domingo, 24 de abril de 2011

Dentro da noite veloz


Acho que foi Gabriel García Márquez quem uma vez disse que um escritor escreve sempre o mesmo livro, não importa quantos títulos publique. Ou seja, uma obra nada mais é do que uma peça num rol de variações em torno do mesmo tema. Um inventário de obsessões que se sucedem infinitamente, por mais que variem os enredos, épocas e personagens. É possível, partindo desse pressuposto, que Gabo tenha passado as últimas três ou quatro décadas reescrevendo Cem Anos de Solidão. Mas acredito que a frase do mestre colombiano não se aplica apenas a escritores - ou pelo menos a escritores na acepção mais restrita do termo: homens e mulheres que escrevem e publicam livros e dedicam quase todas as horas úteis dos seus dias ao ofício de transformar palavras e frases em surtos de delírio silencioso.

De acordo com esses parâmetros, não posso ser considerado um escritor. Nem mesmo um escritor medíocre. Mas acredito que há algo a me aproximar da literatura nas prosaicas reflexões que escrevo aqui no blog. Afinal, como um autor de verdade, passei os últimos dois anos reescrevendo textos que, com raras exceções, abordam invariavelmente os mesmos assuntos. Textos que ultimamente andam mais escassos, como se houvesse esgotado todo o meu estoque de obsessões. O problema é que minhas obsessões não são muitas, e nos últimos meses tenho falado demais sobre coisas de menos. Desde que criei este blog, ele vem reverberando o que sinto necessidade de exprimir: sejam flechadas no calcanhar ou pequenos nós de marinheiro que insistem em permanecer na garganta. Afinal, à maneira de Sylvia Plath, também sou habitado por gritos. É como se retirasse fardos do ombro e os colocasse na tela, na forma de palavras. O chato é que esses fardos possuem muita semelhança entre si, e há, obviamente, um limite de palavras para descrevê-los.

De que adianta repetir os mesmos argumentos, revelar os mesmos temores, manifestar as mesmas desilusões, num leitmotiv prolixo e enfadonho? Como compreender o mundo se quanto mais escrevo, menos racional ele se mostra para mim? Mais do que cansar os meus poucos leitores, temo cansar a mim mesmo com discursos tolos, que apenas expõem a ferida, mas não oferecem o tratamento para que ela cicatrize. Bem, adianto que não vou deixar de escrever, abandonar o blog à míngua. Mas existem momentos em que não encontro forças para falar de novo sobre o que considero injusto, absurdo, incompreensível ou mesmo maravilhoso. Certas coisas me calam, como aquele massacre em Realengo. O que teria a acrescentar, como poderia conferir ordem a um caos tão avassalador?

Certa vez, numa entrevista, o escritor angolano José Eduardo Agualusa me disse que, segundo um preceito budista, o mundo evolui em forma de espiral: você recua, mas vai subindo sempre. Talvez eu esteja vivendo um período de recuo, um pequeno momento de recolhimento antes de voltar ao front. Não sei, tudo isso me faz lembrar aquelas conversas para boi dormir do Paulo Coelho, mas quem sabe não existe algum sentido nessa baboseira toda? Afinal, por que outro motivo estaria aqui, faltando vinte minutos para as três da manhã, escrevendo este texto enquanto Dexter Gordon sola sem freios no aparelho de som?

Em Cartas a um Jovem Poeta, Rilke aconselhou seu discípulo a investigar nos "recantos mais profundos da alma" qual o motivo que o mandava criar versos. E pediu que confessasse a si mesmo: "Morreria, se lhe fosse vedado escrever?". Não lembro agora qual foi a resposta do jovem poeta, se é que houve. No meu caso, talvez não morresse de imediato. Mas certamente morreria aos poucos, bem devagar, agonizando de sede de palavras. Daí ser tão importante estar aqui, vivo, ouvindo um latido na rua vazia e me lançando dentro da noite veloz.

8 comentários:

karla disse...

Escrever é maravilhoso.........é onde podemos praticar da melhor forma a nossa imaginação.....mesmo que seja só de brincadeira, sempre existe sentido. Beijo,

Ia esquecendo.... e tudo que você escreve é muito bom!!

Paulo Sales disse...

Oi, Karla
Para mim é uma necessidade. E também uma forma de compensar a dificuldade (que não é pouca) de me expressar falando.
Ter você como leitora também é muito bom. Obrigado.
Um beijo.

Clara Gurgel disse...

Respire, recicle, retorne...mas não pare! Parabéns pelo blog! Virei leitora assídua.

Paulo Sales disse...

Obrigado, Clara.
Depois de um comentário como esse, tenho mesmo é que continuar.
Beijos

Socorro disse...

Que susto!

Paulo Sales disse...

Susto, Socorrinho? Por que?
bjs

Nina disse...

Paulo, gosto tanto dos seus textos! Gosto dos que me surpreendem e daqueles, como este, que dizem melhor do que eu o que também sinto.

Beijo

Paulo Sales disse...

Obrigado, Nina. Mesmo. Às vezes canso de falar sempre a mesma coisa, de repetir sempre a mesma cantilena monótona. Mas a verdade é que preciso falar, preciso repetir. E quando leio um comentário como o seu, eu vejo que tudo isso vale a pena.
Um beijo