segunda-feira, 16 de maio de 2011

Gente como a gente


O que mais comove em Não me Abandone Jamais, filme de Mark Romanek, é saber que a dor manifesta por seus personagens não é uma dor inexistente na vida real, como leva a crer a narrativa. Não, a dor daqueles jovens órfãos é inerente à condição humana. Confinados num mundo à parte e criados com o único objetivo de se tornarem doadores de órgãos, eles apenas expressam o desespero diante do fim, traduzido quase sempre em perplexidade e desalento, que acomete todos nós, seja qual for a nossa origem, classe social ou etnia. Nesse sentido, o longa, baseado no romance homônimo do japonês Kazuo Ishiguro, dialoga diretamente com fábulas visionárias embebidas em ceticismo, como Admirável Mundo Novo, de Huxley, e 1984, de Orwell. Nas três obras é possível, também, identificar um forte viés humanista, que se volta contra a padronização da sociedade e a supressão do indivíduo em prol do coletivo. Mas essa talvez seja a leitura menos importante a ser feita.

Estamos diante de um filme que exalta a beleza e os bons sentimentos acima de todas as coisas. Mesmo que não saiam vitoriosos (e o filme é niilista o bastante para não permitir qualquer possibilidade de redenção), o amor e a amizade se apresentam como valores fundamentais do ser humano, mesmo numa civilização em franco processo de deterioração. Iniciada na infância e sedimentada na juventude, a relação que une Kathy, Tommy e Ruth se mantém sólida mesmo quando eles se separam. Por mais que cada um siga seu caminho, o destino é o mesmo: os três terão seus órgãos retirados sucessivamente até o ponto em que não conseguirão viver sem eles. Isso pode acontecer logo na primeira doação ou se estender por mais três ou quatro cirurgias.

O sentimento de opressão e desconforto é reforçado pelo registro naturalista, mesmo que a trama se aproxime em alguns momentos da ficção científica. Não existem ou existiram, ao que se saiba, escolas como o rígido internato em que as crianças são educadas, mas ele parece estranhamente palpável. Daí não ser um completo disparate imaginar um cenário histórico como o que o filme propõe. No desenrolar do século 20, vimos aberrações ganharem corpo e alcançarem status de ciência, como foi o caso da eugenia, que deu origem às experiências bizarras dos nazistas durante a Segunda Guerra. O ideário nazista – ou mesmo a insânia coletiva promovida por Trujillo, Pol Pot e tantos outros – não é em si absurdo? Mas nem por isso deixou de existir. Não me Abandone Jamais trafega nessa fronteira em que o absurdo caminha lado a lado com nosso delírio cotidiano.

Do meio para o fim, a narrativa se adensa ainda mais, tornando-se quase insuportável de tão espessa. É nesse momento que nos damos conta do quanto ela é uma metáfora perfeita da condição humana. O grito primal jogado aos céus por Tommy é o mesmo grito que quase todos nós guardamos em alguma reentrância da garganta, mas que de alguma maneira deixamos de expelir, seja por fé ou resignação. Seu desespero nasce do fato de ter que partir tão cedo, mas de certa forma todos nós não partimos cedo demais? O que são 60, 80, 110 anos se a alternativa é o oblívio? Li outro dia um texto do jornalista Paulo Nogueira no qual ele cita a seguinte frase de Schopenhauer: “A pior coisa que pode acontecer a alguém é nascer”. Eu penso que a pior coisa que pode acontecer a alguém é morrer, salvo raras exceções. A fala derradeira de Kathy mata a charada: “No final, acho que nossas vidas não são muito diferentes das vidas das pessoas que recebem nossos órgãos”. A metáfora, enfim, se completa. 

2 comentários:

Socorro disse...

Acho que a escola tem que saber lidar com isso, mas os pais correm agora o risco de exagerar na dose de proteção e criar adultos depreparados pra lidar com as dificuldades que vão enfrentar vida afora. Tem que saber a medida exata da proteção. Penso que alguém que se sente amado e cuidado em casa, vai criar mecanismos de proteção eficientes. O problema é se temos tempo para cuidar dos filhos. Na minha opinião, o problema maior.

Paulo Sales disse...

Oi, Socorrinho
Você deve estar se referindo ao post anterior. Sim, o grande problema, como eu escrevi, é a falta de bom senso, que faz com que não se tenha a medida certa na educação dos filhos. E, claro, falta de tempo para ficar com eles é uma questão muito séria.
Beijos.