quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Sentado à beira do caminho



Quando comecei a viajar sozinho, sem meus pais, a classe média ainda não tinha chegado ao paraíso das viagens aéreas. Conheci o Brasil em longas jornadas noite adentro, muitas vezes enfrentando 18, 24, 32 horas em ônibus que pareciam fincar raízes na estrada. Não me arrependo. Muitas imagens se apagaram da memória, mas ainda guardo na retina cenas pungentes: velhos surgindo do nada e indo para lugar algum no meio da noite, neblinas que encobriam pastos e lagoas pouco antes da aurora, casinhas coloridas e já descoloridas pelo tempo e a miséria. Conheço o Brasil, sua vegetação monótona a se estender por quilômetros e estados intermináveis, sua pobreza quase intransponível, sua aridez acolhedora. Suportei o desconforto de ônibus que mesmo no início da viagem já revelavam o mau-cheiro do banheiro e do suor acumulado nas poltronas por viagens e passageiros sem fim. Suportei o tédio das noites insones, das manhãs de calor quase insuportável, dos finais de tarde arrebatadores.

Em janeiro de 1988, pouco antes de completar 18 anos, fiz minha primeira viagem desgarrado de meus pais. Mas ainda era uma viagem adolescente: fui com os pais de um amigo, e com mais outros dois amigos, para Brasília e em seguida para uma pequena cidade chamada Ipameri, ao sul de Goiás. Ficamos numa fazenda linda, com tucanos, pés de goiaba e pessoas cuja bondade era quase uma característica física, como a pele torrada de sol e os traços ligeiramente oblíquos. Foi o primeiro clarão, a chama primordial, e percebi ali que amaria conhecer novas paragens, deixar enfim o ninho e enveredar pelo país. Repito: ainda não era possível, para um adolescente de classe média, ir à Europa ou mesmo à Argentina. Afinal, estávamos na década perdida.

Aos 20 anos, em outubro de 1990, deixei tardiamente a puberdade e me lancei na idade adulta. Depois de 50 horas, completei o percurso que separa Salvador do Rio Grande do Sul. Estava, enfim, longe da zona de conforto e da companhia dos amigos no ônibus. Sozinho como um espantalho na lavoura. Chegava ao sul, então o ponto extremo, a minha Terra do Fogo particular. Essa viagem até hoje representa uma cisão na minha existência, uma fratura no meu percurso linear. Não conheci apenas um estado. Conheci novas formas de convivência, novos sotaques e um novo olhar sobre o que queria para mim mesmo (embora ainda hoje não faça idéia do que queira para mim mesmo). Ao lado de uma grande amiga, percorri o estado de carona, subindo em carros e caminhões desconhecidos, deixando o frio me tomar e me levar ao acaso, sem rumo, guiado por intuições de última hora. No sul conheci amigos genuínos, mulheres inebriantes e a exata percepção de que a vida era muito mais do que minha provinciana rotina soteropolitana julgava crer. Ali eu me achei, e me perdi.

Continuei viajando nos anos seguintes, enveredando Brasil adentro de ônibus, das serras mineiras ao agreste cearense. Mas algo em mim se perdeu no sul, e não foi minha inocência. Talvez a percepção de que o mundo não me reservaria mais noites como aquelas, pessoas como aquelas, descobertas como aquelas. Hoje, duas décadas depois, percorro distâncias bem maiores em bem menos tempo, me enchendo de Lexotan para evitar o pânico da vulnerabilidade absoluta. Recorro ao conforto dos bons hotéis, dos carros alugados e dos bons restaurantes. E tento resgatar quem fui: aos 20 anos, cantando Belchior na beira de uma estrada da Serra Gaúcha: "Até parece que foi ontem minha mocidade". O polegar levantado, o olhar impetuoso e uma sensação inequívoca de que a vida inteira se descortinava à minha frente.

6 comentários:

karla disse...

Que texto bonito, Paulo! Adorei isso: "....e pessoas cuja bondade era quase uma característica física, como a pele torrada de sol e os traços ligeiramente oblíquos.". Gosto muito da maneira como você escreve: simples e poética. Beijo

Paulo Sales disse...

Obrigado, Karla.
Também gosto muito dos seus comentários. Só quero ser sincero no que eu escrevo.
Um beijo.

Nina disse...

Que lindo! Revelador e profundo. Gostei demais.

Também fiz dessas viagens na adolescência e juventude. Minha primeira viagem de descobertas foi no sentido inverso ao seu, para o Nordeste. Aos 21, voltei de Natal para São Paulo de ônibus e trago ainda a memória do sertão.

Beijo

Paulo Sales disse...

Oi, Nina
Acho que essas viagens mudam a nossa essência, o mundo passa a ser visto de um jeito mais amplo e multifacetado. Imagino o quanto a imagem do sertão nordestino deve ter mudado a sua essência.
Um beijo

armundoAlves disse...

Sentado à beira do caminho, com o pé na estrada. Minhas viagens de ônibus não foram (e não são, já que ainda as faço) tão esticadas assim, mas concordo. Viajar de ônibus é legal. Permite um tipo de observação da paisagem natural e humana diferente, muito rica. De fato, muita coisa fica marcada.

Paulo Sales disse...

Sim, observar as paisagens humanas e naturais e se sentir um pouco acalentado pela solidão, que se torna uma companheira de viagem. Mas não me arrisco mais a percorrer tanto chão.
Grande abraço.