segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Gangorra


Hoje acordei repentinamente às seis da manhã e um fragmento de reflexão me atingiu como uma pedrada na nuca: vou morrer. Não hoje ou amanhã, mas um dia. E a certeza desse dia, combinada com a mente ainda enevoada pelas horas de sono, me causou um calafrio, como se ao lado da cama em que me aconchegava houvesse um abismo. E que a qualquer momento, quando cochilasse, eu pudesse escorregar pelo lençol. Não é a primeira vez que recebo essa pedrada, tampouco será a última. Desde os 14, 15 anos ela me visita de vez em quando, principalmente nas horas mais adiantadas da madrugada, quando a insônia vence o cansaço. Não devo ser o único.

Imagino que Copérnico deve ter causado uma baita depressão na humanidade quando, em torno de 1500, lançou sua teoria do heliocentrismo, praticamente provando que a Terra não era o centro do universo, e sim apenas mais um planeta que orbita uma estrela pequena e desimportante a que chamamos sol. Essa descoberta jogava por terra (pelo menos para alguns) toda uma concepção de supremacia humana, de que éramos a espécie escolhida, destinada a reinar sobre os demais seres vivos e povoar os demais planetas. É a mesma coisa quando tomamos consciência de que morreremos. O mundo não gira em torno de nós, como imaginávamos quando éramos crianças, em nosso narcisismo pueril. E nossa vida é só um hiato entre duas formas muito semelhantes de silêncio e escuridão. Não foi fácil, e ainda não é, perceber isso, mas uma certa resignação e a plena constatação de nossa desimportância diante do universo facilitam as coisas.

Muito antes de mim, Elias Canetti, brilhante escritor búlgaro, já manifestava sua revolta contra a certeza da extinção: "Enquanto existir a morte, nenhuma beleza será bela e nenhuma bondade, boa". Pesado, não? Discordo dele. Como Caetano, eu digo que a vida é gostosa. Canetti achava que a morte deveria ser extinta, e dizia lutar para que isso acontecesse, infelizmente sem sucesso. Claro que faltava a ele - e a mim também - a crença em um início para além do fim. Um universo paralelo pós-último suspiro, onde pudésssemos nos refestelar em uma atmosfera celestial e rever os que foram antes, além de poder dar uma espiada nos que ficaram. Mas será que mesmo o mais fanático dos beatos não se confrontou em alguma noite sem lua com o horror da própria finitude? Parafraseando Shakespeare e Sartre, há menos mistérios entre o ser e o nada do que supõe a nossa vã filosofia.

Hoje à tarde, assisti ao jogo do Flamengo contra o Vasco. Em vários momentos, a televisão mostrou closes do técnico cruzmaltino, Ricardo Gomes, tenso, ansioso para que seu time vencesse, pensando em alguma estratégia para neutralizar as jogadas ofensivas do rival. Agora, menos de 12 horas depois, Ricardo Gomes está numa UTI de hospital, recém-saído de uma cirurgia de três horas que estancou a hemorragia cerebral causada por um AVC que ele sofreu ainda no campo. Seu estado é considerado gravíssimo. É a gangorra da vida se manifestando da maneira mais nítida, diante de todos nós. E, enquanto isso, cá estou eu, nesta madrugada insone, pensando num mundo sem mim - em noites como esta, silêncios como este, mas sem a minha consciência para assombrá-los.

2 comentários:

Clara Gurgel disse...

Identificação imediata. "Minhas pedradas" começaram mais precocemente por volta dos 7, 8 anos. Hoje, "mais velhinha", controlo melhor esses momentos o que, efetivamente, não me poupa do desfecho final...

Paulo Sales disse...

É, Clara, imaginei que não seria o único. Acho que é como você disse: controlamos os momentos, mas nada que nos poupe do desfecho final.
Um beijo