quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Ir embora


Existe um limite de idade para o suicídio? Um ponto de não retorno, no qual o despedir-se voluntariamente da vida não seja mais permitido? Não estou me referindo, claro, a um limite moral, mas a algum tipo de convenção tácita que nos impeça de cometer atitude tão extrema num momento da vida em que não faz mais sentido nos desvencilharmos de tudo que ela nos ofereceu ao longo de tanto tempo. Ou seria justamente o contrário? Nesse sentido, seria absolutamente justo que quem viveu tanto possa se dar ao privilégio de não viver mais, em função das perdas que a velhice traz: doenças graves que se tornam crônicas, depressão eventual, decrepitude física, confusão mental, perda de parentes queridos e por aí vai.

Pensei nisso tudo ao saber que o cineasta Mario Monicelli, de 95 anos, se jogou do quinto andar do hospital em que estava internado. Ele sofria de câncer na próstata, já em estágio avançado, e certamente teria poucos meses de vida, a maioria deles num estado de sofrimento e prostração insuportáveis. Não julgo, muito menos condeno, a atitude de Monicelli. Sua renúncia a enfrentar estoicamente o fim de uma vida longeva e produtiva é legítima. Apenas tento entender o que passou por sua cabeça no momento do salto para a inconsciência. Até que ponto foi um impulso repentino ou até onde mereceu uma reflexão prévia, um ajuste de contas com o próprio passado e a própria existência? Afinal, jogar-se do alto de um prédio é antes de tudo um ato de coragem. Um gran finale antes de cair o pano, mas sem o alento de poder ouvir os aplausos ou as vaias à nossa performance.

De um jeito ou de outro, seja qual for a sua motivação, o suicídio é invariavelmente fruto do desespero, mesmo quando planejado de maneira metódica, pensado e repensado várias vezes para que nada saia errado (tanto que há formas engenhosas de se matar que vão muito além da queda, do enforcamento ou do tiro na testa). Um ato complexo, em suma, que Camus definiu como a grande questão filosófica do nosso tempo e que foi cometido por Ernest Hemingway, Virginia Woolf, Stefan Zweig e Sylvia Plath, para ficar restrito ao universo literário. Como eles, multidões solitárias de anônimos se lançam todos os dias rumo ao olvido movidos por perdas avassaladoras, sobretudo emocionais, mas também – e essas são as que mais me intrigam – morais ou financeiras.

Voltando a Monicelli, acho que essa estranheza que o seu suicídio causou em mim tem a ver com um preconceito velado – e provavelmente involuntário – contra a velhice. Por que, por exemplo, um Kurt Cobain pode se matar aos 24 anos, ainda jovem, belo e com a estrada aberta à sua frente, e Monicelli, já no quilômetro final da mesma estrada, não pode? Para um, heroísmo, para o outro, covardia? Como se aos velhos, principalmente se doentes, fosse proibido o livre-arbítrio. Monicelli deu uma banana para toda essa baboseira, assim como Richard Farnsworth, o magnífico ator de A História Real, que meteu uma bala na cabeça ao se ver com um câncer terminal aos 80 anos, em 2000. Não sei o que pensar, afinal, sobre tudo isso. Não tenho nem mesmo uma opinião formada sobre o suicídio, seja ele praticado na velhice ou na juventude. Sei apenas que é um enigma, como muitos que dão forma à alma humana, e que por mais que investiguemos, permaneceremos na penumbra. Ir-se embora da vida, enquanto tantos querem permanecer, um ano ou mais que seja, por aqui.

6 comentários:

André Amoedo disse...

Sandor Márai, outro belo escritor, também é um suicida tardio. Deu um tiro na cabeça aos 89. Belo blog, Paulão. Gosto de vir aqui de vez em quando e tirar o atraso, lendo vários posts de uma vez só. Você tá cada vez melhor.

Grande abraço,

André Amoedo

Paulo Sales disse...

Boa lembrança, meu velho. Nunca li Marai, mas já li muito sobre ele - quero conhecê-lo. E muito obrigado pelas visitas e elogios.
Abração.

André Amoedo disse...

Leia "As Brasas". Rapaz, é um livrinho fino, nem fica em pé, mas é simplesmente sensacional. A história inteira se passa em um dia apenas. O dia em que o personagem, já no fim da vida, espera a visita de amigo para um acerto de contas de uma lembrança mal digerida ao longo da vida inteira. A narrativa psicológica é uma das mais ricas que já li, digna dos melhores russos. Leia, que tenho certeza que vai render assunto para um post, mais um que eu adoraria ler. Abs.

Paulo Sales disse...

Já anotei e vou procurar nas livrarias reais e virtuais. Bela dica.
Abs

Nina disse...

Esse é um assunto tão delicado para mim, tenho sentimentos ambíguos. Tenho caso na família, e há pouco mais de um mês um amigo escolheu partir.

Evito refletir sobre suicídio, pois mistura-se à dor das perdas.

Seu texto me tocou muito, e só agora consegui fazer esse (não) comentário.

Bjo

Paulo Sales disse...

É um assunto delicado mesmo, sobretudo quando envolve episódios tão próximos da gente. Mas tento refletir, de qualquer forma, para tentar - inutilmente, claro - entender este mundo.
Um beijo.