quarta-feira, 19 de maio de 2010

Alma deformada


Quando leio nos jornais casos dilacerantes de maldade sem meios-tons, como o da procuradora que adotou uma criança apenas com o intuito de torturá-la, eu me lembro de Cathy Ames. Ou melhor: lembro da descrição que John Steinbeck fez, em A leste do Éden, “da mulher que causou uma agitação dolorosa e desconcertante no seu mundo”. No romance (que considero o melhor do autor norte-americano), Steinbeck estabelece uma analogia entre monstros físicos – pessoas que nascem com anomalias graves no corpo – e monstros mentais ou psíquicos. Estes seriam almas deformadas, despidas do senso moral vigente em sua época, ou talvez de qualquer senso moral vigente em qualquer período da civilização.

“Alguma peça da balança estava com o peso mal calculado, alguma engrenagem fora do eixo”. Cathy era assim, e foi assim que ela destruiu a vida de todas as pessoas com quem se relacionou, incluindo aí o marido, Adam Trask, e o filho Cal, que se corroía de angústia por temer ter herdado dela o gene da maldade. É pouco? Pois bem, foi ela a responsável – quando tinha 16 anos – pela morte dos próprios pais, ao forjar um incêndio na casa onde moravam e trancar as fechaduras para que não pudessem escapar. Steinbeck vai mais longe: “Talvez todos tenhamos um lago secreto onde coisas más e feias germinam e se fortalecem. Mas esta cultura é cercada e os germes da maldade sobem até a borda só para cair de novo no lago. Não poderia ocorrer que nos lagos escuros de alguns homens a maldade tivesse força bastante para saltar a cerca e nadar livremente? Não seria esse tipo de homem nosso monstro e não estaríamos ligados a ele em nossa água oculta? Seria absurdo se não entendêssemos tanto os anjos como os demônios, pois fomos nós que os criamos.”

A verdade é que, ao contrário do maniqueísmo bipolar dos filmes de aventura hollywoodianos, mal e bem habitam uma zona cinzenta, matizada, e muitas vezes não se percebe a fronteira que separa um do outro. Já falei aqui no blog sobre essa centelha que todos carregamos na alma e que um dia simplesmente deflagra um furor sem sentido, capaz de varrer tudo ao redor. Em dado momento, enlouquecemos, matamos ou morremos e não existe lógica capaz de desvendar a origem dessa centelha primordial.

Por tudo isso, fico ainda mais intrigado ao me deparar com a maldade cozida em banho maria e sorvida lentamente, como um gozo artificialmente prolongado. A garotinha de dois anos não entrou na vida da procuradora por vontade própria. Não foi abandonada à própria sorte na porta da sua casa ou sequer vendida pelos pais biológicos em troca de moedas ou favores. Não, a procuradora saiu de casa, foi até o orfanato, livrou-se dos entraves burocráticos que habitualmente dificultam a adoção de crianças por pessoas desequilibradas, levou-a para casa e a torturou. Mais um pouco e a garotinha sairia direto para o necrotério. Que engrenagem é responsável por atitudes como essas? Que peso mal calculado é capaz de produzir tamanha aberração? Fico com Steinbeck: monstros já nascem monstros. Mesmo que tenham o rosto angelical de Cathy Ames ou os traços grotescos da procuradora aposentada que atende pelo nome de Vera Lúcia Santana Gomes.

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