 10 anos, e ele me trouxe
reminiscências vívidas de casas, ruas, pessoas, casos prosaicos, sentimentos confusos,
saudades avassaladoras e, principalmente, a sensação de que a memória é uma
companheira de jornada muitas vezes cruel, mas da qual não conseguimos – e provavelmente
não queremos – nos livrar. “Olhe bem nos meus olhos. Olhe bem pra você. O fato
é que a gente perdeu toda aquela magia. A porta dos meus 15 anos não tem mais
segredo. E velha, tão velha, ficou nossa fotografia. A quem é que a gente engana
com a nossa loucura. Decerto a gente perdeu a noção do limite”, cantava Oswaldo
Montenegro em Aquela Coisa Toda, o autor do disco que eu ouvia ainda agora. Pergunto
a mim mesmo onde foram parar meus 15 anos, meus 18 anos, meus 21 anos sem portas
ou segredos, abarrotados de poemas, viagens e amores que pareciam imortais. Estão
aqui, em algum canto obscuro, ajudando a sustentar a essência do que sou, um
emaranhado de lembranças que me impelem inevitavelmente para o futuro.
domingo, 16 de fevereiro de 2014
Antes do fim
Não por acaso, o que mais se vê em Nebraska, filme de Alexander
Payne, são vidas desperdiçadas. Vidas escorrendo numa sala em frente à tevê ou
vendo carros passar. Vidas esperando ansiosamente por um nome na sepultura. Daí
ser tão comovente a tentativa vã do seu protagonista de imprimir, já nos
estertores da vida, um esboço de sentido em uma trajetória que até aquele
momento foi pouco mais do que um borrão, um quadro em branco. Prestes a
sucumbir de vez à senilidade, Woody Grant (Bruce Dern) se agarra a uma
propaganda enganosa, um folheto que diz ser ele o ganhador de 1 milhão de
dólares. Para receber o prêmio, precisa ir até Lincoln, no
Nebraska. Uma distância significativa do lugar onde mora, mas nem por isso
capaz de demover um homem determinado. Mais do que ganhar um bom dinheiro, o
que impulsiona Woody é legar algo para depois que for embora, em vez de apenas
sumir da paisagem.
Há algo do Alvin Straight de História Real, o magnífico filme de
David Lynch, em Woody Grant. Ambos são velhos turrões, que se apegam a uma
última cartada oferecida pela vida para se tornarem pela primeira vez
protagonistas da própria história. Lançam-se pelas libertadoras estradas da
América na tentativa de concretizar o seu pequeno naco de sonho e fazer um
acerto de contas final com a família antes que chegue o oblívio. Tanto em Alvin
quanto em Woody, o senso de urgência, de que é preciso viver enquanto há tempo,
chegou tarde demais. E a velhice é território propício à proliferação de
frustrações e arrependimentos altamente nocivos.
Transpondo o drama derradeiro de Woody para o nosso dia a dia,
chegamos a uma conclusão implacável: não temos qualquer controle sobre o nosso
destino, além do fato de que cuidarmos razoavelmente da nossa saúde eleva as
nossas probabilidades. Mas são apenas estatísticas, regras cheias de exceções,
que não levam em conta a brutal insensibilidade do acaso. Intimamente,
projetamos nossa trajetória com princípio, fim e um meio com duração
minimamente generosa. Talvez por isso, procuramos – eu pelo menos – não contar
com a sorte e tratamos de realizar nossos prosaicos sonhos de felicidade fugaz.
Mas é sempre muito menos do que quase todos gostaríamos.
Não sei, algo me diz que não devo contar com o futuro. Ele não é
muito confiável. Basta lembrar de Tomas e Teresa no final de A Insustentável
Leveza do Ser, dirigindo plenamente felizes pela estrada, pouco antes do
acidente fatal. A morte encontrou os dois justamente quando superaram tudo, o
fim abrupto da Primavera de Praga, as dificuldades de uma vida complicada, com
amantes em série, do lado dele, e uma insegurança crônica, do dela. Recordo da
vez em que chorei copiosamente enquanto subiam os créditos do filme numa
madrugada solitária em São Paulo, acossado pela sensação de impotência e vazio
que nos provocam as mortes no auge.
