quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Idioma universal




Não sei se há diferentes escalas de barbárie. Pouco importa se os motivos são radicalmente distintos ou se os assassinos são mais ou menos cruéis, a brutalidade é sempre uma só, farta em sofrimento, escassa em sentido. Um estampido de fúria e insensatez que nos atinge indiretamente, como uma bala raspando nosso rosto, até que um dia nos acerta em cheio. Como aconteceu com Caroline Silva Lee, 15 anos, executada com dois tiros no último domingo, durante um assalto, em São Paulo. Ou como ocorreu com Malala Yousufzai, 15 anos, que sofreu uma tentativa de assassinato no início do mês no Paquistão.

Como eu vinha dizendo, a barbárie não permite diferentes degraus ou matizes: ela é chapada, seca, sem nuances. Não estamos, portanto, em um estágio mais avançado do que o Paquistão. Malala é uma jovem ativista, que escreve um blog no qual denuncia e combate a violência contra as mulheres cometida pelos fanáticos do grupo Talibã. Por essa postura, rara em uma garota da sua idade, ela foi baleada na cabeça por um extremista que simpatiza com as ideias (se é que podemos usar esse termo neste caso) do Talibã. É intolerância em estado bruto, ocorrida do outro lado do mundo, em uma nação pobre e convulsionada da Ásia. “Que situação triste vive esse país”, você pode pensar, e eu concordo. Mas a verdade é que nós, brasileiros, estamos no mesmo barco. Afundamos de mãos dadas.

Caroline foi morta por se recusar a entregar a bolsa. Levou dois tiros à queima-roupa desferidos por um sujeito que, após ser preso, disse que é isso o que acontece com quem reage. Segundo o seu namorado, ela deve ter hesitado em entregar a bolsa por conta de uns desenhos para tatuagem que ela tinha criado e não queria perder. O depoimento do rapaz à Folha de S.Paulo, dois dias depois do assassinato, me deixou comovido. É um menino articulado, inteligente, gente do bem, como também parecia ser a garota. Gente que batalha, que sofre com transporte público precário e empregos mal remunerados, mas que mesmo assim cultiva seus sonhos, por menos ambiciosos que sejam. Gente com os dois pés fincados na realidade. Eles me lembraram um pouco o casal Miles e Pilar do romance Sunset Park, de Paul Auster, que li recentemente: ele um pouco mais velho, ela novinha. Os dois sem grandes expectativas além das próprias expectativas, que para eles tinham a dimensão do universo.

O assassinato de uma menina tão jovem revela, em toda a sua sordidez, o profundo fosso em que nós, brasileiros, estamos metidos. Ignoramos a guerra civil não declarada que faz tombar diariamente gente muito nova nas cidades entupidas em que moramos. Continuamos a entender o brasileiro como um ser cordial, boa-praça, sempre disposto a uma conversa fiada num botequim. Não somos assim. Não pode existir cordialidade em um país que mata de forma violenta milhares de pessoas todos os anos, seja no trânsito ou em situações que envolvem armas de fogo, como afirma em uma brilhante palestra o historiador Leandro Karnal. Aqui, a morte é banal, vulgar, quase um efeito colateral do que chamamos progresso.

O atentado contra Malala causou uma comoção mundial, tanto que ela acabou transferida para Londres, onde se recupera bem, apesar das prováveis sequelas. Faz sentido. Malala é um símbolo de resistência, uma voz quase infantil a bradar contra um dos regimes mais estúpidos surgidos na era moderna. Seu grito reverbera fundo no mundo contemporâneo e ganha a adesão maciça dos que prezam a liberdade. Mas... e o que fazer com o grito mudo de Caroline ao receber os dois tiros que lhe arrancaram a existência? Quem vai abandonar a zona de conforto para aderir a sua causa perdida? Seu silêncio nos incomoda, porque nos iguala ao Paquistão, à Síria, ao Iraque. Barbárie é barbárie, e o seu idioma é universal.

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