sábado, 15 de outubro de 2011

Frankensteins




Numa das cenas cruciais de Deuses e Monstros, o ex-cineasta de filmes de terror James Whale, vivido por Ian McKellen, aponta para a própria testa e diz: "Meus monstros estão aqui". Whale está em uma festa de casamento, na qual reencontra os atores de suas antigas produções, estrelas de clássicos como A Noiva de Frankenstein e O Homem Invisível. Mas os monstros que habitam sua cabeça são muito mais assustadores. Após um ataque cardíaco, as lembranças represadas durante toda a vida adulta romperam os diques construídos por sua mente para se proteger do passado. E é como se ele nadasse em um lago formado por destroços de reminiscências, tentando inutilmente chegar à margem.

O filme de Bill Condon capta James Whale em seus estertores. Velho, doente e quase esquecido por Hollywood, ele é assombrado pela imagem de sua primeira paixão, um fuzileiro com quem dividiu as trincheiras durante a Primeira Guerra, e pela ausência de carinho do pai repressor, incapaz de aceitar a sua homossexualidade. Tudo isso se manifesta em delírios que trazem à tona seus velhos filmes e no desejo que sente pelo jardineiro bronco e ingênuo vivido por Brendan Fraser, que se torna seu último amigo e seu último refúgio contra o enlouquecimento.

Deuses e Monstros é, portanto, muito mais do que a biografia de um cineasta à beira do fim. Ele fala do poder muitas vezes incapacitante da memória. Das imagens, sons e sentimentos que carregamos desde que nascemos e que vão nos povoando como um paraíso bíblico recebendo seus primeiros habitantes. Pode-se dizer que chegamos ao mundo com um HD limpo, sem qualquer arquivo ou software a corromper nossa ignorância absoluta. Mas nem sei se isso é verdade. Da concepção ao nascimento, são nove meses em que nos transformamos em algo muito maior e mais complexo do que um personagem de terror B. E é claro que nesse período recebemos pelo cordão umbilical não apenas nutrientes, mas possíveis sentimentos de tristeza, depressão e angústia passados por nossas mães. Quando somos tirados da escuridão e do conforto morno do líquido amniótico, já carregamos alguma nódoa.

Em vinte, trinta, sessenta anos, essas nódoas se acumulam, dando forma aos monstros a que se refere Whale. Somos remorso, perda, brutalidade, mesquinhez, frustração e melancolia, mas também somos compaixão, altivez, bondade, amor e - sempre que possível - felicidade. Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Ou, como no poema de um grande amigo chamado Rodrigo Brasil: "Somos Frankensteins formados por tristezas esfarrapadas, por noites de tempestade. Seguimos remendando retalhos de esperança, de mendigos que nos tornamos".

O fato é que nossos monstros não são necessariamente maus, mas nem por isso são menos assustadores. E chega uma época na vida em que, não importa que se assemelhem a um ursinho de pelúcia, eles vão nos apavorar como um Frankenstein na porta do nosso quarto. Porque até as boas lembranças se reduzem a isso: lembranças. Os dias de alegria que ficaram para trás, a família aos poucos desfeita, o verão em que nos tornamos adultos, o grande amor da nossa vida agonizando numa foto esmaecida. A vida, infelizmente, não nos oferece um retorno para que possamos, como o Benjamin Button do conto de Fitzgerald, pegar a estrada de volta. Reviver o que foi bom, consertar o que foi ruim e depois se esvair na bruma.