Lembro também de Tony Judt, intelectual brilhante, tomado pela
esclerose lateral amiotrófica aos 60 anos, talvez o melhor momento da sua vida.
Reproduzi aqui no blog o trecho em que ele fala, no
livro O Chalé da Memória, que a maior frustração causada pela doença terminal é
não poder voltar a viajar de trem. “Waterloo nunca mais, paradas no interior
nunca mais, solidão nunca mais”. É muito doloroso. De minha parte, pretendo conhecer os
países possíveis, cultivar os afetos que me são caros e aproveitar os pequenos
tesouros que passam vez ou outra à minha frente. Afinal, um dia também não
poderei mais andar de trem.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
Viagem ao fim da noite
Um pesadelo: eu e meu irmão íamos no banco de trás
de um carro. Estávamos na área externa de um hospital aqui da cidade e, ao
passarmos por uma área gramada, vimos vários caixões enfileirados dos dois
lados da pista. Então meu irmão disse algo como: “Não importa o que se faça, a
gente acaba sempre em silêncio e sozinho”. Aquilo provocou em mim um soluço
imediato, entre o choro e a falta de ar, e meu irmão me abraçou forte, tentando
me consolar. Logo depois, descíamos uma ladeira íngreme à noite, agora com meu
outro irmão no banco do carona conversando amenidades, e do lado de fora eu via
um precipício enorme ao lado da estrada. Continuava chorando e sentindo falta
de ar. Fui lançado para fora do sonho e me vi numa madrugada fria, por conta do
ar condicionado. Senti uma tristeza intensa e uma sensação de confusão mental,
como se não conseguisse entender a cena que acabava de presenciar. Custei a
reencontrar a inconsciência.
Nunca li
Freud, portanto minha interpretação do sonho é a mais rudimentar possível,
embora também exista uma outra leitura plausível, mais pessoal, que não cabe
contar aqui. Na minha analogia onírica, aqueles caixões pertenciam aos mortos
em série que encontrei nos noticiários do dia anterior. O cinegrafista morto
por um morteiro. O jovem morto por um imbecil enciumado numa festa. O pai de
família morto numa briga de trânsito na frente da mulher e do filho bebê. O
rapaz gay morto aos 18 anos depois de ser brutalmente espancado por um grupo.
Parece claro, para mim, que a realidade ao redor vem provocando efeitos nocivos
na minha inconsciência, interferindo nos pacatos devaneios que desenvolvo na
zona abissal todas as noites. Porque não estou diante de uma realidade
qualquer. O pesadelo de verdade está aqui fora, inescapável e opressor.
Não tem
sido fácil acompanhar o crescimento avassalador da violência urbana no Brasil.
E, principalmente, o recrudescimento de uma nova modalidade de fascismo. As
pessoas não estão sendo abatidas apenas por conta de assaltos, sequestros
relâmpagos ou outros tipos de crimes que têm como objetivo tomar o que é do
outro (os quatro mortos listados acima comprovam isso). Em alguns casos, o
objetivo é eliminar o outro, negar a sua existência, como Narcisos broncos que
acham feio o que não é espelho. Caminho assustado por essa terra devastada, oca
de bom senso, atulhada de opiniões rasas, derivativas e sem matizes de parte a
parte. Tenho medo do que me cerca e lamento com soluços os que vergam rumo ao
chão. Sou um pouco como o Barnabu de Céline em Viagem ao Fim da Noite ou o
garoto cigano de Kosinski em O Pássaro Pintado, tentando sobreviver em campo
minado, presenciando um mundo em dissolução, uma nova era dos extremos, o apogeu
da idiotia. E minha viagem particular ao fim da noite de ontem diz muito sobre
esse estado de coisas.
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