terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Viagem à semente




A lembrança mais remota que carrego comigo é uma imagem do meu irmão recém-nascido na cama dos meus pais. Recordo vagamente a madeira clara da cabeceira e a roupinha branca que ele usava. Pela nossa diferença de idade, eu devia ter uns dois anos na época. Guardo também imagens enevoadas da minha primeira escola e da cama de ferro, dessas de hospital, onde minha avó materna passou seus últimos dias, embora não consiga lembrar dela, apenas da sua presença na casa. A partir daí, começam a aparecer filmes curtos com começo, meio e fim, e não apenas flashes isolados e sem sentido. Fico intrigado com o fato de não lembrar de nada antes dos dois anos de vida, e muito menos dos nove meses em que permaneci imerso numa pequena caverna escura e aconchegante. É um período relativamente longo, sobre o qual paira apenas breu.

Mas, por menos que lembremos de quem fomos quando bebês, há muito da nossa infância mais remota nos adultos em que nos convertemos. Carregamos centelhas sensoriais que dizem muito do ambiente em que vivíamos, do amor que recebemos (ou não) e da avalanche de sentimentos passada via cordão umbilical por nossas mães. Muitas dessas centelhas permanecem, por mais que nossa consciência seja incapaz de traduzi-las em algo racional. É como mostra o filme O Dia em que Eu Não Nasci (que ainda não tive oportunidade de ver), sobre uma mulher alemã que, ao fazer uma conexão inesperada no aeroporto de Buenos Aires, ouve uma mãe argentina entoando uma canção de ninar para seu bebê e reconhece de imediato essa canção, mesmo não sabendo falar espanhol. A partir daí, ela investiga a sua origem e descobre que é filha de um casal assassinado durante a ditadura militar argentina e que toda a existência que levou até então estava assentada numa mentira.

Voltando às lembranças, minha filha diz que sua primeira recordação sou eu trocando sua fralda, talvez porque tenha feito isso raras vezes quando ela era bebê. Lembra também de meus pais fazendo com ela uma brincadeira chamada Maria Cadeira, possivelmente a única imagem que guarda com certa nitidez do avô paterno, morto quando ela tinha três anos. É uma pena, portanto, que minha filha não consiga lembrar da primeira vez em que a aninhei em meus braços com todo cuidado, para que parasse de chorar, e ela adormeceu quase de imediato. Ou da noite em que assistimos juntos ao filme Procurando Nemo. Desta vez, fui eu que chorei, sentindo a falta do meu pai e tentando esconder os soluços dela, que me abraçou distraída, como se me acalentasse, e disse: “Papai, eu te amo”. Isso diz muito sobre minha filha e talvez mais ainda sobre mim, já que a primeira infância dos filhos é antes de tudo um território dos pais.

Não sei onde quero chegar com todas essas memórias e reflexões sem direção. Talvez esteja só tateando no escuro, em busca do que existe de mais remoto em mim, para compreender os sentimentos que me atravessam desde o momento em que me percebi como gente. Ou quem sabe é só uma necessidade de entender o meu assombro diante do absurdo da existência, não apenas a minha, mas a de todos nós. Tão ou mais assustadora que a morte é a criação de uma nova vida. Uma célula que se multiplica ao infinito dentro de outro corpo até se expandir e ganhar o mundo com lágrimas, gritos, espanto e uma absoluta incompreensão de si mesma e de tudo que está em redor. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Você me fez chorar... isso viajar além de mim.

Paulo Sales disse...

Obrigado pelo comentario. Espero que tenha sido uma emocao positiva.
Um abraco.