quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Correnteza


Às vezes um livro nos faz companhia por tanto tempo que não lembramos da sua existência. Durante anos ele permanece ali, sorumbático e silencioso como um cão abandonado, até que nos damos conta de que sempre esteve lá, esperando a sua vez. Durante anos, Conversa na Catedral permaneceu na minha estante, grande demais para ser ignorado, e talvez grande demais para ser levado a sério como leitura obrigatória. O título me remetia a uma tertúlia de cunho religioso, ambientada numa igreja e tendo padres ou sacristães como protagonistas. Não tinha me dado conta de que guardava em meu gabinete uma obra máxima de Mario Vargas Llosa. Afinal, essa alcunha me parecia mais apropriada a títulos como A Cidade e os Cães (que tenho aqui em sua primeira tradução, ainda com o título Batismo de Fogo), A Guerra do Fim do Mundo ou quem sabe até Tia Julia e o Escrevinhador, romance pelo qual nutro um grande carinho. Após o Prêmio Nobel concedido ao autor peruano, a curiosidade – aguçada pela leitura de O Paraíso na Outra Esquina – ganhou força quando li, nos jornais, reportagens e análises que apontavam Conversa na Catedral como sua obra-prima. Sim, aquele livro de capa verde publicado pela Arx, que conservava na estante havia pelo menos cinco anos e que nunca me dispusera a encarar.

Antes, li Pantaleão e as Visitadoras, divertido mas esquecível, desses romances que, como casos fortuitos, passam por nossa vida sem causar avalanches no nosso espírito. Então, num final de noite, tirei o calhamaço de quase 800 páginas da estante, sentei onde estou agora, e comecei a saboreá-lo. A sedução, devo confessar, foi instantânea. Em pouco mais de 40 páginas, me dei conta de que tinha sido contaminado pelo delírio silencioso. Fui me deixando levar pela vida de Santiago Zavala, o Zavalita, por suas contradições, por seus remorsos ambíguos, pela tentativa que fazia de compreender o próprio fracasso e o fracasso do seu país – no caso, o Peru dos anos 50. Avançando um pouco mais, ficou claro que Vargas Llosa prestava tributo a William Faulkner: seus personagens e diálogos avançavam e retrocediam anos e décadas em instantes, separados apenas por um parágrafo ou nem isso. Iam e vinham, como um bate-papo num boteco, a catedral que dá nome ao livro. Nada de elucubrações eclesiásticas, portanto.

Aos poucos, foram surgindo outros personagens: Ambrósio, Amália, Cayo Bermúdez, Don Fermín, Ludovico, Carlitos, Chispas, Teté, Hortênsia, Queta. Gente comum, como eu ou você, que em dado momento se via arrebatada pela história de um país dominado por militares sem ideais, empresários sem dignidade e arrivistas sem escrúpulos. Um país separado por uma correnteza sem rumo. Numa margem, o presidente Odría, os apristas, comunistas e congêneres. Na outra, uma população sem horizonte, capaz de se agarrar ao cipó mais próximo para não submergir no rio do anonimato. Se por um lado é impiedoso com o seu país, por outro Vargas Llosa refaz o percurso de todos esses párias com um afeto que comove. São tragédias que se sucedem sem redenção à vista, amenizadas por ligeiros lapsos de felicidade fugidia, mas inevitavelmente fadadas ao desenlace trágico. Mais do que um romance político, Conversa na Catedral é um romance de formação – no caso, a de Santiago, que rejeita o dinheiro e o afeto do pai para viver miseravelmente, primeiro como militante comunista e mais tarde como jornalista sem ideais, movido pela inércia, destroçado pela própria inteligência. É um dos personagens mais palpáveis que já conheci nessas andanças por romances e contos vida afora. Vi muito de mim em Santiago, assim como vi muito de pessoas que conheço ou que imagino existirem nos demais personagens.

À medida que fui avançando, Conversa na Catedral me conquistou em definitivo, e em pouco tempo não conseguia atravessar as noites sem passar por ele, ler nem que fossem umas cinco ou seis páginas, relembrar em que momento da trama eu me encontrava. Pesado, exigiu de mim um esforço físico ao qual não teria me dedicado se a recompensa não fosse tão proveitosa. Nos últimos dias, me vi perdendo noites e encontrando posições menos desconfortáveis para avançar por aquele matagal de palavras. Ia dormir entre angustiado e saciado, após 40, 70 ou 100 páginas consumidas. No domingo à noite, após mais umas 130 páginas, finalmente cheguei ao final: “... e depois aqui, acolá, e depois, bem, depois morreria, não, menino?”. Um final lancinante, que me deixou como heranças um travo no peito, uma angústia muda e a incômoda sensação de impotência de quem sabe que essa história cheia de som e fúria não leva a lugar nenhum. Em algum momento do livro, todas aquelas pessoas se depararam com a grande história, esse carro velho e desgovernado que nos leva a reboque sem cerimônia, nos mastiga e nos reduz a nada. Enquanto um novo romance não aparece para flertar comigo, elas permanecem aqui, como espectros desgarrados, povoando meus pensamentos. E eu me sinto invadido por uma ternura imensa.

2 comentários:

DAVID FRANCO disse...

Tenho que ler esse livro. 800 páginas aí vou eu.

Belo texto, Paulão!

Abraços

Paulo Sales disse...

Se jogue, meu velho. Vale a pena.
Grande abraço e obrigado.