sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Acalanto




A primeira sensação que tive ao saber que ia ser pai foi um certo desespero. Estava com quase 30 anos e numa situação profissional incerta, sem trabalho fixo, tendo voltado a morar em Salvador após os anos de faculdade em São Paulo. Naquele momento, nem lembrei que costumava dizer que queria ter um filho no ano 2000, numa época em que o ano 2000 ainda estava bem longe, assim como os 30 anos, e minha juventude beirava a eternidade. Mas ali estava o fato, inapelável. No entanto, três dias após a notícia, a sensação já havia mudado: passou a ser de uma ternura muda, como se alguém me cantasse um acalanto baixinho no ouvido. Essa ternura se intensificou quatro meses depois, quando a médica que fazia a ultrassonografia – uma senhora que nos transmitia uma imensa serenidade – disse: “Olha só, é uma menininha”. Lembro de, bem nesse instante, ser invadido por uma sensação úmida, cálida e aconchegante, como um banho morno após um dia intenso de trabalho. Minha filha.

Escolhi seu nome muitos anos antes do seu nascimento, ainda no colegial, quando ouvi pela primeira vez, numa aula de história, o nome de uma antiga cidade da Mesopotâmia. A sonoridade da palavra me encantou, e decidi que minha filha teria o mesmo nome da capital do império assírio, que abrigou a primeira grande biblioteca criada pela humanidade. A mesma cidade que, segundo a Bíblia, Deus pretendia destruir e para a qual mandou Jonas, responsável por avisar aos seus habitantes sobre a catástrofe iminente – e que hoje é apenas um sítio arqueológico no norte do Iraque, composto de ruínas provocadas pelo tempo e por bombas norte-americanas.

A princípio, minha filha seria a primogênita de uma prole que teria ainda outros nomes insólitos, cultivados durante a adolescência. Acabou sendo a única a vir ao mundo povoar de encanto a minha vida. Seu nascimento promoveu em mim uma pequena hecatombe interior, proporcionando uma transformação radical no modo como encarava a vida. Meu egocentrismo inato deu lugar a um altruísmo meio sem jeito, a uma descoberta do outro através dessa outra parte de mim mesmo. E também precisei enfrentar a dificuldade de adaptação às obrigações sociais e profissionais da idade adulta para sustentar a família, como fazem homens e mulheres desde os tempos mais remotos.

Imaginava que me tornaria escritor um dia. Um romancista nos moldes de, sei lá, Scott Fitzgerald. Escrevi dois ou três livros de poesia, outro de contos autobiográficos e a metade de um romance, mas minha obra maior – feita em parceria e a única a ser “publicada” – acabou sendo aquele ser humano frágil e assustado, que vi pela primeira vez pelo vidro da maternidade. Um ser humano que no decorrer dos últimos 12 anos foi aos poucos ganhando a forma de uma jovem mulher, de cabelos longos e castanhos, sorriso largo, olhos inquietos, corpo esguio e harmonioso. Mas, principalmente, uma jovem mulher íntegra, amorosa, com uma generosidade e um senso de justiça e lealdade que quase sempre me surpreende.

Há muito de mim nela, assim como há muito da mãe, o que me tranquiliza. Não gostaria de legar a minha filha os meus titubeios e o meu desnorteio perene – embora ela tenha herdado de mim a incompreensão diante das equações, operações e expressões numéricas que compõem o ensino de matemática. De certa forma, começo a perceber que um ciclo está se encerrando. Sem traumas ou rupturas, a infância se despede dela, deixando (inclusive em nós, pais) um sentimento de missão cumprida, de que os 12 primeiros anos de sua existência foram vividos em plenitude. E que venha o futuro.

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