sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Um talento forjado em amargura


Carregamos a infância por toda a vida. Suas descobertas, perdas, frustrações e pequenas alegrias são como uma tatuagem invisível da qual nos livramos apenas na morte. Talvez por isso, seja praticamente impossível para uma criança que não recebeu afeto manifestar afeto na idade adulta. Cria-se involuntariamente uma carapaça, um invólucro refratário ao amor e às suas manifestações. A Ausência de afeto fez de Charles Bukowski um homem embebido em amargura. As surras diárias – violentíssimas e sem sentido algum – que recebia do pai, aliadas à incapacidade da mãe de evitá-las, o transformaram num homem permanentemente ferido, que vislumbrou no alcoolismo, nas brigas de bar e no vagar errante por subempregos uma improvável válvula de escape. Seria apenas mais um mendigo anônimo, como tantos que vemos por aí, lançados às ruas, se não contasse com um talento maiúsculo – e uma obstinação vigorosa para fazê-lo chegar aos seus leitores.

Bem, pelo menos foi isso o que depreendi ao assistir Bukowski – Born into This, um excepcional documentário dirigido por John Dullaghan. Nele, fica evidente que o escritor só conseguiu se desvencilhar da própria desdita na velhice, quando – para usar uma imagem de sua autoria – parecia ter enfim deixado voar o pássaro azul que habitava seu peito. A desdita pela qual passou, contudo, foi diretamente responsável pela edificação da sua obra e de uma visão de mundo cética, quase niilista. As centenas de poemas e dezenas de obras em prosa que Bukowski produziu deixam entrever com nitidez a sua infância tenebrosa e o desalento que se seguiu a ela. Isso fica claro num depoimento sobre o processo de criação de Misto Quente, seu melhor romance, no qual se mostra comovido, triste, ensimesmado. Corta a cena e lá está ele na casa onde cresceu, sofreu e apanhou, mostrando o lugar na cozinha onde o pai pendurava o cinto com o qual o espancava. É comovente.

Há muitos outros depoimentos preciosos no filme de Dullaghan. E também cenas antológicas, como uma insólita briga de Bukowski com a mulher (captada por Barbet Schroeder nos intervalos das filmagens de Barfly) ou uma animada leitura pública de seus poemas em São Francisco. Mais: vemos cenas prosaicas, cotidianas, como o escritor dirigindo seu carro até uma lavanderia, bebendo (quase sempre) ou chorando ao ler um poema e lembrar de um amor antigo. Enfim, vemos o homem e o escritor como ele foi, com todas as suas idiossincrasias e contradições, mas também com toda a sua ternura.

Bukowski foi, ao lado de Jack Kerouac, meu grande ídolo de juventude. Deixei de ler seus textos com o passar do tempo, mas lembro nitidamente de algumas passagens, dos diálogos ferinos, da força arrebatadora de Misto Quente, Factótum, Crônica do Amor Louco e muitos outros romances, contos e poemas. Ao vê-lo ali, desnudo, tão perto de mim, senti saudade da minha adolescência, e do clarão que se seguiu à descoberta de uma obra tão sincera e poderosa. Mas também senti uma forte pontada de compaixão, ao perceber que essa obra só existiu porque, numa casa modesta em Los Angeles, nos anos 20, um garoto tímido e sensível era surrado sistematicamente por um sujeito abjeto, sob o olhar complacente de uma mãe ausente.

2 comentários:

karla disse...

Ele também foi um dos meu ídolos de juventude. E depois, gostei ainda mais dele, quando soube da sua ligação com Fante - por quem sou completamente apaixonada.

Beijos,

Paulo Sales disse...

É, ele foi fundamental para Fante não ser esquecido. Também gosto de Fante, principalmente de Pergunte ao pó e Sonhos de Bunker Hill. Vale a pena ver esse filme. Baixei no site filmescomlegenda.net.
beijos